O episódio polêmico do habeas corpus dado pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap serviu para levantar diversas questões que há muito distorcem a atuação do Supremo Tribunal Federal. Para começo de conversa, não é razoável que um caso como esse tenha chegado à última instância da Justiça, numa Corte que deveria ser apenas constitucional e cada vez mais se vê às voltas com crimes, de colarinho branco a tráfico internacional de drogas. [O Globo de hoje noticia que uma cantora escreveu para o presidente do STF, ministro Luiz Fux, solicitando que ele marque uma reunião com a com a requerente , com vistas a discutir um pedido de embargos de declaração apresentado pela cantora à Corte Suprema.
Pode, chega ou alguém quer mais exemplos?]
Transferir para o colegiado do
Supremo o poder decisório que hoje pode ficar com um ministro em
julgamento monocrático é o objetivo da proposta do presidente, ministro
Luis Fux, que será apresentada em reunião administrativa do STF. A
idéia é fazer com que toda decisão individual seja levada ao plenário
virtual imediatamente. Está sendo criado um espaço especial para
votações rápidas, provavelmente em 48 horas, sobre decisões
monocráticas, incluindo habeas corpus.
A chamada
“desmonocratização” do Supremo, anunciada pelo novo presidente tem o
objetivo de que as decisões do tribunal "sejam sempre colegiadas, em uma
voz uníssona daquilo que a Corte entende sobre as razões e os valores
constitucionais". Os ministros perderão poder individualmente, mas o
plenário do Supremo ganhará relevância. [os erros e a INsegurança jurídica serão reduzidos.]
Esse debate está sendo
feito nos bastidores, mas o ministro Gilmar Mendes já reagiu
publicamente, dizendo que se trata de uma medida demagógica, citando
“telhado de vidro” dos que propõem a medida. Ele se referia
indiretamente ao ministro Fux, lembrando que “a liminar mais longa que
conheço” é a do auxílio moradia, dada pelo hoje presidente do Supremo em
2014, que nunca foi a plenário, revogada por ele mesmo quatro anos
depois devido a um reajuste salarial dado aos juízes federais pelo
presidente Michel Temer.
O ministro Gilmar Mendes é muito cioso
dos seus poderes como ministro do Supremo, e não acredita que a Corte
tenha que ter reduzidas suas funções. Certa ocasião, quando se debatia a
necessidade de tirar do STF o julgamento de crimes, eleitorais ou
comuns, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu a criação de um novo
tribunal para tratar apenas dessas situações. Gilmar reagiu, dizendo que
Barroso queria tirar poder do STF para criar um supertribunal que
analisaria os casos criminais envolvendo os detentores de foro
privilegiado.
O presidente Luis Fux, diante dos problemas
que surgiram com a distribuição do habeas corpus, decidiu também acabar
com a chamada “roleta russa” na escolha do relator dos casos, uma
manobra costumeira que burlava a escolha através de sorteio. Os
advogados costumeiramente entram com uma ação ou recurso, que são
distribuídos por sorteio a um ministro, ou encaminhados ao ministro
“prevento”, isto é, que cuida de assuntos ligados ao tema. O ministro
“prevento” para a Lava Jato no plenário é Edson Fachin.
Se o
sorteio designa um ministro que não é partidário desta ou daquela causa,
por decisões anteriores, o advogado desiste da ação e entra com outro
pedido, esperando que desta vez a sorte lhe seja benfazeja. Foi
o que aconteceu no caso do habeas corpus do traficante, impetrado e
retirado por oito vezes, até que caísse com o ministro Marco Aurélio, um
garantista conhecido que já havia se utilizado do artigo 316 do Código
de Processo Penal para soltar dezenas de presos. A partir de agora, o
registro ou distribuição de ação ou recurso no STF gerará prevenção ao
ministro inicialmente sorteado para todos os processos relacionados à
primeira petição, impedindo a mudança de relator.
Essas
mudanças de procedimento no STF estão sendo submetidas aos ministros nas
reuniões administrativas, e até agora o ministro Luis Fux tem
conseguido o apoio necessário para executá-las, como a volta das ações
ao plenário, em vez das Turmas. Seu objetivo de longo prazo é
que todos os temas sejam debatidos e decididos pelo plenário. Para tal,
ele pretende, até o final de seu mandato, que o Supremo Tribunal Federal
recupere a capacidade de tratar apenas de temas constitucionais, sem
tratar de casos como o do traficante André do Rap.
Merval Pereira, jornalista - O Globo