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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A morte de Ágatha - O espírito do tempo doente de que governantes como Witzel são produto - Carlos Andreazza


O Globo 
Falo muito de espírito do tempo. Espírito do tempo é também a atmosfera cultivada a partir do discurso daqueles mais influentes entre nós. Um governante popular, por exemplo. Um presidente. Um governador. A palavra insistente de um líder popular contribui para dar materialidade ao espírito do tempo; para fixá-lo, para inscrevê-lo, naturalmente, em nós, em nossas falas e em nossos atos. Essa atmosfera tem impacto – concreto – entre nós. Sobre nós. Esse impacto pode resultar em sangue.  Quando um governante fala em licença para atirar, o que, na prática, equivale a licença para matar, não nos enganemos: esse governante faz um gesto de condescendência para o tiro sem consequências.


Quando um governante insiste em falar de excludente de ilicitude para policiais: esse governante afrouxa a pressão, a responsabilidade própria ao ato de puxar o gatilho. [é sempre efetuada uma, digamos, confusão - talvez proposital, talvez involuntária entre EXCLUDENTE DE ILICITUDE e licença para matar
EXCLUDENTE DE ILICITUDE é quando o policial atendendo uma série de requisitos legais, previamente estabelecidos, mata alguém em defesa própria ou de terceiros e após o competente e indispensável inquérito policial ser concluído e enviado ao Ministério Público e o MP entende que o policial atendeu todos os requisitos para ser alcançado pelo dispositivo em comento e assim não é condenado - se o juiz tiver o mesmo entendimento do MP, o policial sequer vai a julgamento - ou se condenado for, recebe pena inferior ao mínimo cabível.

NÃO OCORRE NENHUM FAVORECIMENTO ao policial -   lembramos que o dispositivo pode ser aplicado a qualquer cidadão e não apenas a um militar ou agente policial.]

Já a LICENÇA PARA MATAR não merece sequer comentários, já que o governador apenas usou linguagem de palanque,mas, não ordenou a prática - se o fizesse seria uma ordem manifestamente ilegal e seria bloqueada ainda nos escalões superiores da Polícia Militar ou Civil, Guarda Municipal.]

Ao assim proceder, o governante esvazia o papel do Estado, o papel de mediador, de zelador do convívio social, o conjunto de valores que define o Estado – proteger, antes e acima de tudo, os inocentes –, para colocar esse mesmo Estado no lugar imoral do criminoso, aquele que não está nem aí. O espírito do tempo corrente dissolve fronteiras, normaliza a barbárie.

Lamento, imensamente, sempre que um agente público de segurança é baleado, morre; mas isso, infelizmente, compõe a natureza do trabalho do policial. A menina Ágatha, porém, nada tinha com isso. Ela não integrava esse contrato. Foi vítima, mais uma, de um procedimento estúpido, obra de governantes como Wilson Witzel, que também – avançando sem inteligência, investindo no confronto para jogar pra galera – expõe a Polícia Militar ao descrédito e à desconfiança. Entrar numa favela, disparar a esmo, não raro matar inocentes, ter policiais mortos, sem tirar a favela do controle do crime: isso – esse enxugar de gelo – só multiplica a revolta, o ressentimento. Talvez sacie o desejo de alguns tarados, mas nada resolve para a sociedade. [curioso é que até o presente momento o que se tem é depoimentos de parentes da criança, que sequer tem uma visão do conjunto de acontecimentos e de terceiros e que sempre acusam a polícia - quem garante que algum traficante atirou na criança? se valendo do fato dos policiais estarem atirando contra bandidos que haviam iniciado uma agressão aos militares.

Ao atirarem em inocentes, especialmente crianças, os bandidos conseguem o efeito  de deixar a população contra a PM e assim desestimular, ou pelo menos reduzir, as operações policiais.
Quem garante a segurança de qualquer um dos moradores que acusam a polícia, se eles fizessem ainda que um simples comentário insinuando que os tiros haviam partido dos bandidos?

