As eleições diretas para presidente da República permaneceram
interditadas no Brasil durante quase três décadas porque os militares
acreditavam que os brasileiros não sabiam votar. [um dos que tinham este pensamento era Pelé - e as eleições do presidiário Lula e da escarrada ex-presidente Dilma, provam, sem sombra de dúvida, que o Rei do futebol estava certo.] Permanecem com a mesma
visão sobre seus compatriotas, ainda que tenham voltado ao poder, 30
anos depois, desta vez, em grande parte, com o aval da maioria.
A mais abrangente pesquisa já realizada com militares, prestes a ser
publicada em livro, "Para Pensar o Exército Brasileiro no Século XXI"
(Eduardo Raposo, Maria Alice Rezende de Carvalho e Sarita Schaffel,
PUC-Rio), detectou que esta é a percepção predominante entre militares
de todas as patentes. O baixo nível educacional da população e a
corrupção dos políticos somaram quase 90% das respostas quando o
questionário elaborado pelos autores lhes apresentou uma cartela de
alternativas para os fatores mais prejudiciais à democracia no Brasil. As outras opções sugeriam que o jogo democrático poderia ser
comprometido pela concentração de poder no Executivo, pouco permeável à
pressão ou controle dos eleitores, ou a incompetência dos governantes.
Levantavam hipóteses como a falta de organização política do povo e de
tradição partidária, reveladores da fragilidade da cultura política.
Propunham ainda o corporativismo e o clientelismo, sinais da captura do
Estado por interesses encastelados. E, finalmente, a pobreza e a
desigualdade social, sinais da baixa eficácia das instituições
democráticas.
Todas essas alternativas, no entanto, tiveram adesão residual. Os
militares, de aspirantes a generais, resolveram concentrar as
explicações na inabilitação dos representados e nos vícios de seus
representantes. Quanto mais alta a patente, maior a adesão ao binômio
"falta de educação" e "corrupção" para explicar os males da democracia
nacional. Entre generais de Exército, topo da carreira, 100%
subscreveram a tese de que eleitor e eleito são inaptos. A pesquisa precede a chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro e de
seus oito ministros militares, mas é o que de mais próximo existe sobre
os valores da corporação que voltou a mandar no país. Ampliou, em número
de entrevistados e em temas abordados, a pesquisa, também publicada
pela PUC-Rio, "A Construção da Identidade do Oficial do Exército
Brasileiro" (Valor, 04/01/2019).
Fruto de uma parceria entre os ministérios da Defesa e da Educação e a
PUC do Rio, a iniciativa se destinava, originalmente, a aproximar as
Forças Armadas da vida democrática numa época de desinteresse
generalizado pela temática militar. O pressuposto de que a apatia da
opinião pública em relação às questões militares era um obstáculo à
modernização da corporação havia sido incorporado à Estratégia Nacional
de Defesa, aprovado em 2008. Uma década depois, os militares se recomporiam com o ex-capitão rebelde,
Jair Bolsonaro. De carona em sua popularidade, as questões militares se
imporiam à agenda da nação para derrotar aqueles que, do centro à
esquerda, haviam buscado reformular sua incorporação à agenda
democrática pisando em dois vespeiros, a retirada de prerrogativas (MP
2215 sob FHC) e a Comissão da [IN]Verdade (sob Dilma Rousseff).
Às vésperas da sucessão presidencial de 2014 foi distribuído um
questionário com 70 perguntas para mais de 20 mil oficiais, a grande
maioria (93%) de carreira. No ano em que a pesquisa foi a campo, apenas o
vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ministro da Defesa, Fernando
Azevedo e Silva, entre os militares do primeiro escalão, estavam na
ativa. Os pesquisadores receberam 2.726 questionários de volta. Os
resultados levaram dois anos para ser tabulados e analisados e agora
chegam ao público numa edição limitada a pesquisadores. Se tudo depende do grau de instrução do eleitor e da punição dos
corruptos, como sugerem as respostas colhidas, um povo que se organiza
por uma mediação de interesses que favoreça a redistribuição de poder e
renda flerta com a baderna. Esta percepção corrobora a disposição do
presidente da República de tipificar ações de movimentos sociais, a
exemplo das invasões de terras, como ato terrorista.
Essa perspectiva, no entanto, só parece ter sido revelada com a
iminência do poder. Na época da pesquisa, a desigualdade social foi
pouco valorada como fator de deslegitimação da democracia. Sete em cada
dez oficiais que responderam à pesquisa não veem como o apartheid social
em que vive o país poderia levar à emergência de movimentos
extremistas. Os generais de exército aparecem aqui, mais uma vez, como
um bloco uníssono, sem uma única discordância: todos descreem do poder
de erosão da disparidade de renda.
Os militares mantêm, em grande parte, seus valores mais intocados do que
outras corporações porque têm mais controle sobre a porta de entrada
dos oficiais - a Academia Militar de Agulhas Negras (Aman) é o único
caminho até o generalato - e também porque a estrutura da carreira
favorece a convivência entre seus pares e suas famílias mais do que
qualquer outro corpo de servidores do Estado.
O perfil colhido pelos pesquisadores da PUC-Rio, no entanto, mostra que,
por outro lado, uma boa parte dos oficiais têm pais inseridos no
mercado de trabalho formal e irmãos e cônjuges no meio universitário. É
uma inserção capaz de reproduzir, na corporação, uma palheta mais
aproximada das cores da população brasileira. O Exército que vencera Guerra do Paraguai com a incorporação de muitos
negros e mulatos forros passou por um processo de 'branqueamento' ao
longo da República que se mantém até hoje. Enquanto o último IBGE/PNAD
(2014) identifica uma minoria de brancos no país (45,5%), no Exército
ainda são larga maioria (66,4%).
No perfil religioso, ao contrário, a mudança foi mais acelerada do que
aquela que se deu no conjunto da população. Metade dos respondentes é de
católicos, média inferior à da população (64%). Em segundo lugar, ao
contrário do que acontece entre os civis, vêm os kardecistas e não os
evangélicos. Os generais são mais católicos do que seus subordinados. Por mais que a carreira absorva contingentes de fora das famílias da
caserna, são os filhos de militares que mais frequentemente atingem o
topo da corporação. Chega a 80%, entre generais, a cota que seguiu a
carreira dos pais. A proporção cai pela metade entre os aspirantes.
O perfil colhido sugere antes uma aproximação entre os valores militares
e a classe média brasileira do que a popularização da corporação. A
proximidade explica, em grande parte, o êxito da carona dos militares na
candidatura Jair Bolsonaro e fundamenta, ainda que parcialmente, a tese
de um dos autores do livro, o professor Eduardo de Vasconcellos Raposo,
sobre o fenômeno - a da confluência entre os valores da maioria
eleitoral e aqueles predominantes no meio militar. Bolsonaro não foi
eleito por ser ex-capitão, mas por ter sido identificado como algoz da
corrupção, da violência e do PT. A pesquisa mostra que a identidade dos
militares com os valores de um segmento expressivo da população
corrobora a legitimação do seu poder crescente sobre o governo.