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terça-feira, 1 de agosto de 2023

Capazes são, mas serão? - Revista Oeste

Flávio Gordon

Desumanização e criminalização do 'bolsonarismo' virou moeda corrente na velha imprensa, nos tribunais e nas bancadas de esquerda


Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Ricardo Stuckert

O governo insistia em afirmar reagir contra uma ameaça revolucionária [após o incêndio do Reichstag], a qual requeria medidas emergenciais de curto prazo. 
Assegurava constantemente o público de que, uma vez passada a crise, o império da lei e as liberdades seriam restituídos na Alemanha. 
Restava óbvio, porém, que, ao mesmo ao tempo que essas vagas promessas eram feitas, as inovações introduzidas seriam características permanentes da ditadura de Hitler.”(Robert Gellately, Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi Germany)

Proclamado presidente da República pelos amigos do Tribunal Eleitoral, obedecido por uma Suprema Corte inteiramente partidarizada e alheia à Constituição, legitimado por um “consórcio” midiático mais amestrado que o Pravda soviético, respaldado por uma Polícia Federal aparelhada agindo como polícia política, e por Forças Armadas a caminho da bolivarianização, o descondenado em chefe tem se sentido muito à vontade para dar vazão aos seus desejos de ditador. 

Semana passada, na Bélgica, aproveitou-se da suposta ofensa sofrida pelo camarada Alexandre de Moraes em Roma para adotar uma retórica (essa, sim!) genocida, ao proclamar abertamente seu projeto de “extirpar” os bolsonaristas, aos quais negou a qualidade de seres humanos, tratando-os como “animais selvagens”. 
 Dias depois, em discurso para sindicalistas em São Bernardo do Campo, voltou à carga. 
Possivelmente imaginando que a Alemanha continua sob o Terceiro Reich, regime no qual assuntos privados tornavam-se questão de Estado, disse ter “entregado” o nome do suspeito de ofender Moraes, um empresário de uma firma alemã, ao chanceler alemão Olaf Scholz.  
Além disso, conclamou seus camisas marrons (ou vermelhas) a uma missão politicamente purificadora. “Vocês têm que estar preparados, porque nós derrotamos o Bolsonaro, mas não derrotamos o bolsonarismo ainda” — berrou, com sua voz rascante de ódio. “Os malucos estão nas ruas”. Estava dada a senha para a atuação de “coletivos” de tipo chavista, empenhados no uso permitido da violência para a defesa do regime.

Já há algum tempo a desumanização e a criminalização do bolsonarismo virou moeda corrente na linguagem da imprensa, dos tribunais superiores e da bancada parlamentar filopetista. Os episódios são muitos. Lembro-me, por exemplo, de quando o blogueiro ultraesquerdista Ricardo Noblat descreveu uma participante do programa Big Brother Brasil como “suspeita de bolsonarismo”. Ou de quando o ministro já notoriamente mais boquirroto do Supremo, esse mesmo que o leitor está imaginando, conclamou “as instituições” e “as pessoas de bem” (e é curioso como, quando interessa à esquerda, o “cidadão de bem” volta a existir) a impor limites aos habitantes de “guetos pré-iluministas”, que questionavam as urnas eletrônicas. Ou ainda, mais recentemente, também surfando no caso Moraes em Roma, de quando o colunista petista Ricardo Kotscho (que em outros tempos talvez fosse descrito como “blogueiro de crachá” ou coisa que o valha) afirmou ser difícil pacificar o país “com tantos bolsonaristas soltos”, convocando toda a sociedade, e não apenas os governantes, a fazê-los “saírem de circulação”. Mas a coisa torna-se realmente preocupante quando ninguém menos que o presidente da República passa a desumanizar dessa forma uma fatia inteira do espectro político nacional, composta de dezenas de milhões de cidadãos. Quando a assim chamada “pacificação” proposta pelo mandatário e seus correligionários (e incluo nesse grupo a maior parte dos jornalistas autoproclamados “profissionais” e dos juízes dos tribunais superiores) passa a se parecer cada vez mais com uma “solução final”, é porque o país entrou num rumo muito perigoso.

Não exagero ao classificar de genocida a retórica do descondenado em chefe.
 
(...)
Pintura de Stalin no Museu Hermitage | Foto: Sophie Mahdavi/Shutterstock

Obviamente, muito embora os comunistas com orgulho que hoje governam o Brasil pertençam a uma cultura política totalitária que, a exemplo da Alemanha nazista e da URSS stalinista, perpetrou perseguições, violações dos direitos humanos e assassinatos em massa por onde passou (e o faz presentemente, como nas ditaduras venezuelana e nicaraguense, amigas do lulopetismo), a simples possibilidade de que o Brasil enverede por esse caminho infame nos parece, à primeira vista, inconcebível. Confesso que, apesar de familiarizado com a história do movimento revolucionário, circunstância que deveria me vacinar contra a perplexidade, a hipótese também me soa como inverossímil. Contudo, uma releitura recente tornou muito mais perturbadora a análise da situação brasileira, porque antes já se observou a mesma incredulidade em contextos que, de fato, terminaram em morticínio. Refiro-me aos diários do filólogo judeu Victor Klemperer.
 
