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quinta-feira, 7 de abril de 2022

O “direito processual penal criativo” do STF - Gazeta do Povo - Editorial

Alexandre de Moraes teve decisão criticada por Kassio Marques em julgamento no STF.

Especialmente após a instauração do inquérito das fake news, aquele em que o Supremo Tribunal Federal assumiu o múltiplo papel de vítima, investigador, acusador e julgador, a sociedade brasileira tem percebido que a Constituição, a lei e os regimentos internos são detalhes que ministros da corte aprenderam a contornar e ignorar quando lhes é conveniente, sempre em nome de intenções consideradas nobres, como o combate às chamadas fake news, ou ao menos àquilo que os ministros consideram como tal. 

A Constituição proíbe a censura prévia, mas isso não impediu a censura da Crusoé.  
A Constituição garante a liberdade de expressão, mas ministros ameaçam banir aplicativos, ordenam a eliminação de perfis em mídias sociais e endossam quebras de sigilo de quem apresenta opiniões divergentes sobre temas que estão (ou deveriam estar) abertos ao debate. A Constituição protege a imunidade parlamentar, mas ela foi abolida (com a subserviência da Câmara, é preciso dizer) no caso do deputado Daniel Silveira, o protagonista de novo choque com a corte suprema.

E as recentes decisões do ministro relator Alexandre de Moraes (designado a dedo em 2019 pelo então presidente do STF Dias Toffoli, contornando o tradicional sorteio de relatorias) são nova demonstração de que um inquérito que nasce eivado de erros é quase impossível de consertar – a tendência é que os equívocos apenas se avolumem. No fim de março, Moraes considerou que Silveira havia desobedecido determinações judiciais e deveria voltar a usar uma tornozeleira eletrônica.

O pedido da Procuradoria-Geral da República alegou três descumprimentos de determinações judiciais anteriores, pois Silveira se encontrou com outro investigado no inquérito das fake news, deu uma entrevista e criticou Moraes durante evento em Londrina (PR). Como Silveira se recusava a colocar de volta o dispositivo, chegando a passar noites nas dependências da Câmara dos Deputados, Moraes determinou multa diária e bloqueio das contas do parlamentar, que acabou cedendo.

Como as decisões do STF são tomadas dentro de uma moldura de funcionamento normal do Judiciário, o arbítrio, mesmo quando motivado pelas melhores intenções, acaba revestido de um verniz de legalidade; mas nem por isso deixa de ser arbítrio

Há uma série de aspectos que merecem crítica em todo o episódio. A proibição de conceder entrevistas, de imediato, já representa ataque claro à liberdade de expressão do parlamentar, como apontado por vários juristas ouvidos pela Gazeta do Povo. 
E será muito difícil encontrar algum crime real nas palavras do deputado durante o evento na cidade paranaense. 
Afirmar que falta “bússola moral” aos ministros, que Moraes está cometendo inconstitucionalidades” e que o Judiciário está adotando “imposições” para uma “tomada de poder” é simplesmente exercer um direito de crítica que a Constituição garante a todo brasileiro, independentemente de haver ou não fundamento nas afirmações. Mesmo quando Silveira diz que “está ficando complicado aqui para o senhor [Moraes] continuar vivendo aqui, nem que seja juiz”, será preciso muito malabarismo hermenêutico para se enxergar ali uma ameaça concreta à vida ou à integridade física do relator.

Além disso, pode-se ainda questionar o recurso à tornozeleira eletrônica como medida cautelar imposta a membro do Congresso sem necessidade de autorização do Legislativo. Em 2017, em um caso envolvendo o então senador Aécio Neves, o Supremo decidiu que medidas cautelares que afetassem o exercício do mandato precisavam ser referendadas pela casa a que pertencesse o parlamentar, mas Moraes argumentou que o uso de tornozeleira eletrônica não se encaixava nesta situação. Por mais que já exista jurisprudência apoiando esta alegação, ela nos parece incorreta. Afinal, a tornozeleira deve monitorar se Silveira está cumprindo outra determinação, que limita sua circulação entre Brasília e Petrópolis (RJ), onde tem domicílio registrado. E esta limitação, sim, prejudica sua atividade parlamentar, impedindo-o, por exemplo, de integrar missões oficiais ou visitar outros locais onde sua presença seria importante. Seria preciso, portanto, que todas essas medidas fossem referendadas pela Câmara dos Deputados.

Mas é na forma usada por Moraes para levar Silveira a colocar a tornozeleira que está a mais recente inovação jurídica do relator. O Código de Processo Penal (CPP) não prevê multa ou bloqueio de bens – estas medidas são permitidas apenas na esfera cível, e em disputas entre particulares. Quando o tema foi levado ao plenário do Supremo, de forma virtual, apenas Nunes Marques e André Mendonça foram capazes de apontar este grave erro. A multa, afirmou Nunes Marques, “não tem qualquer arrimo no ordenamento jurídico pátrio e caracteriza-se de forma transversa em confisco dos bens do réu em processo penal por decisão monocrática e cautelar do relator em ação penal originária, sem o devido processo legal, claramente incompatível com a Constituição da República. Afinal, vivemos em uma democracia, onde o Estado de Direito vige, não sendo, portanto, admitida a imposição de qualquer medida privativa e/ou restritiva de direito não prevista no ordenamento jurídico legal e sobretudo constitucional” o ministro ainda criticou a desproporcionalidade no valor cobrado, que em dois dias consumiria toda a renda mensal de um deputado, embora este nem seja o maior problema da medida.

Editorial - Gazeta do Povo 

 

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