Cerca de 40 mil crianças e adolescentes estão nas instituições aguardando uma improvável reintegração familiar, como se fossem propriedade de adultos
Sempre que se fala em adoção no Brasil, dois números são trazidos ao debate público: os 36.076 pretendentes habilitados registrados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e o de 4.863 crianças e adolescentes disponibilizados para adoção pela Justiça. A reação mais comum, diante desse quadro, é indagar os motivos que levam à subsistência desta discrepância: se há mais de 36 mil adotantes e menos de cinco mil crianças disponíveis, por que a fila não anda para que essas crianças sejam imediatamente adotadas? A resposta, que satisfaz e apascenta os brasileiros de espírito mais autocrítico é que temos preconceito contra essas crianças e adolescentes, que não têm o perfil desejado pelos pretendentes habilitados. E ponto final.O simplismo dessa conclusão, longe de ser totalmente mentiroso, esconde a principal questão. Há um “número esquecido” nesse debate, que é crucial para a percepção holística do fenômeno da institucionalização no Brasil: é o total de crianças e adolescentes institucionalizados. São 46.427, segundo o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA). Com esse novo dado, pode-se ver a questão de uma perspectiva mais esclarecedora: em números aproximados, vivem sem família mais de 46 mil crianças e jovens e menos de cinco mil estão aptas à adoção. As informações estão disponíveis no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mantenedor dos dois cadastros.
Percebe-se, assim, que cerca de 40 mil crianças e adolescentes, privados da convivência amorosa com uma família, não estão disponíveis para adoção porque não foram desvinculados juridicamente de suas famílias de origem, através de ação de destituição do poder familiar. Estão depositados nas instituições aguardando uma improvável reintegração familiar, como se fossem coisas, de propriedade de adultos. A defesa dos direitos desses adultos é, na prática, consagrada pela grande maioria dos operadores do Direito e de suas equipes técnicas. Criou-se uma ideologia biológica: perece a criança sem infância, sofrendo as agruras do abandono, enquanto discursos eloquentes justificam sua situação aflitiva em função das questões sociais e da falta de políticas públicas. Respostas genéricas para problemas de carne, osso e alma.
A letargia desses procedimentos só não causa repúdio popular mais ativo porque é acobertada pelo sigilo processual imposto por essas mesmas estruturas. A sociedade civil não pode saber a história dessas crianças, não pode vê-las. A imprensa não pode fotografá-las ou filmá-las. A alegação é de que o sigilo existe para protegê-las, mas, na verdade, apenas oculta sua tragédia, impedindo que as instituições responsáveis por seu destino, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Magistratura, tenham suas ações acompanhadas pela sociedade, no exercício democrático de controle que existe nas demais áreas do Direito. Para as crianças sem família, o segredo de Justiça assassina suas infâncias.
Fonte: Sávio Bittencourt é procurador de Justiça e professor da FGV/Ebape