Entretanto, é um erro avaliar que as eleições municipais
transformaram Bolsonaro num pato manco. Seria uma transposição mecânica
do resultado eleitoral para o pleito de 2022. Pode ser até que isso
ocorra, mas por outros motivos, que não são propriamente as eleições
municipais: a desastrada atuação do Ministério da Saúde na pandemia do
novo coronavírus, mitigada graças ao abono emergencial, mas cuja conta
já está chegando; a falta de empatia em relação às vítimas da pandemia,
que está provocando ojeriza em todo o pessoal da saúde e em parcelas da
população que o haviam apoiado em 2018. Em plena segunda onda, vamos
entrar o ano sem abono emergencial nem vacinação em massa, com déficit
fiscal astronômico, inflação em alta e a economia ainda sem rumo.[a segunda onda é uma interpretação dos arautos do pessimismo e que sequer é reconhecida por parte dos governadores - Ibaneis, o governador do DF e que também representa o município de Correntes/PI, no final de novembro (quando muitas vivandeiras já falavam em terceira onda) desativou um complexo de UTI destinado exclusivamente aos pacientes acometidos pela covid-19 - complexo instalado no Hospital de Base, desativou também hospitais de campanha - e até agora nada foi feito para reativação. Outros estados adotam procedimento idêntico. Quanto a vacinação é recorrente lembrar que NÃO EXISTE vacina disponível para uso no Brasil.]
Contraditoriamente, porém, o mesmo fator que levou à fragmentação da base eleitoral de Bolsonaro nas eleições municipais, agora, atua a seu favor, ao desagregar as forças de oposição, que continuam dispersas, em razão do mesmo pragmatismo que impera na política local. Além disso, abre-se novo ciclo de centralização política, cujo eixo é a força da União junto aos estados e municípios. Essa é uma tradição da política brasileira marcada por ciclos longos, como já foi demonstrado por Alberto Torres, no começo do século; Oliveira Viana, no Estado Novo; e general Golbery do Couto e Silva, em célebre palestra na Escola Superior de Guerra, em 1980, intitulada Sístoles e Diástoles. A metáfora da contração e dilatação do coração serviu de base para a estratégia adotada por Geisel para que os militares se retirassem da política em ordem e tutelassem a transição à democracia. A Revolução de 1930, com a posterior implantação do Estado Novo (1937), e o golpe militar de 1964, com a fascistizaçao do regime militar a partir do Ato Institucional no. 5, em 1968 (que hoje completa 52 anos), foram grandes sístoles do período republicano.
Coincidentemente, esses dois ciclos foram encerrados em momentos de grandes mudanças na política mundial: a derrota do nazi-fascismo na II Guerra Mundial (1945) e o fim da guerra-fria, com a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. Acontece que o federalismo brasileiro, consagrados nas Constituições de 1891, 1946 e 1988, sempre esteve sobre pressão da União. O mestre José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil, 1965), grande estudioso das raízes do pensamento reacionário e das elites conservadoras sempre destacou que a tensa relação entre a União com estados e municípios como vetor um permanente da política brasileira. Em plena vigência do regime democrático, promoveu, desde eleição de Tancredo Neves, para o mal (Plano. Cruzado) e para bem (Plano Real), sucessivas ondas de centralização política e financeira.
Tutela militar
O fim da tutela militar, a partir da Constituição de 1988, que consagrou
um Estado democrático ampliado,[favoreceu as práticas nada republicanas da 'nova República' iniciada em 1985] mais permeável às pressões da
sociedade, e as eleições diretas para a Presidência, com alternância de
poder, encerraram os ciclos longos, mas as forças de sístole permanecem
existindo, sendo que a eleição de Jair Bolsonaro trouxe de volta ao
poder, pelo voto, um grupo de militares saudosos do regime militar, que matem a ambição de tutelar o Estado brasileiro — por favor, não
generalizem. A primeira tentativa de tutela se traduziu na ofensiva de
Bolsonaro e de setores de ultra-direita contra o Supremo Tribunal
Federal (STF), mas esbarrou na reação da própria Corte e do Congresso,
apoiados pelas forças políticas mais responsáveis, pela sociedade civil
organizada e pelos grandes meios de comunicação de massa. O golpismo que
rondava os quartéis não contaminou as Forças Armadas.
Agora, estamos diante de uma nova ofensiva de Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso, com objetivo de impor a sua agenda política, social e ambiental regressiva, o que surpreendeu aqueles que tratavam Bolsonaro como um pato manca. Nunca é demais lembrar que o governo é sempre a forma mais concentrada de poder, mesmo quando é um mau governo; quando nada, porque porque arrecada, normatiza e coage. Mas o que está fazendo a diferença não é a truculência verbal de Bolsonaro, é a velha política de conciliação, que Bolsonaro opera com sinal trocado: desta vez, a vanguarda é o baixo clero do Congresso, que conhece na palma da mão, porque dele fez parte. [se o presidente Bolsonaro quer governar sem o Congresso, rompendo totalmente com a chamada velha política, passa a ser retaliado pelo próprio Poder Legislativo com o aval do Supremo Tribunal Federal e qualquer discordância presidencial, qualquer protesto, é considerado golpismo.
Se resolve governar com o Congresso - o que começa a ocorrer em uma demonstração do interesse do presidente Bolsonaro de encontrar o melhor para o Brasil - é malhada e a menor das acusações é que quer controlar o Congresso.
Aos que pretendem constranger o presidente, buscando paralisar seu governo, só nos resta sugerir a releitura do {*1}.
Qualquer outro entendimento impõe substituir o 'decifra-me' do enigma 'decifra-me ou te devoro' por atende-me.]
Ao atrair para o campo do governo os setores oligárquicos mais fisiológicos e patrimonialistas da política brasileira, principalmente do Norte e Nordeste, Bolsonaro anabolizou o atraso na Câmara, a partir da candidatura de seu principal aliado, o deputado Arthur Lira (PP-AL), que articula um arrastão parlamentar, com farta distribuição cargos e distribuição de verba. No Senado, já estava tudo dominado. Engana-se, porém, quem imagina que mira apenas a reeleição. Seu projeto é inaugurar um ciclo longo de centralização do poder e resgate da tutela militar sobre a democracia brasileira, a partir do controle do Congresso. Para isso, porém, é preciso também subjugar as instituições de Estado, principalmente as que têm o monopólio da força, o Judiciário e os órgãos de comunicação de massa, além de intimidar agentes econômicos e a sociedade civil. Entretanto, ainda não existe correlação de forças favorável, interna e externa.
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense