Israel e Egito exercem pressão sobre o território
para atingir o Hamas
O que
posso escrever sobre Gaza é daquilo que conheço de perto. E o que conheço de
perto é a vida de famílias comuns tentando sobreviver em condições terríveis de
subsistência, privadas de direitos básicos fundamentais como o de ir e vir, e
acesso a nutrição, saúde e segurança. Famílias com a de Ayman e Heba, que
celebraram o casamento em seu restaurante israelense favorito “com a melhor
cerveja” e, como todos os pais, ainda sonham — uma década depois do bloqueio a
Gaza e três guerras mais tarde — em dar às três filhas futuro feliz e próspero.
Ayman e
Heba trabalham dia a dia, ele para a ONU e ela vendendo bordados de porta em
porta, para que as meninas cresçam saudáveis, tenham boa educação e desfrutem
das mesmas oportunidades que outras crianças e jovens têm além das fronteiras
controladas de Gaza — embora saibam que isso é impossível. Gaza tem
41km de comprimento — extensão menor do que a orla do Rio, da Marina da Glória
ao Recreio — e 10km de largura, a distância entre Ipanema e Santa Teresa. Neste
território delimitado pelo Mar Mediterrâneo, Israel e Egito vivem quase dois
milhões de palestinos, uma das maiores densidades populacionais do mundo. [o absurdo da divisão do território palestino, em 1948 com o apoio da ONU - e a conivência pró Israel de um brasileiro que por infelicidade presidia as Nações Unidas na ocasião - é fácil de se constatar.
Vejamos: quando da partilha, 55% do território palestino foi tomado pela ONU e passado para Israel destinado a 600.000 judeus; 0s 45% que restaram foi destinado aos verdadeiros donos, os palestinos, 1.300.000 pessoas.
Mesmo com divisão tão injusta, Israel não se satisfez e tomou pela força das armas territórios dos países vizinhos, implantou colônias em território alheio - sendo sempre os palestinos, de forma única e exclusiva, os prejudicados.]
Originalmente
ocupada pelo Egito, Gaza foi tomada por Israel na Guerra dos Seis Dias, em
1967. Em 2005, Israel retirou tropas e sete mil colonos do território, mas mantém
o controle de tudo o que entra e sai, como material de construção, alimentos,
remédios, equipamentos de saúde e famílias, como a de Ayman, que há anos tenta,
sem sucesso, migrar para um lugar seguro e com melhores condições de vida.
Israel
exige permissão especial a palestinos na travessia de Erez — de onde podem ir
para Jordânia — desde 1997, mas as restrições aumentaram quando o Hamas assumiu
Gaza. Menos de 240 palestinos deixaram Gaza via Israel no primeiro semestre de
2017, ultimo dado disponível. Nestas duas décadas, o PIB per capita de Gaza
caiu à metade, para US$ 1,8 mil, entre os mais baixos do mundo. A pobreza
atinge 40%, segundo o Banco Mundial, apesar da ajuda da ONU a 80% das famílias.
A ONU
também administra escolas, onde e quando é possível estudar. Todo dia, as
meninas faziam a lição de casa sob a luz de velas porque a única usina elétrica
de Gaza foi parcialmente destruída na guerra e só havia eletricidade duas horas
ao dia, se tanto. No mar, há um campo de gás que, segundo a ONU, poderia
fornecer energia suficiente, mas o mar de Gaza é também controlado por Israel.
Em um
passeio à praia, Ayman me falava da indústria pesqueira, capaz de prover
proteína (e emprego) suficiente, segundo a ONU, não fossem as restrições à
pesca, limitada a uma distância de 4,8 km da costa. O limite foi ampliado em
2012, após cessar-fogo do Hamas, até que os foguetes voltaram a ser lançados
contra Israel. Navios israelenses, que observávamos no mar verde transparente,
não raro abrem fogo contra barcos de pesca que excedem o limite. Do céu, éramos
vigiados por um zepelim. A zona de segurança da fronteira significa que as
terras mais férteis de Gaza não podem mais ser cultivadas e metade da população
precisa de ajuda em alimentos. Não importa quanto se dediquem aos estudos, as
filhas de Ayman e Heba dificilmente mudarão isso — o desemprego entre jovens é
de 66%.
Além de
Israel, o Egito mantém fechada a fronteira sul. Entre outros motivos, teme se
tornar refúgio para radicais do Hamas, alinhado à Irmandade Muçulmana, cujo
líder, Mohamed Mursi. foi eleito, deposto e preso pela junta militar que
assumiu o país, assim como seus apoiadores. No poder, o general Abdel Fattah
el-Sisi limitou ainda mais a passagem pelo posto de Rafah e lançou uma ofensiva
contra os túneis de contrabando da fronteira. Os EUA, que destinam US$ 1,3
bilhão anual para o Egito — mesmo valor destinado ao Iraque e terceira maior
fatia do orçamento americano para ajuda em segurança, depois de Afeganistão
(US$ 5 bi) e de Israel (US$ 3,2 bi) — pressionam o Egito a manter o bloqueio a
Gaza.
É uma
situação constrangedora para egípcios que se opõem à cooperação com Israel e
EUA, por entender que o bloqueio, embora defendido como meio de sufocar o
Hamas, pune largamente palestinos comuns e inocentes. O bloqueio foi mantido
mesmo após o Hamas entrar em acordo de reconciliação com o Fatah e entregar o
controle administrativo de Gaza à Autoridade Nacional Palestina, em outubro.
Estima-se em 15 mil homens a força armada do Hamas. Isso significa que há
1.885.000 civis desarmados em Gaza, pessoas como eu e você.
Quando
Ayman consegue um extra, compra água de caminhão-pipa, diesel para o gerador e
uns minutos de internet — única janela para um mundo que suas filhas
desconhecem além das fronteiras de Gaza e a que provavelmente nunca terão
acesso, se não virtual.
Adriana Carranca - O Globo