Em Curitiba o juiz podia ir ao supermercado e sua caneta era uma lâmina, agora puseram-no num outro mundo
No sábado o ministro Sergio Moro foi chamado ao Palácio da Alvorada para
uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e três colegas para decidir
o que fariam com Cesare Battisti. Ele fora preso na Bolívia e a Polícia Federal havia mandado um avião
para trazê-lo de volta. Dias antes, Moro havia oficiado à Casa Civil
para que exonerasse a diretora de Proteção Territorial da Funai, Azelene
Inácio. O ministro vivia suas primeiras experiências no mundo da
fantasia do poder. A cena do sábado era pura ilusão do poder. O governo boliviano já
decidira mandar Battisti para a Itália e um avião já saíra de Roma para
buscá-lo.
O cumprimento da determinação para que Azelene fosse demitida era de
outro tipo, pois deveria tramitar na burocracia do Executivo. Em
Curitiba, Moro mandava prender e preso o cidadão seria. Caso o detento
quisesse recorrer, a petição seguiria de acordo com o lento ritual do
Judiciário. Em Brasília, as coisas são, mas podem não ser. Na segunda-feira,
Azelene, como o Alex da Apex, informou que continuava dando expediente e
acrescentou que se sentia perseguida, como se estivesse “dentro do
governo do PT”. A diretora continuou trabalhando porque a ministra
Damares Alves, em cujo latifúndio jogaram a Funai, disse-lhe que
reverteria a determinação de Moro.
O ministro da Justiça determinou à Casa Civil que exonerasse a diretora
porque o Ministério Público apontou para um conflito de interesse na sua
permanência. Passou-se uma semana e nada. Lula entregou-se à Polícia
Federal em menos de 48 horas. [Moro ainda está se ajustando a que agora pode até mais do que um juiz, mas, que o poder de um ministro é mais lento e o verbo determinar tem um uso mais limitado - um ministro pode ter até um prestígio político superior a um colega, mas, na hora que um ministro 'determina' que um colega tome alguma providência, o colega não tem obrigação de obedecê-lo;
o ministro tratado como 'subalterno' pode ignorar a ordem - só que se o ministro 'superior' tenha maior poder político, o 'inferior' pode até perder o cargo.
Mas, ordem por ordem, são exatamente iguais..
Moro logo se adaptará que o poder de um político é mais lento de ser exercido que o poder de um magistrado - apesar da lentidão ser característica comum na Justiça.]
Em Curitiba, o Ministério Público denunciava, o juiz condenava e fim de
caso.
Mas, no Paraná Moro podia ir em paz a um supermercado. Em Brasília,
ele teve a má experiência de ser interpelado por um cidadão que também
fazia suas compras. (Registre-se que Moro reagiu com a fleuma que faltou
ao ministro Ricardo Lewandowski ao ser ofendido num avião.) [Ministro Moro, em Brasília sempre há o risco de uma autoridade se deparar com um cidadão - ou um 'palhaço' - querendo aparecer. São inconvenientes aos quais uma autoridade está sujeira e tem que aprender a se esquivar de tais elementos.]
Brasília reserva outras surpresas a Moro. A maior delas certamente virá
da imprensa. Na vara federal ele tinha um razoável controle da sua
exposição. Tendo feito boa liga com o Ministério Público, os procuradores
ajudavam-no a operar a opinião pública. Moro era a imagem do poder
nacional, encarnando algo bem-vindo e novo. Suas decisões eram
festejadas, mesmo quando absolvia. Podia dizer a um criminalista que advogados “atrapalham” e a conversa
morria por lá. Se repetir coisas assim, está frito. Escapou-lhe também o
controle da agenda.
O carro da deputada Martha Rocha leva tiros de fuzil e o problema cai
sobre sua mesa. Fabrício Queiroz cala e dança e ele não pode fazer suas
compras em paz. Isso para não se mencionar o conflito que está em curso
no Ceará. Como ministro da Justiça e da Segurança Pública, Moro ganhou
uma agenda velha e empoeirada.
Com a ida ao Alvorada para tratar de um assunto que podia ser resolvido
por telefone ou pelo WhatsApp, ele entrou nos elencos teatrais da
capital.
A cidade lhe reserva outros teatros, mais demorados e muitas vezes
penosos. Ele descobrirá isso quando tiver que segurar uma conversa em
jantar de embaixada. Habituado ao secular e poderoso simbolismo da toga,
estará obrigado a conviver em ocasiões solenes com sexagenários que se
enfeitam com faixas acetinadas e circulam pelo evento com o paletó
aberto.
Quando Moro aceitou o convite de Bolsonaro para o ministério, disse que
estava “cansado de tomar bola nas costas”. Essas boladas podiam vir do
Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, onde os
jogadores são só 44. Pois agora levará caneladas e elas virão de todos
os lados.
Elio Gaspari, jornalista - O Globo