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domingo, 18 de junho de 2017

“Judiciocracia” em expansão

Por mais boa vontade que se tenha para entender que, em momento de aguda crise, o Poder Judiciário substitui eventualmente a toga pelo manto legislativo, no presente momento a mudança de papéis cria profundas rachaduras na base do triângulo do poder arquitetado pelo barão de Montesquieu.

Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não estão funcionando a pleno vapor, como incautos apregoam, e os princípios da harmonia, independência e autonomia que devem inspirar seu funcionamento sofrem forte corrosão.   A razão está à vista: o corpo político passa por prolongada cirurgia, que procura estancar a metástase que ataca parcela expressiva de seus membros. O Poder Executivo é submetido a intenso bombardeio por parte do Procurador Geral da República, sob aprovação do Poder Judiciário.


A Polícia Federal, que se subordina ao Ministério da Justiça, faz uma montanha de perguntas ao presidente da República, de forma direta, sem  obedecer a liturgia burocrática.  O Tribunal Superior Eleitoral, cuja missão é a de verificar se a legislação eleitoral é cumprida, transforma-se em corte penal, assumindo perigosamente papel que cumpriria a outra instância.  O resultado do intrincado jogo de poder é uma interpenetração de competências que se desdobram em outros níveis, como o que se observa nos territórios da Polícia Federal e do Ministério Público, este dizendo que aquele tenta absorver suas tarefas.

Ensaios de guerra
O imbróglio se expande. O Poder Legislativo, que tem mais de 200 nomes arrolados em denúncias da Operação Lava Jato, passa a recitar a máxima latina: se vis pacem para bellum ( se queres a paz, prepara-te para a guerra).

Na demonstração de que a arena de lutas tende a se estender, o Legislativo aplaina o caminho para formar a CPI da JBS, para a qual seria convocado o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato. Sobre ele recai versão de que teria sido ajudado pelo grupo dos Batista  no pleito para se tornar ministro do Supremo.  Ainda na linha de tiro de guerra, o exército parlamentar prepara-se para rejeitar pedido de denúncia para investigar o presidente da República, a ser encaminhado pelo PGR ao STF. Como se sabe, este pedido deverá ser autorizado pela Câmara dos Deputados.

Esta é uma banda das tensões. Mas uma questão central remanesce: o STF está entrando no terreno legislativo? Não deveria apenas informar às Casas congressuais sobre suas omissões? Gilmar Mendes, por exemplo, questiona a “sanha punitiva” que estaria por trás das decisões de alguns membros do TSE, achando que o Judiciário não pode e não deve resolver a crise política. Querem tirar o presidente? Que transfiram essa decisão ao Parlamento.

O fato é que a missão precí­pua do STF é interpretar a Constituição ante a falta de clareza ou inexistência de leis que detalhem normas sobre os mais diversos assuntos de inte­resse social. Os magistrados têm passado razoável parcela de seu tempo a julgar crimes. De Corte Constitucional o STF vestiu o manto de Corte Criminal.

Legislação judiciária
A mudança de comportamento dos magistrados tem se acentuado nos últimos anos. De um comportamento mais cauteloso nos idos de 90, quando apenas comunicavam ao Par­lamento a falta de leis, passaram a produzir regras, deixando o des­conforto de lado. Nos últimos tempos, sob o empuxo de demandas da sociedade civil, o STF reposicionou-se no cenário institucional, tomando decisões de impacto, inclusive de fundo político, sem se incomodar com críticas sobre invasão do território legislativo. Nessa direção se incluem decisões em áreas como aposentadoria especial (decorrente de trabalho insalubre), direito de greve no serviço público, criação de municípios e criação de cargos no modelo federal.

A legisla­ção judicial, portanto, aparece no vácuo da legislação parlamentar. Não há, nes­se caso, transgressão ao princípio democrático de que o representante eleito pelo povo é quem detém o poder de legislar? Em termos, sim. Mas a questão pode ter outra leitura. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preceitua a Constituição, se assenta na preservação dos direitos individuais e coletivos. Os princípios da autonomia, harmonia e independência dos Poderes, sob sistemas políticos em processo de institucionalização, acabam ganhando certa frouxidão. Compreende-se, assim, a interpenetração de funções dos Poderes do Estado.

E assim, na esteira de maior participação do Judiciário no campo político, emerge o conceito de “judiciocracia”, neologismo para designar uma democracia feita sob obra e graça do Poder Judiciário.  Lembre-se, também, que a tendência de maior participação dos tribunais em ações legislativas e executivas decorre da própria “judicialização” das relações sociais, fenômeno que se expressa de maneira intensa tanto em democracias incipientes quanto em modelos consolidados, como os europeus e o norte-americano, nos quais os mais variados temas envolvendo políticos batem às portas do Judiciário.

A nova arquitetura da política nacional pode ser vista sob a perspectiva do contencioso que locupleta as estantes judiciais. Contencioso que tem aumentado nos últimos tempos, quando entraram na agenda institucional eventos ligados à corrupção. Desenvolve-se um intrincado roteiro. O Poder Executivo inunda canais da Justiça para ampliar e garantir suas de­cisões. O Legislativo instaura agenda de Comissões de In­quérito, ampliando frentes de luta política.  O Ministério Público flagra ilícitos de toda ordem, enca­minhando farta pauta de conflitos ao Judiciário, na convicção de que a sociedade brasileira é “hipossuficiente” e, portanto, carece de braços mais longos de defesa.

Minorias políticas recorrem às Cortes para fa­zer valer direitos. Associações civis e esferas governativas produzem um bocado de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs). A questão é: esse novo modo de fazer política melhora a qualidade da democracia? Ou confere excessivo poder aos Tribunais, resultando em desmesurada intervenção nos conflitos políticos?
Esta é a pergunta crucial que só será respondida depois da crise.

Fonte:  Gaudêncio Torquato É jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter @gaudtorquato