Este ano, pela 1ª vez em uma década, os EUA deixam de constar entre os cinco campeões mundiais de execuções legalizadas
A ideia era
solucionar um urgente problema de prazo de validade, se possível através
de uma operação veloz, dentro da lei e sem falhas. Pelo plano original
do governo do Arkansas, um dos 19 estados americanos onde ainda vigora a
pena de morte, oito execuções seriam realizadas num espaço de onze
dias. E o anunciado calendário de execuções a toque de caixa teria duas
mortes a cada data — nos dias 17, 20, 24 e 27 de abril.
Os próprios partidários da pena capital se surpreenderam, pois o apoio popular a execuções nos Estados Unidos havia caído ao nível mais baixo dos últimos 25 anos, o número de sentenciados à morte baixara para patamares de 1972, e dois de cada cinco americanos hoje se declaram contrários à pena capital — maior índice em 44 anos. Neste ano de 2017, pela primeira vez em uma década, o país deixa de constar entre os cinco campeões mundiais de execuções legalizadas.
Por que, então, atropelar essa curva? A pressa em fazer andar a fila dos 37 condenados à morte foi do governador Asa Hutchinson, e por um motivo que vem afetando de forma radical a execução da pena: no sistema penitenciário do Arkansas, a partir de hoje, 30 de abril, expirava a data de validade do estoque de midazolam, uma das três drogas que compõem o coquetel injetável administrado por carrascos. E não há reposição fácil para o sedativo dos condenados.[será que os assassinos sedaram suas vítimas?
que se troque o coquetel letal pela cadeira elétrica ou mesmo enforcamento. Ou mais simples se suprima o sedativo, as duas drogas restantes cumprirão a função de executar o condenado.
Quanto mais dolorosa for a dor imposta ao condenado, mais exemplar será o castigo.]
Como os fabricantes e distribuidores evitam vender seu produto para a justiça criminal, as chances de reabastecimento são cada vez mais minguadas, irregulares e arriscadas. São três as drogas por injeção letal intravenosa que levam a óbito o condenado afivelado numa maca. E são dois os carrascos obrigatoriamente anônimos e invisíveis que, através da abertura na parede de uma saleta adjacente, acionam as seringas das quatro sondas inseridas nos braços do condenado.
Primeiro um sedativo (midazolam, pentobarbital ou sódio tiopental) destinado a apagar o preso; em seguida uma dose de brometo de vecurônio, que em versão inofensiva pode ser chamado de relaxante muscular, mas numa câmara da morte é um bloqueador neuromuscular paralisante. Só então entra em cena o mortífero cloreto de potássio, que faz cessar o funcionamento cardíaco.
O problema está na alarmante falta de saber científico embutida na execução desses procedimentos. Adam Rogers, da revista “Wired” fez bem em lembrar que o medico legista Jay Chapman, criador do celebrado coquetel letal de três drogas, em 1977, não apresentou um único estudo de comprovação científica para fundamentar a receita. O método acabou sendo adotado pela justiça criminal por ter aparência mais humana, moderna, e pode aposentar a mal afamada cadeira elétrica, a câmara de gás de nitrogênio, o pelotão de fuzilamento e a forca. A pena de morte adquiria respeitabilidade, era clean.
Do ponto de vista das testemunhas, talvez. Para o condenado, nem tanto, pois a fórmula do dr. Chapman, além de não ter sido submetida aos testes científicos de regra, também sofreu duros reveses de mercado. O tranquilizante do protocolo original teve de ser substituído por sedativos alternativos como o midazolam, de efeitos erráticos, depois que os grandes fabricantes europeus deixaram de fornecer drogas à justiça criminal americana, na virada do milênio.
A partir daí começaram a se multiplicar casos de execuções esquisitas, com condenados irrequietos no meio do procedimento. O marco mais cruel desse desvio foram as quase duas horas de suplício a que foi submetido o condenado Joseph Wood, em 2014, que foi injetado 15 vezes e teve 640 microconvulsões antes de poder expirar na maca.