(.....)

Abertamente desumanizados (e ora estrategicamente desarmados) (…), também os “bolsonaristas”, entre perplexos e conscientes, parecem sopesar suas chances.

Nos primeiros anos do novo regime, os registros no diário são todos marcados por esse misto de análise racional, com consequente prognóstico, e perplexidade, como se o espírito do autor andasse na corda bamba entre, por um lado, a convicção do analista de que os algozes seriam, sim, capazes de perpetrar os males mais inimagináveis e, por outro, a insistente e tênue esperança da vítima, segundo a qual não era possível que chegassem a tanto. Mais ou menos como começam a se sentir hoje todos os assim estigmatizados como “bolsonaristas”, ao notarem a ausência de qualquer anteparo institucional entre eles e os ditadores que os querem “extirpar”, Klemperer dá voz ao sentimento generalizado de perplexidade entre os judeus perseguidos, cada vez mais incrédulos, como num pesadelo sem fim, diante daquilo que o historiador do nazismo Ulrich Herbert viria a chamar de “a escalonada indiferença de seus conterrâneos”.

Em 31 de março de 1933, véspera do Judenboykott, Klemperer descreveu o seu estado de espírito: “Cada vez mais desesperançoso. O boicote começa amanhã. Cartazes amarelos, homens de guarda. Nenhuma resposta à impressionante carta dos judeus ao presidente do Reich e ao governo”. Assombrava-o a ausência geral de reação, e até mesmo de percepção, por parte de tantos dentre os seus parceiros de infortúnio. “Ninguém ousa fazer qualquer movimento. Ninguém ousa escrever uma carta ou dar um telefonema. Visitamo-nos uns aos outros e sopesemos nossas chances. Um funcionário do ministério disse isso; um outro, aquilo. Mas ninguém sabe se aquele com a opinião mais favorável restará no cargo, ou em que medida está mesmo no cargo. Nem as feras selvagens têm menos direitos e são mais acossadas (…) Na guerra eu estava sujeito à lei militar, mas a alguma lei ainda assim; agora, estou à mercê de um poder arbitrário”. Trilhos que levam à entrada do campo de concentração de Auschwitz, em Oświęcim, na Polônia | Foto: Rafael Cavlaz/Shutterstock

Abertamente desumanizados (e ora estrategicamente desarmados) por um chefe de Estado vingativo e notoriamente amoral, emboscados por um ministro da Justiça e da Segurança Pública cuja única missão no cargo parece ser inventar pretextos para os encarcerar, destituídos de seus direitos básicos por militantes radicais e serviçais lulopetistas fantasiados de toga, diariamente estigmatizados por uma imprensa que se comporta como alcaguete e propagandista do regime, também os “bolsonaristas”, entre perplexos e conscientes, parecem sopesar suas chances.

Já terá chegado a hora do exílio, ou ainda é cedo? Vale a pena ficar, enfrentando a ditadura de peito aberto, ou escapar com a família antes que seja tarde? Há ainda algum resquício de solução institucional para evitar o expurgo (ou a “extirpação”)? Alguma voz ainda se levantará contra as arbitrariedades de que são vítimas? Haverá um limite para a perfídia? Ora, que os algozes são capazes, racionalmente todos o sabem, pois a proposta de um morticínio purificador é da própria natureza da mentalidade revolucionária. Mas — esta a dúvida inclemente — serão mesmo capazes? Na Alemanha nazista, muitas vezes o maior ou menor tempo de permanência na pergunta significou a diferença entre a morte e a sobrevivência. E, dentre os que se mantiveram perplexos por um prazo excessivo, poucos sobraram para contar a história. Resta saber como será no Brasil sob a ditadura lulopetista. Resta avaliar o prazo-limite para a perplexidade, essa faca de dois gumes anímica, a qual, como diria Primo Levi, ao mesmo tempo que angustia, deprime e retarda-nos qualquer reação, também “desvia a cada instante a nossa atenção da desgraça que pesa sobre nós, tornando a sua percepção fragmentária e, portanto, suportável”.
 
 

Coluna Flávio Gordon - Revista Oeste


quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Triângulo de fogo

“Brasil enfrenta a sua maior crise desde 1964 num ambiente de ampla liberdade, com eleições livres e limpas, graças à Constituição de 1988, que até agora sobreviveu a todas as tensões”

Incêndios dependem basicamente da temperatura de ignição. Os outros fatores — oxigênio e material inflamável — estão dados em qualquer situação. O que  vai distinguir a gravidade do incêndio é a existência de produtos químicos e materiais sintéticos, contra os quais não basta o resfriamento. É preciso cortar o oxigênio e a existência de corrente elétrica, muitas vezes a origem da fagulha que provocou o incêndio. Não, desta vez não se trata do museu que pegou fogo, trata-se das eleições e do desgaste a que estão sendo submetidas as nossas instituições democráticas, principalmente o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF), às vezes, em razão de suas próprias contradições internas.

