Alexandre de Moraes teve decisão criticada por Kassio Marques em julgamento no STF.
Especialmente após a instauração do inquérito das fake news, aquele em que o Supremo Tribunal Federal assumiu o múltiplo papel de vítima, investigador, acusador e julgador, a sociedade brasileira tem percebido que a Constituição, a lei e os regimentos internos são detalhes que ministros da corte aprenderam a contornar e ignorar quando lhes é conveniente, sempre em nome de intenções consideradas nobres, como o combate às chamadas fake news, ou ao menos àquilo que os ministros consideram como tal.
E as recentes decisões do ministro relator Alexandre de Moraes (designado a dedo em 2019 pelo então presidente do STF Dias Toffoli, contornando o tradicional sorteio de relatorias) são nova demonstração de que um inquérito que nasce eivado de erros é quase impossível de consertar – a tendência é que os equívocos apenas se avolumem. No fim de março, Moraes considerou que Silveira havia desobedecido determinações judiciais e deveria voltar a usar uma tornozeleira eletrônica.
O pedido da Procuradoria-Geral da República alegou três descumprimentos de determinações judiciais anteriores, pois Silveira se encontrou com outro investigado no inquérito das fake news, deu uma entrevista e criticou Moraes durante evento em Londrina (PR). Como Silveira se recusava a colocar de volta o dispositivo, chegando a passar noites nas dependências da Câmara dos Deputados, Moraes determinou multa diária e bloqueio das contas do parlamentar, que acabou cedendo.
Como as decisões do STF são tomadas dentro de uma moldura de funcionamento normal do Judiciário, o arbítrio, mesmo quando motivado pelas melhores intenções, acaba revestido de um verniz de legalidade; mas nem por isso deixa de ser arbítrio
Além disso, pode-se ainda questionar o recurso à tornozeleira eletrônica como medida cautelar imposta a membro do Congresso sem necessidade de autorização do Legislativo. Em 2017, em um caso envolvendo o então senador Aécio Neves, o Supremo decidiu que medidas cautelares que afetassem o exercício do mandato precisavam ser referendadas pela casa a que pertencesse o parlamentar, mas Moraes argumentou que o uso de tornozeleira eletrônica não se encaixava nesta situação. Por mais que já exista jurisprudência apoiando esta alegação, ela nos parece incorreta. Afinal, a tornozeleira deve monitorar se Silveira está cumprindo outra determinação, que limita sua circulação entre Brasília e Petrópolis (RJ), onde tem domicílio registrado. E esta limitação, sim, prejudica sua atividade parlamentar, impedindo-o, por exemplo, de integrar missões oficiais ou visitar outros locais onde sua presença seria importante. Seria preciso, portanto, que todas essas medidas fossem referendadas pela Câmara dos Deputados.
Mas é na forma usada por Moraes para levar Silveira a colocar a tornozeleira que está a mais recente inovação jurídica do relator. O Código de Processo Penal (CPP) não prevê multa ou bloqueio de bens – estas medidas são permitidas apenas na esfera cível, e em disputas entre particulares. Quando o tema foi levado ao plenário do Supremo, de forma virtual, apenas Nunes Marques e André Mendonça foram capazes de apontar este grave erro. A multa, afirmou Nunes Marques, “não tem qualquer arrimo no ordenamento jurídico pátrio e caracteriza-se de forma transversa em confisco dos bens do réu em processo penal por decisão monocrática e cautelar do relator em ação penal originária, sem o devido processo legal, claramente incompatível com a Constituição da República. Afinal, vivemos em uma democracia, onde o Estado de Direito vige, não sendo, portanto, admitida a imposição de qualquer medida privativa e/ou restritiva de direito não prevista no ordenamento jurídico legal e sobretudo constitucional” – o ministro ainda criticou a desproporcionalidade no valor cobrado, que em dois dias consumiria toda a renda mensal de um deputado, embora este nem seja o maior problema da medida.
Editorial - Gazeta do Povo