Absurdo é que ocorreu o tiroteio e o tribunal supremo dos que nem lá estavam já começam a condenar o policial e o governador, que em um momento não muito feliz sobre o ângulo do maldito 'politicamente correto' aprovou de forma efusiva a ação policial que matou um sequestrador - salvando a vida de vários réfens - e que em outra ocasião,usando linguagem de palanque 'deu permissão' aos policiais para matar bandidos.]

Vamos lembrar... Porque o espírito do tempo é feito de acúmulos, da repetição e da assimilação de mensagens. Na sexta-feira passada, antes dessa nova tragédia, a que matou Ágatha, comentando aquela desastrosa operação na Maré, em que a polícia atirou contra traficantes nas cercanias de escolas, o governador do Rio de Janeiro disse o seguinte:

“Quando a gente vê imagens das crianças deitadas nas escolas, a gente esquece que, durante a Segunda Guerra Mundial, se não fosse o inglês ir para baixo da terra, no bombardeio dos nazistas, e Winston Churchill ter enfrentado, com sangue suor e lágrimas, o nazismo, o que seria da humanidade hoje? O que seria do mundo, se Napoleão, Victor, tivessem vencido as batalhas? Porque hoje, guardadas as proporções, é o mesmo que acontece com o crime organizado. E nós vamos nos abater? Não. Nós vamos, hoje, fazer com que nossas crianças, elas se recuperem de todo esse trauma. Vamos ajudar as famílias. Porque amanhã essas crianças vão estar de pé em suas comunidades.”

Ágatha – a morte da menina Ágatha – é produto de uma mentalidade que compara a circunstância de um povo em guerra, em guerra contra um inimigo externo, à de crianças que se protegiam contra a ameaça de efeitos colaterais decorrentes da ação de seu próprio Estado. gatha, contudo, não teve a chance de se proteger nem terá, pois, a oportunidade de um trauma do qual se recuperar.

Carlos Andreazza - O Globo


segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Moral e política

Nada impede que um governo envolvido em questões de imoralidade pública faça reformas em proveito da coisa pública

Moral e política têm sido tão entrelaçadas em nosso país, que, por vezes, perde-se uma distinção essencial entre essas duas áreas do conhecimento e da ação. Se, por um lado, é um ganho político e institucional da maior importância moralizar a política, por outro lado, não se pode tornar essa mesma política uma atividade de cunho moral.

Uma coisa é a sociedade assumir a moralidade pública enquanto bandeira, exigindo que os políticos ajam de acordo com os critérios de honestidade no tratamento da coisa pública, que, enquanto pública, não pode ser apropriada privadamente. Trata-se da acepção mesma de República. Outra muito diferente consiste em aplicar à política os mesmos critérios que são empregados nos julgamentos de outras ações humanas, visto que a política é o terreno da violência, da intriga e do engano do outro. Trata-se de uma dimensão irrecusável da realidade tal como ela é, devendo ser tratada conforme seus instrumentos específicos. 

Nada impede, por exemplo, que um governo envolvido em questões de imoralidade pública faça reformas necessárias em proveito da coisa pública, do bem-estar de todos. Pretender que a moral e a política coincidam pode produzir a satisfação da alma que se representa como virtuosa, sem que o dado básico da política enquanto atividade caracterizada por relações de força, pela falta de moralidade, sofra qualquer alteração. No caso do governo Temer, por exemplo, temos a velha política sendo utilizada conforme os ditames de uma agenda reformista, transformando o país. Ao assumir, o novo presidente defrontou-se com uma questão estrutural da democracia, atinente aos seus próprios fundamentos: todo presidente governa com o Parlamento que tem à mão. Não é de seu arbítrio escolher a composição do Poder Legislativo. É o jogo mesmo das instituições democráticas. Trata-se do exercício da soberania popular. Não nos situamos na esfera da moralidade, mas da política, com seu amoralismo e demagogia. 

Note-se que a política foi empregada não para contemplar critérios abstratos de moralidade, com suas próprias noções de bem, mas para a realização de outra noção específica do bem, a do bem público, coletivo. Poder-se-ia falar aqui de uma contraposição entre o bem abstrato da moralidade e o bem público da política, por mais que se busque reduzir o alcance dessa diferenciação. Reduzir, porém não anular, pois suas esferas de atuação são diferentes, assim como suas pressuposições e critérios. 

Nesta perspectiva, o presidente negociou um projeto de reformas, voltado para os fundamentos mesmos do Estado e da sociedade, que veicula, por si mesmo, a sua própria noção de bem coletivo e de bem-estar social. O povo clama por moralidade pública, o novo governo não se caracteriza por seguir estes critérios e, no entanto, reformas são feitas para tornar possível o bem público, menosprezado pelo governo anterior. 

Temos, então, o que pode aparecer como um paradoxo. O presidente da República implementou um moderno projeto de reformas, utilizando-se dos velhos instrumentos da política. Poder-se-ia dizer que a “imoralidade” tornou-se um instrumento de uma outra conotação ética, a do bem público. O vício prestou serviço à virtude. Ora, o que aparece como um paradoxo desaparece na medida em que os critérios da moralidade abstrata e da política, assim como seus fundamentos e condições, não são os mesmos, seguindo outros parâmetros e pressupostos. O problema só surge quando aplicamos a uma e outra esfera de atuação humana critérios que são, por natureza, distintos. 

A política é o terreno do “ser”, da realidade dada, em todas as suas dimensões, incluindo a violência e tudo o que desagrada ao juízo moral. Gostaríamos, certamente, de que as coisas fossem de outro modo, mais eis um dado incontornável de qualquer diagnóstico, análise e juízo. A moral é o terreno do “dever-ser”, das construções valorativas, em que entram em jogo critérios do que estimamos que a realidade deveria ser, sem suas fraturas e imperfeições. No mundo real, a ideia de perfeição aparece como sendo algo desejável, um fim inalcançável, porém alguns a estimam como possível, o que transparece nas utopias e nas diferentes formas de messianismo político. 

Ora, utopias e messianismo político expressam um menosprezo pela realidade, como se esta pudesse ser simplesmente substituída por um movimento de tipo revolucionário que tudo destruiria do existente. Ocorre que o mundo do dever-ser é um mundo inexistente, um mundo de ideias que só encontra sustentação em si mesmo. Cria finalidades e objetivos que possuem enquanto fundamento somente a sua própria abstração.  Neste sentido, o discurso das almas virtuosas pode produzir um efeito retórico para contemplar os amantes da moralidade abstrata, mas é de pouca utilidade quando confrontado às questões concretas de como governar, conforme as agruras e o cinismo da política. Hegel dizia que a consciência veste aqui a roupagem do que ele chamava de “bela alma”, encantada com sua moralidade pura e sua beleza estética, como se pudesse viver à parte dos assuntos do mundo, onde impera a impureza. 

Uma bela alma evita sujar-se com os assuntos do mundo, porém este segue o seu curso, com a sujeira que o constitui. Se permanecer em sua abstração, na subjetividade do lamento, não produzirá maiores consequências políticas, salvo se enveredar para posturas políticas. Ocorre que, no caso brasileiro, temos a especificidade de promotores e juízes, que se estimam destinados a uma missão, como se pudessem construir um mundo totalmente novo, partindo do pressuposto de que toda classe política é “má”, “suja”, a ser destruída e substituída por algo puramente moral. Ocorre que esse outro só existe no terreno das ideias, do dever-ser. Querer impô-lo pela força de decisões judiciais expressa uma moralidade que se revela sob a forma do messianismo político. [pior de tudo é que a maior parte de promotores e juízes que se julgam encarregados de uma missão, tentam cumprir a incumbência interessados em uma recompensa, qual seja: o ingresso na política.
Esperar uma política pura é perder tempo, por isso, defendemos que o 'politicamente correto' na quase totalidade das vezes não representa o certo, o ético.]
 
Por: Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul