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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A depredação da Igreja: Carta aberta a Polzonoff - Bruna Frascolla

Gazeta do Povo

Racialismo

Celebração da igualdade na Festa do Rosário.

Celebração da igualdade na Festa do Rosário. -  Foto: Lucilia Guimarães/ SMCS

Ficar trancado em casa lendo notícia faz mal para a cabeça. Já que eu não posso tirar o Sr. Polzonoff da casa dele e levá-lo para dar um passeio num local agradável, porque ele mora muito longe, talvez eu deva contar dos festejos que vi este domingo, na véspera do ataque de racialistas negros à Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Curitiba. O texto dele sobre isto foi deprê demais.

Burrice com PhD
Vemos esse tipo de notícia e temos que aprender a ser burros para entendê-la. É preciso esquecer, por exemplo, que a Igreja tem santos negros desde antes da descoberta do Brasil. Que a Santa Ifigênia, princesa da Etiópia, é representada com a Igreja na mão, dada a sua importância nos primórdios do cristianismo. De novo, este país de formação católica está muito acostumado a reverenciar uma mulher negra antes de vir uma mana de cabelo rosa e argola de boi no nariz querendo nos ditar ordens. Se alegarem que Santa Ifigênia não é uma santa das mais populares, digo que este não é o caso de São Benedito, negro nascido na Sicília à época do descobrimento do Brasil. Sua devoção saiu da Europa, atravessou o Atlântico e encontrou aqui os africanos que fizeram a mesma travessia.

Mas os negros católicos nem sempre se organizavam levando em conta a cor do santo. A padroeira preferida foi justo a Nossa Senhora do Rosário. Em Salvador, Cachoeira, Rio de Janeiro e Olinda existem igrejas homônimas chamadas Igreja Nossa do Rosário dos Pretos. Em São Paulo e no Recife, há as homônimas Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

Como os bem-nascidos da sociedade colonial não queriam se misturar a descendentes de escravos e a ex-escravos, a cor era uma barreira para o ingresso em ordens terceiras (leigas) e enterros privilegiados. Assim, em vez de chorar e pedir cota, esses negros bem-sucedidos criaram tais igrejas e irmandades. Justamente sob a padroeira Nossa Senhora do Rosário, atacada pelos camisas vermelhas.

É preciso uma burrice deliberada, estudada, falsificadora da realidade, para dizer que catolicismo é coisa de branco. Basta entrar numa igreja e olhar quem está lá dentro. Se a demografia do local não for atípica (como uma área de colonização ucraniana, por exemplo), a igreja estarecheada de pardos. 
A pessoa precisa dividir o mundo entre coisa de preto e coisa de branco, o que dá um trabalho danado. 
Curiosamente, porém, nenhum desses racialistas considera que a Universidade veio da Europa, de modo que só poderia ser branca.

E de fato, se você quiser repetir barbaridades racistas, é mais fácil granjear apoio de uma Fundação Ford (a este respeito, leia-se “Uma Gota de Sangue”, de Demétrio Magnoli), que vai bancar seus estudos num desses departamentos gringos de Black Studies, do que da senhorinha parda que está assistindo à missa, ou vendo o povo do terreiro ir entregar oferendas.

No lugar errado, segundo os cálculos
E aqui chegamos à necessidade de dar uma voltinha. Olhando-se de uma perspectiva calculista, eu poderia dizer que estou no pior lugar do mundo. O racismo negro avança, e eu sou uma branquela sozinha num dos lugares mais negros do Brasil. Para piorar, os racialistas botaram uma universidade aqui durante o petismo. A nova universidade atraiu ninguém menos que Kabengele Munanga para morar na cidade (tive a informação, mas nunca o vi pessoalmente). Para piorar mais ainda, vivo num estado governado pelo PT, que reserva uma área da administração para ser parquinho de racialistas. 

A Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi criada por Lula em 2003 e deixou de existir no plano federal. 
Na Bahia, temos uma Secretaria da Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), uma Seppir estadual (e eu sei que a expressão “igualdade racial” foi usada em oposição ao antirracismo porque um militante histórico assim me contou: ele queria vender ao governo uma campanha contra o racismo e a Seppir estava disposta a tratar consigo, desde que não usasse a palavra “racismo” e trocasse por “igualdade racial”. Como era um homem sério e um legítimo antirracista, recusou-se a abrir mão da palavra racismo).

A minha posição, em tese, deveria ser impossível. Se eu conduzisse a minha vida com base nas informações supracitadas, estaria desesperada, achando que preciso de um local muito bem policiado e de maioria branca para viver. Mas a minha posição serve, antes, para mostrar que essa gente não tem tanto poder quanto acha.

A rua lá fora

Estou na minha casa, lendo sob a janela, quando ouço chamarem o meu nome. É o pintor de paredes, um negro retinto que estava todo vestido com as cores da Etiópia – até a máscara. Avisa que virá fazer o serviço depois de terminar de pintar uma garagem e põe o papo em dia. Pergunto pelo dono do bar, que está meio sumido desde as cirurgias da vista. Ele especula que hoje o velho apareça, por causa da festa de Oxum que haveria entre uma, uma e meia, quando o rio enchesse. Aproveito para saber por que não houve nada no 2 de Fevereiro, contando que achei estranho não ter nada para Iemanjá. Ele responde muito enfático que 2 de Fevereiro é em Salvador, porque é Iemanjá e Iemanjá é água salgada. Como aqui é água doce, é Oxum.

