Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER
Mostrando postagens com marcador Sicília. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Sicília. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A depredação da Igreja: Carta aberta a Polzonoff - Bruna Frascolla

Gazeta do Povo

Racialismo

Celebração da igualdade na Festa do Rosário.

Celebração da igualdade na Festa do Rosário. -  Foto: Lucilia Guimarães/ SMCS

Ficar trancado em casa lendo notícia faz mal para a cabeça. Já que eu não posso tirar o Sr. Polzonoff da casa dele e levá-lo para dar um passeio num local agradável, porque ele mora muito longe, talvez eu deva contar dos festejos que vi este domingo, na véspera do ataque de racialistas negros à Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Curitiba. O texto dele sobre isto foi deprê demais.

Burrice com PhD
Vemos esse tipo de notícia e temos que aprender a ser burros para entendê-la. É preciso esquecer, por exemplo, que a Igreja tem santos negros desde antes da descoberta do Brasil. Que a Santa Ifigênia, princesa da Etiópia, é representada com a Igreja na mão, dada a sua importância nos primórdios do cristianismo. De novo, este país de formação católica está muito acostumado a reverenciar uma mulher negra antes de vir uma mana de cabelo rosa e argola de boi no nariz querendo nos ditar ordens. Se alegarem que Santa Ifigênia não é uma santa das mais populares, digo que este não é o caso de São Benedito, negro nascido na Sicília à época do descobrimento do Brasil. Sua devoção saiu da Europa, atravessou o Atlântico e encontrou aqui os africanos que fizeram a mesma travessia.

Mas os negros católicos nem sempre se organizavam levando em conta a cor do santo. A padroeira preferida foi justo a Nossa Senhora do Rosário. Em Salvador, Cachoeira, Rio de Janeiro e Olinda existem igrejas homônimas chamadas Igreja Nossa do Rosário dos Pretos. Em São Paulo e no Recife, há as homônimas Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

Como os bem-nascidos da sociedade colonial não queriam se misturar a descendentes de escravos e a ex-escravos, a cor era uma barreira para o ingresso em ordens terceiras (leigas) e enterros privilegiados. Assim, em vez de chorar e pedir cota, esses negros bem-sucedidos criaram tais igrejas e irmandades. Justamente sob a padroeira Nossa Senhora do Rosário, atacada pelos camisas vermelhas.

É preciso uma burrice deliberada, estudada, falsificadora da realidade, para dizer que catolicismo é coisa de branco. Basta entrar numa igreja e olhar quem está lá dentro. Se a demografia do local não for atípica (como uma área de colonização ucraniana, por exemplo), a igreja estarecheada de pardos. 
A pessoa precisa dividir o mundo entre coisa de preto e coisa de branco, o que dá um trabalho danado. 
Curiosamente, porém, nenhum desses racialistas considera que a Universidade veio da Europa, de modo que só poderia ser branca.

E de fato, se você quiser repetir barbaridades racistas, é mais fácil granjear apoio de uma Fundação Ford (a este respeito, leia-se “Uma Gota de Sangue”, de Demétrio Magnoli), que vai bancar seus estudos num desses departamentos gringos de Black Studies, do que da senhorinha parda que está assistindo à missa, ou vendo o povo do terreiro ir entregar oferendas.

No lugar errado, segundo os cálculos
E aqui chegamos à necessidade de dar uma voltinha. Olhando-se de uma perspectiva calculista, eu poderia dizer que estou no pior lugar do mundo. O racismo negro avança, e eu sou uma branquela sozinha num dos lugares mais negros do Brasil. Para piorar, os racialistas botaram uma universidade aqui durante o petismo. A nova universidade atraiu ninguém menos que Kabengele Munanga para morar na cidade (tive a informação, mas nunca o vi pessoalmente). Para piorar mais ainda, vivo num estado governado pelo PT, que reserva uma área da administração para ser parquinho de racialistas. 

A Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi criada por Lula em 2003 e deixou de existir no plano federal. 
Na Bahia, temos uma Secretaria da Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), uma Seppir estadual (e eu sei que a expressão “igualdade racial” foi usada em oposição ao antirracismo porque um militante histórico assim me contou: ele queria vender ao governo uma campanha contra o racismo e a Seppir estava disposta a tratar consigo, desde que não usasse a palavra “racismo” e trocasse por “igualdade racial”. Como era um homem sério e um legítimo antirracista, recusou-se a abrir mão da palavra racismo).

A minha posição, em tese, deveria ser impossível. Se eu conduzisse a minha vida com base nas informações supracitadas, estaria desesperada, achando que preciso de um local muito bem policiado e de maioria branca para viver. Mas a minha posição serve, antes, para mostrar que essa gente não tem tanto poder quanto acha.

A rua lá fora

Estou na minha casa, lendo sob a janela, quando ouço chamarem o meu nome. É o pintor de paredes, um negro retinto que estava todo vestido com as cores da Etiópia – até a máscara. Avisa que virá fazer o serviço depois de terminar de pintar uma garagem e põe o papo em dia. Pergunto pelo dono do bar, que está meio sumido desde as cirurgias da vista. Ele especula que hoje o velho apareça, por causa da festa de Oxum que haveria entre uma, uma e meia, quando o rio enchesse. Aproveito para saber por que não houve nada no 2 de Fevereiro, contando que achei estranho não ter nada para Iemanjá. Ele responde muito enfático que 2 de Fevereiro é em Salvador, porque é Iemanjá e Iemanjá é água salgada. Como aqui é água doce, é Oxum.

Este é um conhecimento básico que eu já tinha. Por isso mesmo eu achei estranho, já que, desde a construção da barragem, a água do rio nesta altura é salobra. Deixei para averiguar in loco.  Calculei que, se ele dizia que ia ser uma, uma e meia, devia ser de duas em diante. Não foi difícil encontrar o ponto da festa: havia ramos de palmeiras decorando a descida para o ancoradouro e, mais adiante, na praça, uma estrutura coberta protegendo cestões cheios de flores. Eram as oferendas. Pergunto a alguns conhecidos para quem era a festa. A resposta já variou: Oxum e Iemanjá. Vi passando o atarefado ogã e fui perguntar a ele. A resposta foi: Oxum, Iemanjá e Nanã.

Um ogã está encarregado de permanecer sóbrio nos rituais, cuidando da ordem.
Este, em particular, prefere se dizer zelador, que, a acreditarmos nele, é a tradução do iorubá. E devo dizer também que este é um funcionário da Sepromi. No entanto, sua conduta não aponta indício nenhum de racismo ou racialismo. Sempre foi gentil e cordial comigo.

Eu não tenho dúvidas de que não faltariam negros ateus e universitários para ocupar o lugar dele no cargo. Mas, como eleição é algo que ainda importa, alguma autoridade deve ter preferido fazer uma média com terreiros em vez de botar um acadêmico chato que deixasse todo mundo com raiva. Eu não tenho dúvidas de que o projeto original da Sepromi era promover separatismo racial. Mas o resultado é um funcionário público religioso que fica cuidando da vida em comunidade e conhece as pessoas todas. Mutatis mutandis, é o Padroado.

 A minha primeira saída serviu apenas para coletar informações. Avistei atabaques, que, pelo lugar onde estavam, eu ouviria de casa quando começasse. Os laçarotes amarrados nas árvores eram amarelos, sinal de que a festa deveria ser tradicionalmente para Oxum até a barragem (o pintor de paredes é velho e pegou esse temp). A homenagem a Iemanjá deve ser novidade pós-barragem e Nanã, olhando no Google, dá para descobrir que é dos pântanos. Tem pântano no rio.

Ouvindo os atabaques horas mais tarde, saio outra vez de casa. Vi na praça celebrações de candomblé que eu só tinha visto em aquarelas de Carybé. Creio que em Salvador essas festas não ocorram na rua, mas somente dentro de terreiros. Mulheres de saia rodada e turbante dançavam em círculo com homens de gorro, enquanto uma pequena orquestra de atabaques batucava e um homem cantava músicas religiosas em iorubá. Num dado momento, os dançarinos pegam os cestões e levam a um saveiro – tem que ser saveiro, uma embarcação arcaica, que navega sem motor.

O público era parecido com o de uma igreja católica, até porque é o mesmo. Há uma porção de velhinhas, inclusive a minha vizinha, que demorei a conhecer por causa da máscara com um santinho barroco impresso. A propósito, por aqui há muitas máscaras e camisas com fotos de esculturas de santos barrocos. Suponho que sejam distribuídos pela paróquia, e o público usava.

Num dado momento, a praça deu uma esvaziada por causa de outra procissão (ou cortejo, como chamam) que vinha trazer oferendas. O público ficava comparando os dois festejos e logo escolheu um ponto do qual dava para avistar ambos. Houve quem se preocupasse com a quantidade de cânticos por orixá, que poderia acabar só na vazante e impedir a entrega de oferendas. Ouvi também que os elogiados saveiros vinham de Coqueiros e Nagé. E ouvi até jovens confabulando sobre o ConectSUS, dizendo que a melhor vacina era a coronavac.

Apreciação da realidade
O burburinho e os comentários mostram que na rua há gente normal, até quando praticam uma religião tão diferente da da maioria dos leitores deste jornal. Os cânticos em iorubá mostram a força da espontaneidade cultural: não bonito uma língua ter se preservado em condições tão adversas?

Hoje eu poderia fazer um texto bastante ranzinza usando a cobertura que a Folha deu à invasão da igreja. Mas já sabemos que os jornalistas da Folha vivem numa bolha. A questão é se nós queremos viver. Se a aceitarmos, estamos perdidos. Não teremos sequer forças para cobrar a punição dos marginais que desrespeitaram o culto em Curitiba. O medo impede a apreciação da realidade. A realidade está ao nosso favor; não dos camisas vermelhas que acham que catolicismo é coisa de branco. Vá dar uma voltinha, sente numa praça, e duvido que não haja algo bonito para ver. Ficar em casa só lendo notícia é que não pode.

PS: Após escrever os primeiros parágrafos, vi o vídeo de ontem de Alexandre Garcia. Nele, descobri que a Igreja invadida é Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Eu poderia ter corrigido, mas Polzonoff gosta de PS.

Bruna Frascolla, jornalista - Gazeta do Povo - VOZES

 

domingo, 28 de novembro de 2021

O sucesso da venda de casas em vilarejos da Itália a apenas 1 euro

O mundo se espantou com a notícia. Deu tão certo que agora faltam imóveis

 

Lembra daquela história de casas antigas e sem conservação à venda em vilarejos europeus pela bagatela de 1 euro, e que parecia boa demais para ser verdade? Pois bem, os programas lançados há algum tempo começam agora a trazer resultados, e eles são surpreendentes. Os compradores não apenas se comprometeram a reforçar os espaços — eles, de fato, fizeram isso. Casarões degradados tornaram-­se reluzentes imóveis, vilas que pareciam esquecidas no tempo recuperaram o frescor do passado. O projeto vingou, e isso é ótima notícia para as inúmeras cidades que o apoiaram.