Não faltam interessados na radicalização política e na desmoralização da Justiça, em pleno processo eleitoral, entre os quais o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que legalmente está fora da disputa, mas mantém sua candidatura, e Jair Bolsonaro (PSL), que representa a outra face da mesma moeda, ao simbolizar o antipetismo radical e liderar os que defendem uma intervenção militar. Incêndios políticos são provocados por piromaníacos e não faltam exemplos na história. Nero, o imperador romano, foi um deles, embora haja controvérsias sobre o fato de ter provocado o grande incêndio do Circo Mágico, em 14 de julho de 64 d.C., que viria a destruir boa parte de Roma. Deposto, se suicidou em 68 d.C. e deixou como legado uma guerra civil conhecida como o ano dos quatro imperadores, todos generais romanos.

O incêndio do Reichstag, o parlamento alemão, em 17 de fevereiro de 1933, em Berlim, foi o episódio crucial para ascensão do nazismo. Adolf Hitler havia sido empossado chanceler da Alemanha quatro semanas antes e se aproveitou do episódio para incitar o presidente Paul von Hindenburg a aprovar um decreto de emergência que lhe conferiu superpoderes para combater os comunistas. O que aconteceu depois todo mundo sabe: a perseguição se estendeu aos social-democratas e liberais e demais opositores políticos de Hitler: doentes mentais, pacifistas, eslavos e grupos religiosos (tais como as Testemunhas de Jeová), homossexuais, ciganos e, principalmente, judeus. Com a 2ª Guerra Mundial, o Holocausto registrou o extermínio de ao menos 6 milhões de pessoas, a maioria judeus.

Onde mora o perigo
Antes que alguém imagine que a citação é exagerada, vale a pena examinar a disputa política global que se deu nos últimos 100 anos. Nos primeiros 50 anos, entre socialistas, liberais e fascistas, resultou na derrota da extrema direita; nos 50 anos seguintes, com a Guerra Fria, entre socialistas e liberais. No final do século 20, com a desintegração da União Soviética e demais regimes comunistas do Leste europeu, a hegemonia liberal se consolidou na política mundial de tal forma que a tese hegeliana do “fim da história” foi exumada pelo economista norte-americano Francis Fukuyama e parecia ter se comprovado. Eis, porém, que a globalização e o novo “capitalismo de dados”, com a revolução tecnológica, colocam em xeque as democracias representativas do Ocidente, que está em crise no mundo.


Os valores legados pela Revolução Francesa — liberdade, igualdade e fraternidade —, que são a essência da democracia moderna, parece que perderam a funcionalidade. Na corrida mundial para reinventar o Estado nacional, figuras de viés autoritário emergem com força no processo político do Ocidente, a começar pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Assim como Ronald Regan se contrapôs ao antigo regime soviético, Trump elegeu como principal adversário na arena internacional a China, cuja emergência econômica e política se assenta sobre um modelo de capitalismo de Estado integrado à economia mundial e no regime de partido único comunista, que parecia condenado a desaparecer. Entre esses dois polos, equilibra-se uma Europa assustada pela herança de seu próprio colonialismo, a crise humanitária na África e Oriente Médio, e pela agressividade da Rússia de Putin, determinada a restabelecer seu papel no grande jogo da Eurásia e manter seu acesso livre ao Mediterrâneo. Na periferia, os mais bem-sucedidos na modernização derivam da democracia para o autoritarismo.

É nesse contexto que as eleições ocorrem no Brasil, franqueado pela crise do abastecimento e hiperinflação do modelo bolivariano na Venezuela de Nícolas Maduro, e a crise cambial na Argentina, que expõe a vulnerabilidade da política liberal do presidente Maurício Macri. Ao contrário do que muitos afirmam, o Brasil enfrenta a sua maior crise desde 1964 num ambiente de ampla liberdade, com eleições livres e limpas, graças à Constituição de 1988, que até agora sobreviveu a todas as tensões. Devemos lutar para preservá-la e levar a sério a advertência do professor da Universidade de Harvard Steven Levitsky, autor do livro Como morrem as democracias?, que há anos estuda a relação entre populismo e autoritarismo, assim como a construção partidária na América Latina: “Se um candidato, em sua vida, carreira política ou durante a campanha, defendeu ideias antidemocráticas, devemos levá-lo a sério e resistir à tentação de apoiá-lo, ainda que, diante de circunstâncias momentâneas, pareça ser uma opção aceitável”.

Nas entrelinhas - Luiz Carlos Azedo