William Waack
Os fatos que atrapalham o presidente não são excepcionais, não fossem demônios
Jair Bolsonaro sente-se e age como homem cercado. Em parte, os motivos
para essa autopercepção são práticos e “palpáveis”. Em parte, sente-se
acuado por demônios de criação própria – em geral, a combinação dos dois
leva os personagens da política a cometer erros. É real o cerco que
sofre no Judiciário. O filho Flávio é investigado pelo conhecido esquema
das “rachadinhas”, uma série de inquéritos faz menções a ligações do
clã Bolsonaro com milícias no Rio, o TSE está tratando da acusação do
envio de mensagens durante a campanha eleitoral de 2018. Porém,
tratam-se de dores de cabeça que, tomadas isoladamente, até aqui não são
arrasadoras. [o ponto comum a todas, pelo menos até agora, é a falta de provas.
Por enquanto, e tudo indica assim permanecerá - lembrem do caso Temer - a base de tudo são indícios, vazamentos ilegais e coisas do tipo.]
Como é perfeitamente normal em sistemas políticos abertos, atribulações
com o Judiciário são fartamente utilizadas por adversários. Que agem
segundo o habitual método (nem foi a Lava Jato que inventou isso) dos
vazamentos de inquéritos ou, nos últimos dias, de divulgação de áudios
de figuras como Fabrício Queiroz, essa espécie de assessor “faz-tudo”
que é muito útil no dia a dia dos políticos e muito perigoso pelo o que
podem dizer.
Note-se que adversários, nesses casos mais recentes, não são apenas a
oposição composta por correntes políticas antagônicas, empenhadas como
em qualquer outro lugar em atrapalhar o governo. Os ex-companheiros de luta do próprio presidente são hoje seus mais
ferozes críticos, e os mais raivosos ao prometer vinganças. É o
resultado comum de ondas disruptivas como a das eleições de 2018: depois
da vitória, os diversos componentes dela vão disputar o poder entre si,
e Bolsonaro sempre favoreceu seu clã em detrimento do resto. Fatos
concretos levaram o “mito” a criar fortes laços de dependência em
relação a duas instâncias políticas que ele, como candidato, jurou que
desprezaria ou transformaria radicalmente.
A primeira é o âmbito do STF, através sobretudo da figura de seu
presidente, ministro Dias Toffoli, visivelmente empenhado em aliviar
dores de cabeça políticas e pessoais de Bolsonaro. Mas, se quiser, pode
aumentá-las substancialmente. A segunda é a esfera da “política
tradicional”, à qual Bolsonaro se dedica agora de forma tácita, porém
não declarada, pois admitiu com perigosa lentidão que não governa sem
ela.
O desarranjo de suas próprias forças, ilustrado no episódio das brigas
do PSL, tem como óbvia consequência a necessidade incontornável de se
apoiar e depender de outros grupos, a exemplo do que já acontecia com a
liderança do governo no Senado. Com um pouco de distanciamento,
percebe-se que esse contexto acima nada tem de excepcional, muito menos
as brigas de Bolsonaro com setores da imprensa (pode-se dizer que há
décadas a história política do Brasil está recheada desse tipo de
conflito entre governantes e grupos de mídia).
Ocorre que os verdadeiros donos de sabedoria política tratam de
exercitar a serenidade e o cálculo frio, essenciais para se navegar em
águas turbulentas – mas o que Bolsonaro está exibindo é a caricatura de
um personagem consumido no caldeirão fervente de seus próprios demônios,
às vezes chamados de “hienas”. Ele prefere enxergar sobretudo
conspirações e inimigos ocultos (seu ídolo, Donald Trump, fala sempre de
um “deep state”) mancomunados para derrotá-lo em sua missão divina e
tornada possível por um milagre (sobreviver à facada), num tipo de visão
de mundo que inclui mesmo o resto do mundo(conspirações ou forças do
mal arquitetando-se no Chile, Argentina, óleo nas praias, Amazônia,
etc.). [os itens entre parênteses são reais, causas conhecidas;
o que demonstra ser um novo ataque dos inimigos do Brasil é o óleo na praia - até os leigos hão de concordar que um vazamento de óleo que perdura a faz meses é estranho - será que algum 'poço de petróleo', deu uma de vulcão, entrou em erupção, com intervalos pequenos e irregulares, lançando petróleo no mar e a 'lava' (no caso petróleo) segue sempre o mesmo rumo = costas brasileiras?]
Lutando contra seus demônios, vai sendo engolido pelo “buraco” (a
expressão é do próprio Bolsonaro) no qual está um País estagnado,
recuperando-se muito lentamente da mais brutal recessão da sua história,
habitado por milhões cujas expectativas não atendidas crescem tanto
quanto sua impaciência – isto sim, é diabólico.
William Waack - O Estado de S. Paulo