O programa nasceu em 2008, quando Vittorio Sgarbi, ex-crítico de arte e então prefeito da cidade de Salemi, na Sicília, teve a ideia de cobrar 1 euro por moradia do centro histórico. Em troca, o comprador assumia o compromisso de restaurar o imóvel. Assim, ele conseguiria poupar recursos públicos que teriam de ser investidos na preservação da área, valor fora do orçamento municipal, e, ao mesmo tempo, atrairia um novo fluxo de pessoas para a região. Desde então, a proposta ganhou força e foi adotada em ao menos outras 33 regiões da Itália. Como não se trata de uma iniciativa federal, o número exato pode ser ainda maior.


 SAMBUCA DI SICILIA (Itália) - A cidade é uma das que aderiram ao projeto que tem atraído principalmente estrangeiros interessados em investir na revitalização em troca de uma moradia em um cenário romântico e e repleto de tradição - Alamy/Fotoarena; Easter Weiss/.

O empresário Douglas Roque, de 50 anos, foi um dos brasileiros atraídos pela promessa de moradia barata na Europa. Ele começou com um imóvel na cidade medieval de Fabbri­che di Vergemoli, na Toscana. Contou a amigos e familiares o que planejava e acabou reunindo um grupo de dezessete pessoas, que, juntas, compraram o primeiro condomínio de casas de 1 euro da Itália. Empolgado com as perspectivas, Roque investiu também em um moinho e em outro imóvel na região. A negociação, no entanto, envolve muita papelada. “O processo de compra é complexo e exige um estudo profundo sobre a trajetória da casa”, disse a VEJA. “A prefeitura não nos deu muitos documentos dos donos antigos".


 

É preciso levar em conta, evidentemente, o valor da reforma. Algumas das moradias ofertadas precisam de poucos reparos antes de abrigarem os novos donos. Outras, porém, não passam de ruínas, sem teto, repletas de animais e plantas mortas, com paredes tortas. Roque, por exemplo, gastou cerca de 8 000 euros com a sua casa — e as obras no condomínio começarão apenas em fevereiro de 2022. Mesmo assim, o investimento compensa. É difícil encontrar uma casa na região por menos de 40 000 euros, e alguns imóveis mais antigos em bom estado passam de 130 000 euros.

A grande quantidade de casas abandonadas na Itália rural se deve ao desenvolvimento das grandes cidades, que levou ao empobrecimento do campo. “No pós-guerra, o número de agricultores italianos caiu de cerca de 50% para menos de 7%”, diz Maurizio Berti, arquiteto especialista em revitalização da ONG Restoration Works. “Esses vilarejos desconhecidos têm uma herança riquíssima de valores, conhecimentos, tradições e beleza natural, além da excelente qualidade de vida.”

Foi essa combinação que atraiu a atenção da brasileira Rubia Andrade. Ela, que mora nos Estados Unidos, estava voltando de uma viagem em dezembro de 2018 quando leu uma reportagem sobre as casas à venda por 1 euro. Após a descrença inicial, ela começou a pesquisar mais sobre o projeto e, pouco depois, tornou-se proprietária de três imóveis na vila de Mussomeli, na Sicília. “Receber uma casa praticamente de graça em um lugar excelente, sem crime e com comida, vinho e pessoas ótimas é incrível”, afirma Rubia, que já gastou cerca de 12 000 euros na reforma. “Não há lugar melhor no mundo para mim.”

Embora tenha atrasado alguns dos projetos de revitalização, a pandemia mostrou a viabilidade do trabalho remoto e deve acelerar a busca pelas casas de 1 euro. Em algumas províncias italianas, as iniciativas foram suspensas por falta de imóveis. Por causa do sucesso desses projetos, o primeiro-mi­nistro Mario Draghi já anunciou um plano de recuperação de aproximadamente 2,3 bilhões de euros para a reforma de pequenos centros históricos espalhados pelo país, além de vilas rurais, sítios, parques e jardins.

Motivada pela experiência italiana, a inspiração cruzou as fronteiras. Croácia, França e Espanha conceberam programas semelhantes. Na Croá­cia, uma vila está vendendo casas por 16 centavos de dólar sob a condição de que o comprador viva na região por pelo menos quinze anos. “O principal resultado desses programas é a recuperação da riqueza cultural das áreas envolvidas”, afirma Berti. “Com eles, vilas que sofreram com o despovoamento e a degradação são trazidas de volta à vida.” De fato, o valor de iniciativas como essas é inestimável.

 Publicado em VEJA, edição nº, 2766 de 1 de dezembro de 2021

 Mundo - VEJA


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A orelha de Bolsonaro - Merval Pereira

O Globo

A obsessão de Bolsonaro

A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima perigosamente de um estado policial. Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é, opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.

[Informações, serviço de inteligência eficiente e presente, sempre foram necessários para a realização de um bom governo
No caso do governo Bolsonaro - vítima constante de uma oposição minúscula, desorientada, mas, adepta do quanto pior, melhor e que conta com o apoio da turma do mecanismo e  que também é vítima de ações de boicote por parte de outras instituições da República - ações de inteligência são necessárias não só como orientadoras na elaboração de políticas públicas, quanto como  garantidoras da continuidade do governo e no êxito das ações governativas.

Qualquer categoria que trabalhe contra o governo tem uma capacidade de causar prejuízos irreparáveis, se servidores públicos os prejuízos são maiores, se tratando de professores e policiais, pior ainda - os primeiros pela capacidade de disseminar críticas e ensinamentos destruidores e policiais, no mínimo, por serem capazes de ações negativas, especialmente as omissivas.]


Além de implicitamente admitirem que são fascistas, os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem as redes sociais para críticas a medidas do governo. [uso de redes sociais, nos locais e horários de trabalho, para fins particulares é inaceitável, pior ainda para criticar o governo. Oportuno lembrar que malhar o governo e ao mesmo tempo executar as funções inerentes ao seu trabalho são incompatíveis em todos os aspectos.
Se qualquer funcionário de uma empresa privada, qualquer que seja a área de atuação da empresa e do funcionário, que veicular nas nas redes sociais - ainda que fora do seu horário e local de trabalho - notícias contra a empresa,
seu patrão,  certamente se tornará um ex-funcionário.

O que torna lícito que um servidor público - pago com recursos públicos = por nós, contribuintes - possa malhar o órgão em que trabalha?]
Comentários que possam gerar “repercussão negativa à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão seguros para utilizarem os canais internos de reclamação. Esse clima de espionagem foi ampliado por um decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). [não será surpresa se um desses partideco - sem voto e sem programa de governo e sem chances de um dia governar - recorrer ao Poder Judiciário para que essa proíba o Poder Executivo da União de adotar medidas de organização e funcionamentos de órgãos dos escalões inferiores.]

Esses movimentos todos respondem à exigência do presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de investigações e denúncias.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da República que está sob investigação do Supremo. [curioso é quando eleitores do presidente Bolsonaro tentam usar a liberdade de expressão, são tolhidos sob o pretexto de que estão exagerando na amplitude da interpretação do conceito de  liberdade de expressão,mas quando se trata de interpretar autonomia funcional de órgãos, contra o presidente Bolsonaro, o céu é o limite do alcance interpretativo.
Aliás, ampliação do alcance interpretativo resultante de interpretação criativa da Consituição Federal, tem um exemplo extremamente claro: o 'inquérito das fake news' - os milhares de bytes gastos por todos os órgãos de imprensa criticando aquela peça investigativa, dispensam comentários.]

Não tendo podido nomear o amigo de sua família, delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.
Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”. 

Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como instituição, mas um governo que não é confiável.  
Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo dos planos dos opositores.
Bolsonaro tem no Palácio da Alvorada uma imensa escultura azul em forma de orelha, que será leiloada num gesto nobre pela primeira-dama Michelle em benefício de associações que cuidam de pessoas com problemas auditivos.
Talvez Freud explique. 


Merval Pereira,  jornalista - O Globo


domingo, 12 de abril de 2020

Mandetta pegou o vírus do holofote - Elio Gaspari

Declaração de Mandetta sobre tráfico e milícia pode ser atribuída à síndrome do holofote

Numa guerra, o poder público pode precisar de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo     

Ministro perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia"

O ministro Luís Henrique Mandetta perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar.”

Para um ministro da Saúde que construiu sua reputação falando no valor do conhecimento, só se pode atribuir essa declaração à síndrome do holofote. Dialogar com as milícias e com o tráfico é coisa que o poder público do Rio de Janeiro pratica há décadas. O próprio Mandetta já viu a promiscuidade suprapartidária que dialoga com a contravenção em Mato Grosso do Sul.

[Faltou ao ministro da Saúde o sentido de respeito pela instituição Presidência da República, o sentido de "liturgia do cargo" de Presidente da República, quando tratou o presidente da República por 'você' = ao dizer em conversa com o Chefe do Poder Executivo  'até você me demitir'.
O cargo de presidente da República exige que protocolos sejam seguidos.

Os que relutam em respeitar o presidente da República, tenham em conta que nos Estados Unidos da América,um modelo de democracia - o que deve incomodar em muito os inimigos do Trump - que lá existe a obrigação legal de sempre se dirigir ao presidente da República utilizando no mínimo, a tratamento "Senhor Presidente".] 


A essência da fala do ministro é um truísmo. Em diversas áreas o poder público precisa dialogar com a bandidagem para trabalhar em paz. O que ela não precisa é legitimá-lo, coisa que Mandetta fez. Essa legitimação não funciona apenas como um gesto simbólico. Ela ampara organizações criminosas. Além disso, tanto os traficantes como as milícias dividem-se em facções. Como se faria esse diálogo: numa assembleia?

O ministro da Saúde poderia se informar sobre as consequências de sua fala com o ministro da Justiça, mas faz tempo que o doutor Sergio Moro entrou numa quarentena. Além dele, poderia também recorrer ao acervo de conhecimentos da família Bolsonaro com milicianos. Ninguém deve se meter com decisões profissionais dos médicos, mas eles também não devem ir além delas, atropelando as leis.