Este é um conhecimento básico que eu já tinha. Por isso mesmo eu achei estranho, já que, desde a construção da barragem, a água do rio nesta altura é salobra. Deixei para averiguar in loco.  Calculei que, se ele dizia que ia ser uma, uma e meia, devia ser de duas em diante. Não foi difícil encontrar o ponto da festa: havia ramos de palmeiras decorando a descida para o ancoradouro e, mais adiante, na praça, uma estrutura coberta protegendo cestões cheios de flores. Eram as oferendas. Pergunto a alguns conhecidos para quem era a festa. A resposta já variou: Oxum e Iemanjá. Vi passando o atarefado ogã e fui perguntar a ele. A resposta foi: Oxum, Iemanjá e Nanã.

Um ogã está encarregado de permanecer sóbrio nos rituais, cuidando da ordem.
Este, em particular, prefere se dizer zelador, que, a acreditarmos nele, é a tradução do iorubá. E devo dizer também que este é um funcionário da Sepromi. No entanto, sua conduta não aponta indício nenhum de racismo ou racialismo. Sempre foi gentil e cordial comigo.

Eu não tenho dúvidas de que não faltariam negros ateus e universitários para ocupar o lugar dele no cargo. Mas, como eleição é algo que ainda importa, alguma autoridade deve ter preferido fazer uma média com terreiros em vez de botar um acadêmico chato que deixasse todo mundo com raiva. Eu não tenho dúvidas de que o projeto original da Sepromi era promover separatismo racial. Mas o resultado é um funcionário público religioso que fica cuidando da vida em comunidade e conhece as pessoas todas. Mutatis mutandis, é o Padroado.

 A minha primeira saída serviu apenas para coletar informações. Avistei atabaques, que, pelo lugar onde estavam, eu ouviria de casa quando começasse. Os laçarotes amarrados nas árvores eram amarelos, sinal de que a festa deveria ser tradicionalmente para Oxum até a barragem (o pintor de paredes é velho e pegou esse temp). A homenagem a Iemanjá deve ser novidade pós-barragem e Nanã, olhando no Google, dá para descobrir que é dos pântanos. Tem pântano no rio.

Ouvindo os atabaques horas mais tarde, saio outra vez de casa. Vi na praça celebrações de candomblé que eu só tinha visto em aquarelas de Carybé. Creio que em Salvador essas festas não ocorram na rua, mas somente dentro de terreiros. Mulheres de saia rodada e turbante dançavam em círculo com homens de gorro, enquanto uma pequena orquestra de atabaques batucava e um homem cantava músicas religiosas em iorubá. Num dado momento, os dançarinos pegam os cestões e levam a um saveiro – tem que ser saveiro, uma embarcação arcaica, que navega sem motor.

O público era parecido com o de uma igreja católica, até porque é o mesmo. Há uma porção de velhinhas, inclusive a minha vizinha, que demorei a conhecer por causa da máscara com um santinho barroco impresso. A propósito, por aqui há muitas máscaras e camisas com fotos de esculturas de santos barrocos. Suponho que sejam distribuídos pela paróquia, e o público usava.

Num dado momento, a praça deu uma esvaziada por causa de outra procissão (ou cortejo, como chamam) que vinha trazer oferendas. O público ficava comparando os dois festejos e logo escolheu um ponto do qual dava para avistar ambos. Houve quem se preocupasse com a quantidade de cânticos por orixá, que poderia acabar só na vazante e impedir a entrega de oferendas. Ouvi também que os elogiados saveiros vinham de Coqueiros e Nagé. E ouvi até jovens confabulando sobre o ConectSUS, dizendo que a melhor vacina era a coronavac.

Apreciação da realidade
O burburinho e os comentários mostram que na rua há gente normal, até quando praticam uma religião tão diferente da da maioria dos leitores deste jornal. Os cânticos em iorubá mostram a força da espontaneidade cultural: não bonito uma língua ter se preservado em condições tão adversas?

Hoje eu poderia fazer um texto bastante ranzinza usando a cobertura que a Folha deu à invasão da igreja. Mas já sabemos que os jornalistas da Folha vivem numa bolha. A questão é se nós queremos viver. Se a aceitarmos, estamos perdidos. Não teremos sequer forças para cobrar a punição dos marginais que desrespeitaram o culto em Curitiba. O medo impede a apreciação da realidade. A realidade está ao nosso favor; não dos camisas vermelhas que acham que catolicismo é coisa de branco. Vá dar uma voltinha, sente numa praça, e duvido que não haja algo bonito para ver. Ficar em casa só lendo notícia é que não pode.

PS: Após escrever os primeiros parágrafos, vi o vídeo de ontem de Alexandre Garcia. Nele, descobri que a Igreja invadida é Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Eu poderia ter corrigido, mas Polzonoff gosta de PS.

Bruna Frascolla, jornalista - Gazeta do Povo - VOZES