Dado que o Conselho de Anestesiologia dos Estados Unidos proíbe os profissionais do país de trabalharem para a pena de morte, o sistema vai tateando com o brometo de vecurônio que sufoca sem que a vitima possa se manifestar, pois está paralisada, e o cloreto de potássio queima até as entranhas.
Será difícil aperfeiçoar a injeção letal a ponto de torná-la uma punição “nem cruel nem incomum”, como manda a Oitava Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Ao contrário. O método está se tornando cada vez mais inseguro. Ledell Lee, executado na semana passada, morreu pela injeção de uma droga com validade quase expirada, uma outra comprada pela Justiça sob falsa alegação de uso hospitalar, e uma terceira negociada como “doação”, num estacionamento, com um fornecedor que preferiu ficar anônimo. Nessa toada algum cartel mexicano ainda haverá de se interessar pelo negócio.
Ao final, devido à enxurrada de recursos, maratonas jurídicas, petições de advogados e pareceres de última hora da Corte Suprema, foram quatro e não oito as execuções levadas a cabo até o dia 27. Em alguns casos, como o de Don Davis, o condenado já havia sido retirado da cela, havia feito a última refeição e faltava apenas um minuto para a meia-noite quando ele recebeu a notícia de que continuaria vivo.
Outros, como Ledell Lee, de 51 anos, que manteve a inocência até morrer, não escaparam. Em 1993 fora acusado do assassinato de uma jovem mãe na presença da filha Ashley, então uma menina de 6 anos. Só que as amostras de sangue em seu sapato nunca foram submetidas a análise, e os fios de cabelo encontrados no local tampouco passaram por DNA; impressões digitais desconhecidas da cena do crime permaneceram desconsideradas. “Um homem negro entrou em casa”, dissera à época a menina Ashley. Ao completar 10 anos , ela voltou a prestar um testemunho carregado de influência da família e dos promotores.
Em 2015, já mulher, Ashley deu um último depoimento perante a comissão de avaliação penal do caso Ledell Lee. Segundo o “New York Times”, ela declarou não mais acreditar que a pena de morte traga justiça. Cansara de reviver o crime: “Estou pronta para tocar a minha vida”.
Fonte: O Globo - Dorrit Harazim é jornalista
Os próprios partidários da pena capital se surpreenderam, pois o apoio popular a execuções nos Estados Unidos havia caído ao nível mais baixo dos últimos 25 anos, o número de sentenciados à morte baixara para patamares de 1972, e dois de cada cinco americanos hoje se declaram contrários à pena capital — maior índice em 44 anos. Neste ano de 2017, pela primeira vez em uma década, o país deixa de constar entre os cinco campeões mundiais de execuções legalizadas.
Por que, então, atropelar essa curva? A pressa em fazer andar a fila dos 37 condenados à morte foi do governador Asa Hutchinson, e por um motivo que vem afetando de forma radical a execução da pena: no sistema penitenciário do Arkansas, a partir de hoje, 30 de abril, expirava a data de validade do estoque de midazolam, uma das três drogas que compõem o coquetel injetável administrado por carrascos. E não há reposição fácil para o sedativo dos condenados.[será que os assassinos sedaram suas vítimas?
que se troque o coquetel letal pela cadeira elétrica ou mesmo enforcamento. Ou mais simples se suprima o sedativo, as duas drogas restantes cumprirão a função de executar o condenado.
Quanto mais dolorosa for a dor imposta ao condenado, mais exemplar será o castigo.]
Como os fabricantes e distribuidores evitam vender seu produto para a justiça criminal, as chances de reabastecimento são cada vez mais minguadas, irregulares e arriscadas. São três as drogas por injeção letal intravenosa que levam a óbito o condenado afivelado numa maca. E são dois os carrascos obrigatoriamente anônimos e invisíveis que, através da abertura na parede de uma saleta adjacente, acionam as seringas das quatro sondas inseridas nos braços do condenado.
Primeiro um sedativo (midazolam, pentobarbital ou sódio tiopental) destinado a apagar o preso; em seguida uma dose de brometo de vecurônio, que em versão inofensiva pode ser chamado de relaxante muscular, mas numa câmara da morte é um bloqueador neuromuscular paralisante. Só então entra em cena o mortífero cloreto de potássio, que faz cessar o funcionamento cardíaco.
O problema está na alarmante falta de saber científico embutida na execução desses procedimentos. Adam Rogers, da revista “Wired” fez bem em lembrar que o medico legista Jay Chapman, criador do celebrado coquetel letal de três drogas, em 1977, não apresentou um único estudo de comprovação científica para fundamentar a receita. O método acabou sendo adotado pela justiça criminal por ter aparência mais humana, moderna, e pode aposentar a mal afamada cadeira elétrica, a câmara de gás de nitrogênio, o pelotão de fuzilamento e a forca. A pena de morte adquiria respeitabilidade, era clean.
Do ponto de vista das testemunhas, talvez. Para o condenado, nem tanto, pois a fórmula do dr. Chapman, além de não ter sido submetida aos testes científicos de regra, também sofreu duros reveses de mercado. O tranquilizante do protocolo original teve de ser substituído por sedativos alternativos como o midazolam, de efeitos erráticos, depois que os grandes fabricantes europeus deixaram de fornecer drogas à justiça criminal americana, na virada do milênio.
A partir daí começaram a se multiplicar casos de execuções esquisitas, com condenados irrequietos no meio do procedimento. O marco mais cruel desse desvio foram as quase duas horas de suplício a que foi submetido o condenado Joseph Wood, em 2014, que foi injetado 15 vezes e teve 640 microconvulsões antes de poder expirar na maca.
Dado que o Conselho de Anestesiologia dos Estados Unidos proíbe os profissionais do país de trabalharem para a pena de morte, o sistema vai tateando com o brometo de vecurônio que sufoca sem que a vitima possa se manifestar, pois está paralisada, e o cloreto de potássio queima até as entranhas.
Será difícil aperfeiçoar a injeção letal a ponto de torná-la uma punição “nem cruel nem incomum”, como manda a Oitava Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Ao contrário. O método está se tornando cada vez mais inseguro. Ledell Lee, executado na semana passada, morreu pela injeção de uma droga com validade quase expirada, uma outra comprada pela Justiça sob falsa alegação de uso hospitalar, e uma terceira negociada como “doação”, num estacionamento, com um fornecedor que preferiu ficar anônimo. Nessa toada algum cartel mexicano ainda haverá de se interessar pelo negócio.
Ao final, devido à enxurrada de recursos, maratonas jurídicas, petições de advogados e pareceres de última hora da Corte Suprema, foram quatro e não oito as execuções levadas a cabo até o dia 27. Em alguns casos, como o de Don Davis, o condenado já havia sido retirado da cela, havia feito a última refeição e faltava apenas um minuto para a meia-noite quando ele recebeu a notícia de que continuaria vivo.
Outros, como Ledell Lee, de 51 anos, que manteve a inocência até morrer, não escaparam. Em 1993 fora acusado do assassinato de uma jovem mãe na presença da filha Ashley, então uma menina de 6 anos. Só que as amostras de sangue em seu sapato nunca foram submetidas a análise, e os fios de cabelo encontrados no local tampouco passaram por DNA; impressões digitais desconhecidas da cena do crime permaneceram desconsideradas. “Um homem negro entrou em casa”, dissera à época a menina Ashley. Ao completar 10 anos , ela voltou a prestar um testemunho carregado de influência da família e dos promotores.
Em 2015, já mulher, Ashley deu um último depoimento perante a comissão de avaliação penal do caso Ledell Lee. Segundo o “New York Times”, ela declarou não mais acreditar que a pena de morte traga justiça. Cansara de reviver o crime: “Estou pronta para tocar a minha vida”.
Fonte: O Globo - Dorrit Harazim é jornalista