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quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Para a defesa de interesses, manobras complexas - Alon Feuerwerker

Análise Política

Governos que se mantêm apesar das crises induzem a celebrar e elogiar a institucionalidade; já governos que fracassam e caem têm sempre a tentação das teorias conspiratórias. Mas a realidade, em última instância, é uma só: cabe a qualquer governo cuidar de suas bases de sustentação, sem elas está fadado à ruína. Seja qual for a "institucionalidade".

E quando a ruína vem, abre-se a possibilidade de uma ofensiva do inimigo, que costuma ser implacável e brutal. E que só freia quando se estabelece uma nova correlação de forças, mais equilibrada. Ainda não chegamos a esse ponto nos Estados Unidos. A coalizão política, social e cultural organizada pelo Partido Democrata contra Donald Trump só começou seu avanço. E com a ordem de não fazer prisioneiros.

E a ofensiva ali se espalhará por todos os fronts. A guerra cultural será particularmente cruenta, na tentativa de ajustar as contas com as raízes mesmo da formação nacional norte-americana e daí buscar uma legitimidade de tipo completamente novo. Até chegar o dia em que tudo isso vai cansar e os robespierres de hoje forem encaminhados à guilhotina. Claro que em pleno século 21 essa é apenas uma figura de linguagem. Mas os precedentes históricos são vários.

E o que temos a ver com isso, tirando o óbvio interesse pelo espetáculo?
O que os americanos vão fazer com o país deles é assunto deles, mas o problema é se tratar de uma superpotência, a maior, e com armamento capaz de destruir a civilização algumas vezes. E qual será o melhor meio para os novos detentores do governo ali buscarem mais apoio num país fraturado? Além de fazer a revolução interna, tentar restabelecer a liderança planetária que vai escorrendo pelo ralo do fantasma da decadência econômica.

A política de Donald Trump para fazer a América grande de novo sustentava-se no resgate das raízes nacionais e, principalmente, no buy american and hire american. Os americanos comprarem produtos americanos e produzirem em casa. Joe Biden repete o buy american, mas a ambição dele é maior: remontar a hegemonia planetária.  Aí cada país, dos maiores aos menores, precisará entrar num jogo de manobras complexas, buscando no todo e em cada situação defender seus próprios interesses, e ao mesmo tempo adaptar-se aos interesses de quem tem a vantagem da força. Porque, novamente, nunca é prudente subestimar a correlação de forças.

E qual o desafio maior do Brasil na nova conjuntura? Talvez saber qual é exatamente o interesse nacional neste momento da nossa história. Dificuldade que aliás começa pela dúvida, espalhada sistematicamente na periferia do sistema global: faz sentido falar em “interesse nacional” já passadas duas décadas deste novo século?

Fazendo um certo reducionismo caricatural, o Brasil parece estar dividido entre quem preferia engatar incondicionalmente nosso vagão na locomotiva trumpista e quem agora está pronto a bater continência à nova ordem, também de modo incondicional, desde que receba de fora o apoio suficiente para fazer aqui dentro seu próprio ajuste de contas. Não chega a ser animador. 

Alon Feuerwerker, jornalista e analista político

 

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Admirável mundo novo

Somos pequenos e diminuímos nas últimas décadas por falta de lideranças com visão


É uma pena, e ao mesmo tempo um péssimo sinal, o fato de temas de política externa terem tão pouca importância no debate político eleitoral no Brasil, país ao mesmo tempo abençoado e amaldiçoado pela enorme distância que mantém de qualquer conflito internacional relevante. Abençoado, pois ninguém aqui vai dormir hoje preocupado em saber se um ente querido vai matar ou morrer num conflito armado (não estou considerando a guerra interna brasileira como conflito armado clássico). Amaldiçoado, pois a imensa maioria da população – e os políticos em geral – não tem a menor percepção da natureza, abrangência e alcance de grandes contenciosos lá fora.

E olhem que Donald Trump, involuntariamente, nos deu uma espetacular demonstração da rapidez da destruição que está alcançando o sistema de relações entre as potências existente desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Ao lado do tirano russo Vladimir Putin, de quem foi livrar a cara num encontro em Helsinque, Trump encerrou uma extraordinária semana de massacre do que tinham sido até aqui alguns princípios norteadores da potência que foi decisiva para dar forma e garantir esse sistema do pós-guerra, os Estados Unidos.

O mundo no qual o Brasil terá de se virar agora é um lugar no qual o presidente americano xinga aliados e elogia adversários tradicionais; abomina instituições multilaterais (da OMC à ONU) e a coordenação de ações entre países; encara o comércio internacional como um jogo de soma zero, no qual se alguém ganha é às custas de outro; reflui para o pensamento de divisão do mundo em esferas de influência nas quais “homens fortes” podem agir a gosto; mantém que a aplicação de princípios ou valores é coisa de trouxa e só distrai de resultados práticos.

Não estou aqui (desculpem o cinismo) fazendo um julgamento moral sobre se esse admirável mundo novo é pior ou melhor do que o velho. Cumpre apenas registrar que boa parte do que foram apostas de política externa e inserção internacional do Brasil (supondo que as havia de maneira mais ou menos doutrinária) simplesmente caiu por terra. O que um novo governo aqui possa ter como norte precisará levar em conta um mundo muito mais perigoso e multipolar no “mau” sentido da palavra, isto é, não pela convivência mais ou menos harmônica de vários polos de poder, mas, sim, pela destruição de regras que até agora tiveram notável importância.

Duas delas estão sob ataque há algum tempo, não importa Trump. Democracias liberais e seus sistemas representativos passam por notável crise, em parte até acelerada pela revolução digital. Sob ataque está a ordem internacional do “livre” comércio – que inclui o livre movimento também de capitais e pessoas. A instabilidade parece ser o componente essencial de uma nova situação na qual não está claro como será a acomodação (pacífica ou nem um pouco pacífica) do surgimento de uma nova superpotência, a China.

É bastante óbvio que esse tipo de desafio se torna ainda mais difícil para um país como o Brasil, amarrado ao chão não por grilhões impostos por potências estrangeiras (como afirmam populistas imbecis, particularmente os de coloração petista, mas não só). Somos pequenos no mundo e diminuímos em termos relativos nas últimas décadas por conta de produtividade estagnada, economia pouco competitiva e paralisia política geral para resolver problemas (como a crise fiscal) que demandam urgentemente o recurso do qual mais precisamos, e não encontramos: lideranças políticas com visão. No nosso próprio clima de “vamos ver o circo pegar fogo”, tem bastante gente aplaudindo Trump. É bom não esquecer que somos parte do circo.

William Waack  - O Estado de S. Paulo