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quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O problema dos ‘negros livres’

A professora Beatriz Mamigonian iluminou o passado com um livro tão forte que obriga a olhar para o presente

Está nas livrarias “Africanos livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil”, de Beatriz Mamigonian, professora da Universidade Federal de Santa Catarina. É um grande livro e conta uma história que, em muitos aspectos, foi varrida para baixo do tapete no século XIX. De certa forma, continua lá até hoje.

Em 1831 o governo pôs em vigor uma lei pela qual ficavam livres “todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil”. Nessa época, o país deveria ter pouco mais de quatro milhões de habitantes. No máximo, 1,5 milhão deles seriam negros escravizados. Se a lei de 1831 tivesse sido cumprida, a história do Brasil teria sido outra.  Entre 1830 e 1856, entraram ilegalmente no país 800 mil novos escravos. O Segundo Império, com seus barões, o café e uma corte que fingia ser europeia, tinha um pé no contrabando de negros. Escravidão e contrabando, os males do Brasil foram.

Nas palavras da professora: “Nenhuma análise da construção do Estado nacional brasileiro e de sua ordem jurídica pode mais desconsiderar a extensão e a gravidade da ilegalidade associada ao tráfico de escravos.”  O Estado brasileiro fingia que não via os barcos que traziam negros, e sua burocracia cuidava de tirar das ruas a população “sempre perigosa” dos 11 mil “pretos livres” que haviam conseguido a proteção da lei de 1831. Seguindo os costumes do mundo, eles não eram simplesmente libertados e, no Brasil, deviam cumprir 14 anos de aprendizado e serviços. Esse prazo era estourado, e às vezes, falsificava-se a morte do “negro livre”, reescravizando-o com outra identidade. Os escravos de Mamigonian têm nome e endereço. Salomão Valentim morava na Rua do Sabão, Serafina Cabinda, no Beco do Mosqueiro.

Os negros eram entregues a “concessionários”, que pagavam à Coroa módicas quantias e os usavam como empregados domésticos, podendo alugá-los. Um mês de aluguel quitava o débito anual do concessionário. Em alguns casos, o negro era concedido a empreiteiros de obras públicas. Naquela época o grande empreiteiro baiano era o comendador Barros Reis.

A concessão de negros destinava-se a gente de “reconhecida probidade e inteireza”. O Marquês de Paraná, grande articulador da política de conciliação, ganhou 26 e mandou-os para sua fazenda de café. O Marquês (depois, Duque) de Caxias teve 22. O Visconde de Sepetiba ganhou um lote, e anos depois sua filha ajudou Carolina Conga a fugir em busca da emancipação. Ela tinha 22 anos de serviços. (Também eram atendidos jornalistas, como Justiniano José da Rocha.) A concessão de um negro podia azeitar um voto na Câmara.

Um século depois do fim do tráfico, Fernando Henrique Cardoso, um presidente que informava ter “um pé na cozinha”, passava feriadões na Marambaia, nas terras que haviam sido do poderoso fazendeiro Joaquim de Souza Breves. Depois do fim (legal) do tráfico, ele tinha ali um viveiro de escravos contrabandeados.

Lendo Mamagonian, convive-se com o deputado Tavares Bastos defendendo os negros, com o Visconde do Uruguai protegendo a burocracia, e o jurista Teixeira de Freitas advogando para contrabandistas. Quando se passa por Carolina Conga, Salomão Valentim e Serafina Cabinda, veem-se ao fundo as sombras do juiz Sergio Moro, de Michel Temer, e dos ministros Moreira Franco e Gilmar Mendes.

Fonte: O Globo - Elio Gaspari,  jornalista