Numa guerra, o poder público pode precisar de algum tipo de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo. Em 1941, o governo americano entendeu-se com a máfia do porto de Nova York para que ela não atrapalhasse seus embarques militares. Mais: em 1943, quando a tropa do general George Patton desembarcou na Sicília, cultivou a simpatia da máfia. O “capo” Don Calogero Vizzini tornou-se prefeito da cidade de Villalba e coronel honorário da exército americano. O preço desse diálogo seria um problema dos italianos.
O general Patton nunca assumiu publicamente a ajuda da Máfia.

O Itaú Unibanco dá o exemplo
O Itaú Unibanco anunciará amanhã uma doação de R$ 1 bilhão para o combate à Covid-19. O dinheiro irá para a fundação do banco e será administrado exclusivamente por um conselho de profissionais da saúde, onde estarão diretores de hospitais públicos e privados. Dinheiro na veia.

Essa será a maior iniciativa filantrópica já ocorrida no Brasil e sua lembrança ficará gravada na história da pandemia. Para se ter uma ideia do tamanho da doação, estima-se que em 2016 todas as iniciativas filantrópicas de corporações brasileiras somaram R$ 2,4 bilhões. (Nessa cifra entraram ações relacionadas com cultura, meio ambiente e educação, por exemplo.)
De onde eles estão, Olavo Setúbal (1923-2008) e Walther Moreira Salles (1902-2001), criadores dos dois bancos, terão um momento de orgulho.

Folha de S. Paulo e O Globo - MATÉRIA COMPLETA - Elio Gaspari, jornalista


quinta-feira, 19 de março de 2020

As escolhas difíceis, ou até cruéis, em tempos de coronavírus - Mundialista - VEJA

Como a doença mata idosos, jovens se sentem invulneráveis; médicos escolhem quem tem chances e políticos ainda rejeitam necessidade de união nacional

Festas na praia, nos parques, nas ruas. Da Europa aos Estados Unidos, jovens liberados das aulas e do peso na consciência caíram nas baladas espontâneas.  Os números agora confirmam o perigo invisível: 86%, ou seis em cada sete casos, não haviam sido detectados na China, o berço do vírus, no início da epidemia, propiciando sua explosiva expansão, controlada depois com isolamento populacional e tratamento em massa.

Na maioria dos países europeus, agora não dá para sair de casa e se reunir em grupos. Está todo mundo confinado e os deslocamentos têm que ser individuais. “Só queria comprar droga”, foi uma das desculpas mais inesperadas ouvida por policiais espanhóis que pararam um rapaz de madrugada para checar o que estava fazendo na rua.

Comércio de drogas e sexo profissional com contato direto são duas atividades abaladas pela era do corona. Em compensação, os canais digitais estão bombando com as “cam girls” que atendem fantasias sexuais via assinatura.  Os dilemas éticos dos médicos, evidentemente, são os mais difíceis: escolher quais pacientes têm mais chances de sobrevivência para ser entubados em UTIs. Além da idade e das complicações pré-existentes, um outro fator está sendo levado em conta por médicos italianos: a existência de familiares capacitados a tomar conta dos doentes que venham a se recuperar. Mesmo em condições sem o caráter de emergência de uma epidemia como a atual, entubar os muito idosos pode ter sequelas motoras e cognitivas. Sem cuidados da família, têm um fim de vida indigno e miserável..

Escolher morrer em casa, um desejo quase unânime de quem tem essa opção, vem acompanhado de uma complicação ética: o risco de contaminação de parentes mais próximos. Na era do corona, os que se vão têm que viver os últimos dias e morrer sozinhos. A proibição dos velórios quebra um tabu cultural imemorial. Numa cidade da Sicília, 48 parentes e amigos desafiaram a proibição e acompanharam o enterro de um ente querido. Foram intimidados. Dificilmente receberão a pena de três meses de cadeia prevista pelo estado de calamidade.

Mas não deixa de ser espantoso – embora explicável pela situação de emergência – ameaçar de prisão pessoas que cumprem um rito imprescindível. Alguns carros funerários ainda param diante de igrejas italianas, a pedido da família, para uma bênção à distância. 
Mas isso também está acabando. Não há veículos suficientes. Aliás, nem lugar para enterrar os corpos, com caixões enfileirados em igrejinhas ou até deixados nas casas, com um sistema de refrigeração, enquanto não dá tempo para recolhê-los.

No geral, 62% dos italianos apoiam o confinamento e outras medidas excepcionais decretadas pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte. As declarações dele, floreadas por expressões emocionais – “Vamos nos separar agora para poder nos abraçar depois” -, receberam até declarações de amor, entre memes fofinhos. Sem a adesão espontânea dos cidadãos, é difícil colocar países inteiros em isolamento. 
E mais ainda convencer a população a não vasculhar supermercados, agarrando-se ao último pacote de papel higiênico como uma tábua de salvação.

Manter a racionalidade – os estoques vão ser repostos – dura geralmente três segundos diante de prateleiras vazias que lembram a antiga União Soviética. “Somos uma democracia madura e adulta”, disse o primeiro-ministro Boris Johnson para explicar por que, ao contrário dos decretos taxativos de outros países europeus, estava “aconselhando” a população a ficar em casa, quando possível, só viajar em caso de extrema necessidade e não frequentar bares e restaurantes. Um comentarista algo cínico reagiu: “Se ele acha o povo maduro é porque certamente não entrou num supermercado nos últimos tempos e viu os carrinhos carregados até o topo”.


Blog Mundialista - Vilma Gryzinski, jornalista - VEJA 


quinta-feira, 14 de junho de 2018

O estilo bateu, levou de Salvini e o estupro e morte de Susanna

As complexidades de duas histórias que se entrelaçam, a bronca do novo líder italiano e o sacrifício uma menina judia de 14 anos na Alemanha 

A palavra xenofobia é invocada atualmente com uma facilidade espantosa.  Até os coitados dos brasileiros de Roraima, confrontados com a chegada em massa de venezuelanos em fuga do paraíso bolivariano, descobriram de repente que são perversos xenófobos, provavelmente piores do que Donald Trump. Tal como telefone e outras criações, sobretudo no campo científico, xenofobia é um termo inventado no século XIX com a junção de duas palavras gregas, embora não tenha nada a ver com a Grécia antiga (onde estrangeiros eram considerados bárbaros, com uma boa dose de razão, e sujeitos à escravização).
É xenofobia reagir negativamente à transformação de cidadezinhas medievais europeias em campos de refugiados?

Ver serviços públicos, como hospitais e escolas, sobrecarregados por novos e não pagantes usuários?
Acordar de manhã e ver ruas tomadas por um mar de homens curvados em preces para Alá?

Ter medo do aumento de crimes que pareciam confinados a incidentes isolados nos países desenvolvidos?
E, ao mesmo tempo, ter todos esses sentimentos e desejar uma solução humana para os migrantes em massa?

Duas histórias paralelas e sem nenhuma relação aparente que se desenvolveram esta semana mostram como é complicado lidar, pelos padrões da civilização ocidental, com grandes números de pessoas que querem sair de países miseráveis, quando não vivendo surtos de guerra e violência, e desfrutar das benesses das sociedades avançadas.Uma foi o bate boca de Matteo Salvini, o líder de um dos dois partidos que foram o novo e, como sempre, precário governo italiano, com o presidente Emmanuel Macron. Encarnação do mauricinho/melhor aluno da classe/garoto prodígio, Macron tem colocado as garrinhas de fora num campo em que só pode sair perdendo.

Adversários como Trump (espetado por tuítes, esmagado por um aperto de mão no Canadá) e Salvini (criticado pela atitude “cínica” e irresponsável” de fechar os portos a carregamentos de humanos vindos da África) não brigam na categoria peso punho de renda de Macron.  Projetado de uma liderança regional e um partido necessariamente excludente, a Liga do Norte, agora só Liga, para o duplo comando nacional (caminhando rapidamente para o comando único), Salvini sapateou com gosto. Exigiu desculpas e, com razão, uma abertura das fronteiras da França, se quiser dar lição de moral em outros países, especialmente numa Itália com 170 mil migrantes africanos para administrar. À Espanha, agora sob administração de esquerda, desejou boa sorte por receber o navio com migrantes rejeitado pela Itália.

Também com razão, por menos que se aprecie o seu estilo estridente, disse que os deslocamentos em massa para a Sicília e outros portos italianos mais próximos são um comércio. Vindos de um cinturão de países da África negra, os migrantes convergem para a Líbia, pagando caro a viagem. São transportados em botes até os navios de ONGs variadas que os levam para a travessia do Mediterrâneo.  Pedem asilo político na Itália e, se rejeitados, têm toda a rede de advogados públicos para infinitos apelos. Os que se perdem no trajeto garantido pelas ONGs podem acabar vítimas de naufrágios, aumentando a solidariedade e o desejo de ajudar dos europeus e americanos que se condoem com tanto sofrimento.

E o papa Francisco está sempre por perto para dizer que todos os países têm a obrigação de abrir fronteiras aos estrangeiros da África e do Oriente, mesmo quando existe o risco de aumentar a quantidade de atentados terroristas e outras ameaças à segurança.  Como filho de imigrantes italianos, o argentino mantém as mesmas concepções criadas pelas correntes humanas que rumaram para o Novo Mundo, inclusive o Brasil, nos séculos XIX e XX (todos com vistos, documentos de entrada, carimbos, exames médicos e outras exigências, lembre-se). Em condições histórias completamente diferentes, os migrantes atuais não têm nada dos lavradores italianos ou das governantas alemãs que acabavam na selva brasileira, trabalhando em condições duras, geralmente com sucesso notável.

O progresso econômico e social da Europa e dos Estados Unidos acabou criando uma contradição: migrantes clandestinos que chegam já esperando desfrutar das vantagens do estado de bem-estar social.  Existem também fenômenos culturais novos, inclusive o ressurgimento da identidade muçulmana, levando os novos migrantes a rejeitar qualquer tipo de integração aos novos países, confinando-se a espaços onde vigoram regras religiosas. E existem, claro, as pragas humanas, homens brutos, violentos e inconformados com um estilo de vida em que mulheres dividem todos os espaços e desfrutam de liberdade de movimentos.

Entra aí a história de Susanna Feldman, a menina de apenas 14 anos, estuprada por dois homens e estrangulada.  Filha de emigrantes judeus da Moldovia, Susanna desapareceu depois de sair com um grupo de amigas em Wiesbaden. Uma das meninas acabou contando para os pais que Susanna havia sido estuprada e assassinada, mas a polícia, alertada, disse que não havia o que fazer: sem corpo, sem crime.
É inacreditável , mas a investigação só começou quando outro menino, um refugiado afegão de 13 anos, contou ter ouvido a seguinte história: Ali Bashar, iraquiano de 21 anos, havia se exibido, contando ter estuprado e matado uma garota judia.

Detalhe: mesmo acusado de outro estupro, de uma menina refugiada de 11 anos, e de assalto, ele não só estava livre como pegou toda a família, passou no consulado iraquiano, conseguiu passaportes novos (facílimo, como se sabe) e voltou para o Curdistão, a região praticamente independente do Iraque.  A pedido das autoridades alemãs, Ali Bashar foi preso e deportado pelos curdos, sem cerimônias. Por qualquer padrão que se use, saiu ganhando.  A questão dos refugiados e migrantes clandestinos vem desestabilizando a Europa e provocando rachas na União Europeia – com suas palavras precipitadas e agressivas, Macron só piorou uma situação já ruim.

Até na Alemanha, onde Angela Merkel parece uma rocha inabalável até aos 1,2 milhão de estrangeiros aos quais abriu as portas, as tensões estão bombando.
O partido Alternativa para a Alemanha, da direita dura, atingiu a posição de terceiro mais votado única e exclusivamente devido à questão. Agora, Merkel enfrenta uma dissidência interna, do ministro do Interior, Horst Seehofer. Ele está traçando uma estratégia conjunta com o jovem primeiro-ministro da Áustria, Sebastian Kurz, e com o próprio Salvini. A peça principal seria rejeitar os refugiados que são registrados em outros países europeus – ou seja, todos, uma vez que não existe acesso direto à Alemanha.

Parece que Angela Merkel não gostou. Até agora, ela também não falou nada sobre o terrível martírio de Susanna Feldman, estuprada várias vezes por um falso refugiado, cujo pedido de asilo já havia sido rejeitado, e por um outro elemento do mal, um turco de 35 anos.  Colocar a pecha de criminosos em todos os migrantes é uma injustiça terrível. Mas também é repugnante tentar ignorar o medo e a revolta dos cidadãos confrontados com atos de barbárie e ainda por cima chamados de xenófobos.

Veja 

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Vingança, nunca!

Lei que deveria evitar abuso de autoridade contra o cidadão é distorcida para permitir que mandatários abusem no poder

“Eu me lembro, eu me lembro, era pequeno” (“Deus”, Casemiro de Abreu) é um dos versos que aprendi com minha mãe na primeira infância e que percutem em meu cérebro de idoso com a insistência de um apelo que ganha na redundância força mnemônica. Eu já era muito míope e foi com minha miopia profunda que aprendi a apreciar os prazeres da leitura à luz de candeeiro nas trevas do Semiárido. Fora gibis, revistas esportivas e literatura infantil, minha primeira leitura, digamos adulta, foi um perfil biográfico (magnificamente escrito por um padre chamado Chico Pereira) de seu pai, um cangaceiro também chamado Chico Pereira, ambos como eu nascidos às margens secas do Rio do Peixe. Um texto lindo sobre uma história exemplar: a aventura de uma recém-saída da adolescência que criou cada filho do homem de sua vida com um único objetivo: não vingar o pai. Era uma missão quase impossível ali pelos anos 20 do século 20 no sertão. Mas Jarda, nossa heroína, conseguiu e o autor era prova disso.

Casada por procuração, quando ainda brincava de boneca, a sertaneja altiva encontrou-se poucas vezes com o marido, perseguido pela lei, que ele desafiara para cumprir o destino de matar o assassino do pai. Os filhos homens de um sertanejo assassinado perdiam a honra e, com ela, o respeito geral, se deixassem vivos os responsáveis por sua orfandade. O ciclo terrível da vingança despovoava o ermo daquelas paragens com pertinácia similar às da esquistossomose e da fome, responsáveis pelos altíssimos índices de mortalidade infantil de meus conterrâneos que não sobreviviam ao primeiro ano de vida. Fotografias de cadáveres pueris velados em caixões cor de rosa ou tipoias rústicas disputavam com quadros de santos os flagrantes cotidianos dependurados nas paredes de taipa das casas da zona rural do Nordeste até bem depois de ultrapassada a primeira metade do século passado.

Cedo aprendi com minha mãe que adotar a lei primitiva de talião, do olho por olho, dente por dente, não é a atitude esperada de um ser humano de bem, para quem o zelo pela vida alheia não é apenas uma conversa para passar o tempo. Havia outras Jardelinas nos sertões de entonces e elas salvaram o futuro de gerações que já estão deixando a cena, caso de dona Ritinha Vilar Suassuna, mãe de Ariano. Ao evitar que a prole vingasse o pai, João, ela assegurou ao gênero humano a obra de gênio do filho escritor. Dona Ritinha, Jardelina e Mundica, minha mãe, ensinaram a seus filhos que a vingança, tida como sentimento nobre por nossos ancestrais, é uma torpe forma de evitar que a civilização ocupasse a terra seca, evitando com a ética e a fé na justiça inútil e abundante derramamento de sangue.

Há, porém, sertanejos que ainda chafurdam nessa sequência de extermínios, que fez a fama dos Sampaio e Alencar de Exu, Pernambuco; Maia e Suassuna de Catolé do Rocha, Paraíba; e Omena e Calheiros de Murici, Alagoas. Apesar do prenome sofisticado do grande historiador francês das origens do cristianismo, Renan carrega a vingança num gosto de sangue que pode não matar, mas persegue, chantageia e ata os punhos do inimigo. Foi esse espírito vingativo que o levou a preparar um projeto de lei com arrazoado nobre e consequências desastrosas para a justiça e a civilização de quem acredita na democracia como o regime dos iguais.

De posse da cadeira da qual já tinha saído para driblar punição justa, escapulindo à sorrelfa pelas brechas de uma lei feita de varas de cercas, pegou o sagrado princípio da inviolabilidade do cidadão comum contra o arbítrio do agente do Estado para torná-lo instrumento de vil vendeta. A lei do abuso de autoridade por ele engendrada é uma tentativa de algemar mãos que ameaçam coronéis de antanho que ainda mandam neste nosso país contemporâneo e evitar que o martelo dos juízes seja justo para todos. Para executar o projeto, prestes a ser votado, contou com o auxílio de um companheiro de plagas distantes, mas que tem costume de mentir, similar ao dos amarelinhos espertos das tradições dos cordéis do sertão alagoano.

O relator de seu desabusado projeto de abuso de autoridade, Roberto Requião, colega de partido, é notório pelo cinismo repetitivo e desenfreado com que mente. E sua maior mentira é a insistência numa postura falsamente ética, que só cospe da boca para fora. Renan já renunciou ao Senado para não ter de reconhecer a inexistência de uma boiada fictícia para explicar dinheiro sem origem para sustentar uma filha fora do casamento. Hoje responde a 13 processos na Justiça e é citado na lista dos 78 delatores da Odebrecht, na companhia do filho, governador de Alagoas.

Requião, três vezes governador do Paraná, hoje sede da “república de Curitiba”, da qual o Brasil espera punição exemplar para criminosos de colarinho branco, foi o relator indicado pelo Calheiros de Murici para relatar sua versão particular de vendeta, tornada lei contra abuso de autoridade. O paranaense protagonizou um dos espetáculos mais explícitos e grotescos de fraude eleitoral da História da democracia brasileira: o caso Ferreirinha. Esse foi o nome usado em sua campanha na eleição de 1990 por uma testemunha falsa que assumiu o papel de um pistoleiro inexistente, contando ter matado camponeses, cujas terras teriam sido ocupadas pelo empresário Oscar Martinez, pai de seu adversário, José Carlos Martinez.

Requião ganhou o segundo turno, mas o falso Ferreirinha foi desmascarado antes da posse: era Afrânio Luís Bandeira Costa, motorista da campanha do PMDB. Inculpado nas instâncias iniciais, o peemedebista tomou posse e estava a seis meses de terminar o mandato quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o inocentou a pretexto de erro no processo: Mário Pereira, vice não fora processado, como deveria tê-lo sido.

Segundo O Globo, Requião, que pertence à comissão que investiga os salários acima do teto constitucional no Senado, recebe R$ 64.234,11 por mês – um supersalário que inclui os R$ 33.763,00 (o teto constitucional) como congressista mais R$ 30.471,11 de “aposentadoria especial” de ex-governador. Aos repórteres do jornal disse que não abriu mão do benefício porque precisa dos recursos para pagar as indenizações a que é condenado. De acordo com o que o Diário dos Campos, de Ponta Grossa, no interior de seu Estado, publicou em 2009, o então governador era citado em 369 processos judiciais, que, em caso de condenação, lhe custariam R$ 1 bilhão – só os honorários judiciais, representavam R$ 16 milhões. A notícia sobre os vencimentos que ele mantém, segundo alegou, para pagar à Justiça foi reproduzida no Twitter do jornalista Fábio Campana. Em 1990, a PF identificou como sendo usada por esse jornalista, à época assessor de imprensa do senador, a máquina de escrever na qual foi redigido o falso testemunho de Ferreirinha, Esse personagem, ao contrário de seus inventores, não pode mais ser encontrado. Como se diz na gíria, ele tomou Doril.

O ex-governador leu seu relatório na quarta-feira 19 de abril e garantiu que tinha adotado medidas sugeridas pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e apoiadas pelo juiz Sergio Moro. Este negou. Mais uma vez, Requião mentiu e, assim, violou o decoro parlamentar. Mas continua ganhando a imunidade garantida pelos colegões de Senado. [esclarecimento indispensável: não aceitar sugestões do procurador-geral da República ou de qualquer autoridade, da mesma forma que recusar medidas apoiadas pelo juiz Sérgio Moro ou outra autoridade, é um DIREITO INALIENÁVEL de qualquer parlamentar.]
 
Como se diz nas montanhas da Sicília, do bandido Salvatore Giuliano,sono tutti buona gente. Buoníssima, não é mesmo? Deixar que essa gente se vingue preventivamente, e de forma indecente, de policiais federais, procuradores públicos e juízes que os investigam, processam e incriminam, é uma ignomínia. [LEMBRANDO SEMPRE que a denúncia tem que ser apresentada por um membro do Ministério Público e será julgada por um juiz.
Como de forma incontestável diz Reinaldo Azevedo, em seu Blog na  VEJA: "Em qualquer versão, a autoridade que for processada só poderá ser denunciada pelo Ministério Público e julgada pelo Judiciário. Digam-me cá: os senhores procuradores e o senhores juízes não confiam nas instituições às quais pertencem e na lisura de seus pares?"

Pois a vítima de tal vendeta será o cidadão, que continuará pagando a conta e sendo roubado, como dantes, sem que os larápios sejam apanhados, processados e julgados. Como bradou o filósofo e membro da Academia Paraibana de Letras, padre Francisco Pereira da Nóbrega, “vingança, não!”. Ou melhor: vingança, nunca!

Fonte: Blog do José Nêumanne