O Estado de S.Paulo
Controle de dados pode servir, além da defesa de aliados, para ataque de adversários?
O mais novo temor em Brasília é que a Lava Jato original possa ser
trocada por uma Lava Jato particular, em que os dados não seriam mais
compartilhados por uma força-tarefa de juízes, procuradores, auditores e
delegados para o combate à corrupção, mas, sim, centralizados num único
gabinete: o do presidente da República.
Quando se questiona essa investida simultânea na PF, no antigo Coaf e na
Receita, suspeita-se que tudo isso é para a proteção de filhos,
parentes, amigos e poderosos dos três Poderes. Que tal olhar para o
outro lado da moeda? E se, em vez de ser exclusivamente de defesa, uma
intervenção nas instituições de investigação servir também para o
ataque? Em tese, já imaginaram o que pode representar a PF nas mãos de um filho
do presidente, eventualmente escrivão de polícia; um secretário da
Receita Federal disposto a mudar tudo e a centralizar os dados e
investigações para dividi-las com o poder; um chefão do Coaf que admita
compartilhar informações sobre movimentações financeiras com o Planalto? [por sorte, o questionamento proposto é em tese e certamente nenhum dos candidatos a se tornar dono de instituições, tem tal interesse.
Oportuno registrar: a PF é subordinada diretamente ao ministro da Justiça que está subordinado diretamente ao Presidente da República - que até 2022, com as bençãos de DEUS e reeleição, é JAIR BOLSONARO.
A mesma posição de segundo escalão se aplica ao Coaf - atual UIT - e à Receita federal, mudando apenas o ministério.]
Significa que, sempre em tese, uma única pessoa, o presidente da
República – atual ou futuro – teria a sua disposição um mapeamento
detalhado da vida pessoal, da folha policial e dos dados fiscais e
bancários de todos os seus desafetos de qualquer área. Além de defender o
amigo X, ele poderia facilmente atacar o adversário Y. Mesmo antes de centralizar as escolhas do novo procurador-geral da
República e o comando da PF, Receita e Coaf, [aqui um registro óbvio, mas, evita que passe despercebido a eventuais desavisados, a forma de escolha do chefe da PGR e a subordinação dos ministros de Estado vigora desde a CF 88 - da qual Bolsonaro sequer foi membro da Constituinte - e mesmo das anteriores.] o presidente Jair Bolsonaro
já usou publicamente, e com seu próprio viés, informações conhecidas
contra, por exemplo, Luciano Huck, João Dória, jornalistas. E se tiver
acesso a dados de ministros de tribunais, deputados, senadores,
governadores, funcionários, cidadãos e cidadãs? Além de divulgar,
ficaria tentado a usar esse arsenal para amedrontar quem ousar
confrontá-lo ou meramente questioná-lo?
É interessante a aproximação de Bolsonaro, seus filhos, seu chanceler e
outros ministros com o autoproclamado guru da direita internacional,
Steve Bannon, que foi estrategista da campanha presidencial de Donald
Trump e depois demitido por ele da Casa Branca. Entre outras coisas,
Bannon é especialista em coleta, análise e uso político de dados de
cidadãos. Aliás, quem gosta de ficção vai ficar fascinado pelo documentário “The
Great Hack” (“Nada é Privado: o escândalo da Cambridge Analytica”), que
confirma o quanto a realidade anda superando a imaginação e as
construções mais mirabolantes dos ficcionistas. O 007 é pré-histórico,
quer dizer, pré-internet.
Em resumo, para não dar “spoiler”, ali é contada como foi construída a
vitória de Trump, ou melhor, a derrota de Hillary Clinton nos EUA, e
como o Reino Unido conseguiu cair na armadilha do Brexit. Primeiros
ministros vêm e vão, sem recuos e sem avanços – sem saída. E como se
chegou a isso? Com o uso dos dados e mentes das pessoas, identificando e
focando nas menos convictas – logo, mais suscetíveis a propagandas
maciças e às demoníacas fakenews. Por trás de tudo, a onda mundial da
extrema direita. Detalhe: Bolsonaro aparece ligeiramente no filme.
Na era PT, ficamos roucos de denunciar o aparelhamento de órgãos e
estatais em favor de um partido, um grupo político e, finalmente, um
esquema sistêmico de corrupção. Neste primeiro ano de Bolsonaro, surgem
dúvidas sobre o aparelhamento, se não é mais por um partido, mas por um
projeto de poder com conexões internacionais e centralizado num
presidente que, vira e mexe, dá uma cutucada na democracia. Com instituições e dados centralizados, sob o risco de uso na defesa de
aliados e no ataque de adversários, ou de meros críticos, pode-se criar a
mais destrutiva arma política: o medo. É só suposição, mas não é pura
ficção.
Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo