José Padilha enfiou uma novela na série da Lava-Jato, mas contou a trama do andar de cima com correção
É bom
negócio ver a “O mecanismo”, a série de José Padilha na Netflix. Seus oito
episódios contam a história da Lava-Jato até as vésperas da prisão de Marcelo
Odebrecht. Eles giram em torno de dois eixos. O
primeiro é uma novela-padrão onde há sexo, traições, doenças, rivalidades,
muitos palavrões e até mesmo uma menina com deficiência. A quem interessar
possa: o agente Ruffo nunca existiu. Pena que ele seja um narrador do tipo
“faço sua cabeça”, numa espécie de reencarnação do Capitão Nascimento de “Tropa
de elite”. A agente Verena é uma exagerada composição.
É a
segunda história, a da Operação da Lava-Jato, que valoriza a série. E é ela que
vem provocando a barulheira contra Padilha. A ex-presidente Dilma Rousseff
(Janete Ruskov na tela) acusa “O mecanismo” de duas fraudes. Jogaram para
dentro do consulado petista a operação abafa que decapitou as investigações das
lavagens de dinheiro do caso Banestado, ocorrido durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso. (Há uma referência a “dez anos depois”, mas ela ficou
embaralhada.) Noutro lance, puseram na boca de Lula (Higino, igualzinho ao
original, graças ao ator Arthur Kohl) a frase “é preciso estancar a sangria”,
do senador Romero Jucá. Também não há prova de que “Higino” tenha pedido a
“Janete” para trocar a direção da “Polícia Federativa”.
A
narrativa do caso será útil para muita gente que perdeu o fio da meada da
Lava-Jato. Essa é a razão pela qual é melhor ver a série do que não vê-la. A
Lava-Jato fez um memorável serviço de faxina e hoje parece banalizada, o que é
uma pena. O câncer de que fala o agente Ruffo estava lá e ainda está. Entrou
areia no mecanismo das empreiteiras, mas ele funciona em outras bocas.
Num
primeiro momento, Padilha explicou-se: “O mecanismo é uma obra-comentário, na
abertura de cada capítulo está escrito que os fatos estão dramatizados. Se a
Dilma soubesse ler, não estaríamos com esse problema”. Seja lá o que for uma
“obra-comentário”, Dilma sabe ler, e essa explicação tem o valor de um balanço
de empreiteira. Seria como se o diretor Joe Wright, de “O destino de uma
nação”, atribuísse a trapaça que fez com Lord Halifax a uma licença
cinematográfica. Num comentário posterior, Padilha disse que expôs a corrupção
do PT e do PMDB. É verdade, pois o vice de Dilma chama-se “Themes” e foi posto
no jogo. O tucano Aécio Neves também está no mecanismo: “Se o ‘Lúcio’ vence a
eleição, breca isso na hora”. O procurador-geral Rodrigo Janot ficou por um
fio. Padilha pegou pesado ao mostrar os pés dos ministros do Supremo entrando
numa sessão enquanto Ruffo fala nas “ratazanas velhas” de Brasília. A dança dos
presos comemorando uma decisão do STF também foi forte, mas, como se viu há
pouco, o Supremo decide, e réus festejam. [e as vítimas, no caso da suprema decisão, ficam indignadas.]
Padilha
bateu num caso histórico. A série é dele e fez o que bem entendeu, mas a trama
novelesca e as catilinárias de “Ruffo” tiraram-no de outro caminho, o de uma
série e de um filme recentes. “The Crown” é factualmente impecável e mexeu com
os mecanismos da Casa de Windsor. “A guerra secreta” não precisou demonizar
Richard Nixon para contar a história da briga do “Washington Post” pela
publicação dos “Papéis do Pentágono”. Nos dois casos, não houve novela
paralela, pois o recurso não era necessário.