O chefão se vai mas o morro continua vulnerável
Não escondo
que sempre quis a queda de Eduardo Cunha. O ideal seria uma queda
conduzida pela própria Câmara. Mas a Câmara, que já era problemática,
foi devastada pelos 13 anos do governo petista, alguns em sintonia com o
próprio Eduardo Cunha. Mensalão, mensalinho, os métodos de ambos sempre
foram o de comprar deputados.
Confesso que, nos
primeiros anos, subestimei Cunha. Ele me parecia apenas um sobrevivente
do governo Collor em busca de um modesto lugar na política, de onde
faria seus pequenos negócios. O máximo que previa para ele era chefiar
uma pequena quadrilha de deputados fluminenses que tinha o hábito de
convocar empresas e negociar propinas para desconvocá-las. Não o conheci
como presidente da Câmara. Apenas vi sua ascensão à liderança do PMDB.
Era um tipo ideal para um governo corrupto. Conhecia o regimento interno
como ninguém, financiava campanhas e, certamente, garantia um dinheiro
extra para deputados necessitados.
O papel de
Cunha era muito mais amplo que o de Severino Cavalcanti, que se limitava
a representar o baixo clero. Cunha viabilizava agendas, conhecia
atalhos, todos os grandes negócios passariam por ele. Não é à toa que se
tornou o maior criador de jabutis no Parlamento. Jabutis são emendas
anexadas às medidas provisórias para atender a interesses privados. As
emendas são como jabutis que não sobem em árvore: estão lá porque
alguém, ou algum interesse, os colocou.
Pessoalmente,
tive a oportunidade de ver Solange de Almeida colocar um jabuti
isentando a indústria nuclear de impostos. Ao questioná-la, percebi que
estava apenas cumprindo tarefa para Cunha. No universo político do Rio
de Janeiro, Cunha nunca representou muito, embora, com a riqueza
crescente, sua votação tenha crescido também. Aliado de Cabral, Pezão,
Paes, Picciani, fixou-se na Câmara como a plataforma de sua fortuna
pessoal. Nossos santos nunca combinaram. Em primeiro lugar, porque seus
negócios cheiravam mal, embora nem sempre deixassem rastros visíveis.
Ligeiramente estrábico, Cunha evita o confronto de olhares e o faz para
se manter mais confortável dentro da caverna em que formula suas
maquinações.
Embora tenha votos evangélicos, a
partir da conquista de um espaço numa emissora religiosa, Cunha não
fazia proselitismo e só avançou alguns temas da pauta conservadora
quando se tornou presidente. Mas há algo nele que o distingue dos
deputados evangélicos. A maioria deles é sincera na legitima defesa de
suas ideias. A fé evangélica de Cunha parece o resultado de um longo
planejamento, como se fosse o marqueteiro de si próprio e escolhesse sua
imagem como resultado de um plano eleitoral. A divulgação de suas
contas na Suíça e dos gastos familiares no exterior revelam apenas um
milionário corrupto fingindo de piedoso fiel. O que deveria lhe valer
uma condenação extra pela farsa.
Quando Cunha
enfrentou e ganhou do governo, a oposição hesitou em tomar partido. Foi
visto como um grande aliado do impeachment. Alguns de seus amigos
chegaram a pedir anistia pelos serviços prestados contra o PT. De novo,
teríamos de rasgar a lei e mergulhar na própria lógica petista para
aceitar uma tese dessas. Não há previsão na lei brasileira para quem diz
que rouba para dar aos pobres. Não há anistia prevista para quem se
corrompe até a medula mas ajuda na queda de um governo corrupto. [as leis brasileiras, incluindo a Constituição, não autorizam ninguém - o que inclui um SUPREMO ministro - ignorar a Constituição e criar uma DISPOSITIVO Ilegal, para derrubar um político acusado de corrupção.
Por esse caminho, qualquer dia algum maluco assassina um corrupto e alega que está limpando o Brasil.] Se não
fosse deputado, Eduardo Cunha já estaria preso em Curitiba há muito
tempo. Ele manipula, intimida, faz tudo para que não seja julgado pelo
Conselho de Ética. Ao derrubá-lo, o Supremo admite que Eduardo Cunha
sabota o processo de seu próprio julgamento na Câmara. E admite,
indiretamente, que ele sequestrou a instituição, incapaz de se livrar
dele.
No rastro da diabólica passagem de Cunha,
muitas perguntas terão de ser respondidas no futuro: como foi possível
uma Câmara que, majoritariamente, escolhe para presidi-la o mais
experiente dos bandidos? Como foi possível manter uma incondicional base
de apoio, mesmo depois de revelada sua fortuna na Suíça? Por que existe
na cultura brasileira uma sedução pela esperteza como uma qualidade em
si?
Quando tudo for esclarecido e o restante dos
crimes de Cunha vier à tona, o 5 de maio será uma data para se lembrar.
Mas se não compreendermos como tudo foi possível, a ponto de governo
central e parlamento estarem sob poder de uma mesma quadrilha separada
apenas nos últimos meses, talvez não possamos avançar. Quadrilhas se
fragmentam, buscam novos territórios. Vemos isso a todo instante no Rio.
O fato de trocarem tiros não inocenta nenhuma das partes. Se um chefe
do crime parte e tudo fica igual no território abandonado, é muito
grande a tentação de ocupar o morro e substitui-lo.
É
preciso realmente fazer valer a lei no Congresso. As pessoas comuns
amargam cadeia em Curitiba. Os políticos com foro privilegiado nadam de
braçada. Seus colegas são fracos para derrubá-los. Os ministros do STF,
lentos e burocráticos, hesitam em intervir. O chefão se vai mas o morro continua vulnerável.