Se,
como todos sabem, as palavras voam, e só a escrita permanece, qual o
propósito de deitar estas linhas sobre a entrevista de uma autoridade?
Em que pese a sabedoria desse velho adágio, a comunicação verbal adquire
relevância sempre que envolve alguém imbuído de poderes virtualmente
ilimitados e que traduz autêntico “sincericídio” sobre o modo como o
poderoso em questão tem exercido sua posição de mando e pretende
continuar a fazê-lo.
Em evento
recente organizado pela revista Piauí, o ministro Alexandre de Moraes
tornou a monopolizar os holofotes e concedeu uma entrevista divulgada
pelo periódico sob a manchete “MORAES DIZ QUE EM SEIS MESES JULGARÁ
CASOS MAIS GRAVES DO 8 DE JANEIRO”[1].
Trocando a toga pelo manto de suposto justiceiro, Moraes, erigido, logo
no início da reportagem, à figura que “personificou o esforço do
Judiciário em lidar com a extrema direita organizada” – afinal,
personalismo pouco é bobagem! -, começou por gabar a própria eficiência,
segundo ele, evidenciada pelo acúmulo de processos sob sua condução. Em
relação a seu burnout, afirmou, em tom quase irônico: “não ganho mais
por causa disso, eu não trabalho menos e sou vigiado 24 horas por dia.
Bom não pode ser.”
No entanto,
a contrapartida a todo o “heroísmo” alexandrino é a crescente
concentração de poder nas mãos de alguém enxergado, por boa parte da
sociedade, quase como o juiz único do Brasil. Inebriado pela ânsia de
determinar o que pode ou não ser dito e o que pode ou não ser feito,
Moraes tem apreciado condutas de pessoas que, à luz da Constituição e
das leis, não estariam sob sua jurisdição, como foram os casos dos
empresários ditos “golpistas de Whatsapp”, das plataformas digitais, dos
governadores Ibaneis e Zema, do ex-ministro Anderson Torres e tantos
outros, discutidos em detalhes neste espaço. Tudo isso sob o silêncio
conivente de seus pares e do Senado, ao qual cabe a função institucional
de contenção de abusos da cúpula judiciária. Ou, pelo menos, caberia…
Indagado
por jornalistas sobre a receita para a aceleração no ritmo de julgamento
dos acusados de participação nos atos de vandalismo do 8 de janeiro,
Moraes admitiu que as condutas de cada invasor não serão analisadas
individualmente, pois “é um caso de condutas múltiplas. Quem estava lá
participou. Não preciso dizer que fulano quebrou a cadeira A ou riscou o
quadro B. Estar lá [invadindo prédios públicos] já é crime.” Em relação
a esse tópico, me permita, caro leitor, uma breve digressão sobre uns
poucos tecnicismos, apenas para que você seja capaz de avaliar, por si
mesmo, toda a extensão da “singularidade” da manifestação do togado.
Em
situações em que vários indivíduos se reúnam para a prática (“concurso
de pessoas”) de um certo delito, e, ainda, nas hipóteses em que uma
pessoa, por meio de mais de uma conduta, incorra em mais de um crime
(“concurso de crimes”), cabe ao Ministério Público, ao propor a ação
penal, descrever os fatos e atribuir a cada agente a prática de uma ou
mais infrações, conforme evidenciado pelas provas.
Da mesma forma como o
julgador tem de absolver ou condenar cada réu por uma ou várias
condutas bem definidas, até mesmo para poder fixar a pena cabível. Isso
importa, sim, na obrigatoriedade imposta a qualquer magistrado de
afirmar se “fulano quebrou a cadeira A, ou riscou o quadro B”, e,
acrescento ainda, se “fulano quebrou a cadeira A e riscou o quadro B”.
Ora, qualquer leigo entende que a deterioração de objetos configura
crime de dano, diferente do delito da invasão em si, e que um agente que
tiver invadido e destruído dezenas de antiguidades não poderá ser
punido da mesma forma que um invasor destruidor de um único objeto
acessório de valor ínfimo, e, muito menos, do mesmo modo que alguém que
tiver invadido sem nada danificar!
Tal conclusão óbvia decorre do princípio da individualização da pena, adotado em todo o mundo democrático e no Brasil[2],
segundo o qual, no âmbito criminal, cada pessoa só pode responder por
sua própria conduta, devendo o julgador levar em consideração todas as
especificidades, caso a caso. Mas quem disse que o redentor da nossa
democracia, em sua luta gloriosa contra extremistas, tem de se curvar
aos ditames constitucionais?
O filme “O
homem que não vendeu sua alma” retrata o período final da trajetória de
Sir Thomas More, notável intelectual do século XVI, jurisconsulto e
membro da corte de Henrique VIII, no tormento de seus últimos anos.
Católico fervoroso, não apoiou o divórcio de seu soberano, as novas
núpcias deste com Ana Bolena e, muito menos, a ruptura com Roma. Para
manter íntegras as suas liberdades, em particular a de opinião,
renunciou a seu cargo de chanceler e recolheu-se à vida simples no
campo. “Não importa o que eu acho, mas que eu acho”, afirma ele em uma
das primeiras cenas que põem em xeque a faculdade do livre pensar.
Ciente da
sua impotência em combater um regime absolutista e ainda fiel à velha
amizade com Henrique, Sir Thomas não se entregou a qualquer ataque
frontal ao monarca, mas lutou, até o fim, pelo seu direito ao silêncio,
do qual nenhuma lei o privava.
Aliás, tamanho o apego do jurista à
legalidade estrita que, em um dos diálogos mais emocionantes, chegou a
afirmar que “daria ao diabo o benefício da lei, em prol de sua própria
segurança.”
Lançou mão de uma hipérbole para asseverar sua convicção de
que o pior dos canalhas deveria ser sujeito a um julgamento justo, ao
amparo da legislação vigente, para que ele mesmo (Sir More) se sentisse
seguro de que também o estaria. Eis aí a própria definição de segurança
jurídica, que reside na capacidade, garantida indistintamente a todos,
de prever as consequências (inclusive as penalidades) para suas
condutas.
Contudo, na
distante Inglaterra, onde prevaleceu o desejo do monarca, Sir Thomas
pagou com sua vida o preço pela discordância, tendo sido preso e
executado por “traição dolosa à supremacia real”, ou melhor, apenas por
calar.
Sempre que o
império da lei é substituído pelo dos homens, ninguém pode se sentir
seguro.
Até quando suportaremos ver, entre nós, o julgamento de réus sem
especificação de condutas, enquanto sentenças contra criminosos
notórios são anuladas por firulas?
Censuras e parlamentares
defenestrados por fundamentos inexistentes? Que o exemplo de Sir More
nos inspire, e que os soberanos da atualidade tenham seus caprichos
freados pelas instituições, acionadas mediante pressão de uma sociedade
fortalecida e mais madura.
[1] https://piaui.folha.uol.com.br/moraes-diz-que-em-seis-meses-julgara-casos-mais-graves-do-8-de-janeiro/
[2] CF: Art. 5 – XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado
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Artigo reproduzido do site do Instituto Liberal, em
https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/a-cada-fala-do-imperador-togado-maior-a-inseguranca/
Kátia Magalhães - A autora é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ,
atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da
Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de
Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com
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