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terça-feira, 8 de maio de 2018

A mentira do foro



Povo vibrou quando prosperou a tese inconstitucional, do demagogo Barroso, aquela que criminalizava o financiamento empresarial de campanha eleitoral 

Quando um juiz fala em “dimensão simbólica” de uma decisão de corte constitucional, declara e assume, como se virtuoso, o caráter discricionário, o potencial seletivo consciente, de uma determinação do tribunal, aquele que deveria proteger a Constituição, mas que se julga, à revelia do que dispõe a Carta, educador, moralizador, da vida pública do país. Refiro-me a Roberto Barroso legislador-mor da nação, no entanto sem votos — e à vergonhosa, sem dúvida histórica, sessão em que o Supremo deliberou pela restrição à prerrogativa de foro para parlamentares federais.

A decisão é o próprio espírito do tempo. É obra do emparedamento da política. Deriva da covardia do Congresso, que ainda não compreendeu que o movimento não é contra partido A ou B, mas contra a atividade política como princípio e valor, e do medo dos ministros do STF que, não concordando com a proposta, afinal, com um ou outro senão, aderiram a ela. (Querem poder andar na rua, né?) O julgamento, uma escolha, consagra o jacobinismo e indica que já não basta ao partido do sistema judicial inviabilizar a administração pública: não se trata mais de aprofundar a ingovernabilidade (de vender a ideia de que o mecanismo, a política partidária tradicional, essencialmente bandida, não pode gerir o Estado), mas de plantar condições a um projeto de poder antipolítico.

Exagero? Pensemos, então, em Joaquim Barbosa. Que tal?  A decisão — a mentira propagandeada como “fim do foro privilegiado” — não pode ser lida sem que se lhe esmiúce a metodologia. Há método — o modus operandi por meio do qual nem mais nos incomoda que um poder assalte o espaço de outro, isso já a ponto de que admitamos como expressão de progresso a explicação que os justiceiros togados dão para o ativismo, estimulados e legitimados pela imprensa: se o Legislativo não legisla como queremos, que o Judiciário o faça. A tal caça aos corruptos fundamenta as práticas de exceção. É quando passa por bem-vindo que o relator de uma ação penal proponha uma questão de ordem instrumento de alcance modesto para assassinar (com base em estatísticas furadas) um punhado de artigos constitucionais claríssimos. E o povo vibra!

Vibrou também quando a tese inconstitucional, do mesmo demagogo Barroso, aquela que criminalizava o financiamento empresarial de campanha eleitoral, prosperou até que nos afundássemos no modelo verdadeiro sonho do crime organizado — que estabelece o financiamento público e que limita o privado somente a doações de pessoas físicas, equivalente a um laranjal de CPFs, paraíso para que traficantes, bicheiros, milicianos e outros pastores do dinheiro vivo elejam suas bancadas, conforme veremos em outubro de 2018. 

O notório saber de Barroso é mesmo em marketing. Isso já era conhecido, demonstrado desde quando um dos mais apaixonados defensores da revitalização dos tais embargos infringentes recolocados na rotina do Supremo para livrar José Dirceu de condenação por formação de quadrilha conseguiu se transformar em, juro, paladino da luta contra a corrupção e em líder da cruzada contra a morosidade de processos criminais. Não me lembro, porém, de mistificação mais influente do que a completada, no último dia 3, no STF.

Em números, a dimensão do conjunto falacioso se impõe e facilita o entendimento do engodo arbitrário por meio do qual patriotas como o outrora advogado do terrorista Cesare Battisti combatem a impunidade no Brasil: são quase 60 mil os que hoje detêmintocada — alguma prerrogativa de foro, e apenas 594, senadores da República e deputados federais, aqueles sobre os quais a decisão do STF cravou restrição. Que tal? O que isso quererá dizer, se nada tem a ver com justiça? Trata-se de investimento na desarmonia institucional; de ação disfuncional de impacto imprevisível sobre o equilíbrio entre poderes; de perigoso aval aos hábitos persecutórios em moda aqui. Janot venceu.

Exagero?  Projete-se o cenário — real. Morto pela agenda melindrada da Lava-Jato, cuja disciplina consiste em se apregoar como sob ameaça permanente, daí que nada se reformaria neste país senão para destruir a operação, enterrou-se o debate sobre a nova lei de abuso de autoridade, necessária, uma vez que a atual remete ao regime militar e em nada coíbe excessos de poder contra o indivíduo. Essa obstrução foi festejada, embora tenha por resultado, hoje, a seguinte distorção — apenas um entre dezenas de exemplos: milhares de procuradores e juízes, os que acusam e condenam, aprovados em concurso ou nomeados, mantêm intactos suas prerrogativas de foro e seguem sem marcação sobre eventuais abusos de autoridade, enquanto menos de 600 legisladores, eleitos por voto popular, passam a ter foro especial limitado, aumentada a superfície a partir da qual Ministério Público e Judiciário, absolutamente protegidos, podem lhes denunciar e sentenciar. 

A dimensão simbólica do troço é uma obviedade física: agressão à atividade política, atentado à democracia representativa, ataque — de corte preciso — a um Parlamento federal já criminalizado. E então leio, em defesa do simbolismo de Barroso: “É só não roubar nem se meter em maracutaia.” Claro... Porque é inquestionável a premissa de que procuradores e juízes agem sempre com honestidade — sem intenções políticas ao acusar e condenar. Né?

Quem tem mesmo privilégios no Brasil? Quem tem mais privilégios — poder? Renan Calheiros ou Roberto Barroso?