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quinta-feira, 2 de maio de 2019

O povo não é bobo

O povo não é bobo

Então, ficamos assim: a liberdade de imprensa é absoluta. Não pode, pois, haver qualquer tipo de censura
 
Coluna publicada em O Globo - Economia 2 de maio de 2019
 
Em 1896, o New York Times lançou uma campanha de marketing com o slogan que se tornaria a marca do jornal e, de certo modo, um objetivo perseguido por jornalistas mundo afora: “All the news that`s fit to print”.  A tradução não é simples, mas o espírito, sim. Estampado na primeira página, queria dizer que o leitor ali encontraria “toda notícia pronta para ser impressa”.  Trata-se de uma definição de jornalismo profissional. Uma notícia não é uma informação qualquer, mas uma informação apurada e editada com métodos e regras claras para o público.

Ainda assim, parece pretensioso. Seria o caso de perguntar aos jornalistas do Times: vocês têm certeza de que a notícia está pronta? Que fizeram toda investigação e checagem necessárias?  Lembremos que se tratava de um veículo de enorme prestígio. Até pouco tempo, antes dessa explosão da mídia eletrônica, dizia-se que uma notícia só era verdadeira depois que saísse no velho e bom Times.  O jornal, diga-se, saiu-se muito bem na era eletrônica. No final do ano passado, chegou a 3,3 milhões de assinantes digitais, contra apenas 1 milhão no papel. O jornal on line há muito tempo não é apenas a versão digital do impresso. É mais amplo, traz mais informação diversificada, mais ilustrações e atualizações.

O slogan centenário não aparece com tanta frequência, mas outro dia topei com um que dobra a aposta: “NY Times, a verdade tem uma voz”.  E por que estamos falando disso? Porque aqui no Brasil e em toda parte, muita gente sustenta que a liberdade de imprensa deve ter uma espécie de contrapartida dos veículos: que publiquem apenas a verdade e que sejam de boa qualidade.  É o que garante o Times, a seu respeito, mas, no geral, há um baita problema aí. Quem vai definir onde está a verdade? E quem vai avaliar a qualidade? Pode existir aqui uma ameaça: governos vão querer controlar a imprensa sob o argumento de garantir que seja verdadeira e boa.

Outro dia, o presidente Bolsonaro falou disso: “precisamos de vocês (jornalistas)… que estejam perfeitamente irmanados com a verdade”.
Perfeitamente – não pede pouco.
Não faz muito, os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes justificaram a censura à revista Crusoé dizendo que a publicação veiculava inverdades.  Ora, inverdades na opinião deles que, aliás, depois se demonstrou inteiramente equivocada. Em setembro de 2011, um congresso do PT recomendou o controle social da mídia, assim justificado: “Não se trata de censura à imprensa, mas de garantir uma imprensa de boa qualidade e empresas de comunicação sólidas e eficientes”. Ou seja, haveria um comitê responsável pela verdade e pela qualidade.
Ou seja, censura, sim.

E então, como ficamos?
Nos Princípios Editoriais do Grupo Globo, encontra-se uma boa saída. Em vez de uma infindável discussão sobre, no fundo, quem seria o dono da verdade ou o juiz da qualidade, o texto propõe: “Jornalismo é o conjunto de atividades que, seguindo certas regras e princípios, produz um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas… é aquela atividade que permite um primeiro conhecimento de todos esses fenômenos, os complexos e os simples, com um grau aceitável de fidedignidade e correção, levando-se em conta o momento e as circunstâncias em que ocorrem. É, portanto, uma forma de apreensão da realidade… é o mesmo que dizer que busca a verdade dos fatos, mas traduz com mais humildade o caráter da atividade. E evita confusões”.
Então, ficamos assim: a liberdade de imprensa é absoluta. Não pode, pois, haver qualquer tipo de censura. A imprensa tem que ser de boa qualidade, profissional, mas essa não pode ser controlada por governos.

Resumindo, a lei deve garantir que a imprensa seja livre. A qualidade depende da sociedade, do público. Ofendidos podem recorrer aos tribunais, na forma da lei.
Jornalismo independente deve ter autonomia financeira, viver de assinaturas e venda de publicidade, não de verbas públicas, nem de igrejas ou partidos.  Jornalismo independente não tem programa, tem princípios, pelas liberdades individuais, pela democracia.
O povo não é bobo, sabe onde está a notícia – não inteiramente pronta, mas quase pronta, todos os dias, em cima dos fatos.

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista