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quinta-feira, 25 de agosto de 2022

O Big Brother mudou-se para a cobertura. Na caradura. - Percival Puggina

Quando tudo parece muito ruim;

quando ministros do STF proferem decisões como quem dispara o gatilho e

quando leem a Constituição como magos em torno de obediente bola de cristal;

quando quem tem o dever constitucional de reagir não o faz;

quando quem tem o dever moral de denunciar, aplaude ou silencia;

quando a violência judicial é incitada pela orquestração midiática;

quando um ladrão pode concorrer à presidência da República e tantos não se importam com isso;

quando o Big Brother sem votos mudou-se para a cobertura e vai deixando vítimas,

devemos começar a pensar sobre o que vem depois.

Sim, porque haverá um depois. Hoje, o Brasil está assim, mesmo com nossa intimidade e nossos direitos de opinião e expressão respaldados pela claudicante Constituição Federal e legitimados pelo resultado eleitoral de 2018.

Mas, e se o pior acontecer? Se a nação for levada ao desvario pela manipulação midiática, da qual as cenas teatrais da última segunda-feira, representam um pequeno espasmo dos contorcionismos cotidianos no carretel dos noticiários? Se o poder que tudo pode se sentir legitimado, a ditadura consolidar-se na cobertura e os ratos ocuparem o prédio?

Na reta final da eleição mais decisiva de nossa história, somos levados a entender que os passos já foram dados, os postos tomados, as portas aferrolhadas. A grama do vizinho pisoteada; sua porta arrombada; já levaram seu computador, seu celular, seus papéis; já vieram buscá-lo. Mas aquilo não era com você, certo?

Há mais de um século é contada a sequência dessa história. Os que hoje trovejam o horizonte nacional, são fraternais amigos de ditadores vizinhos e distantes que estão fazendo exatamente isso. Outubro é logo ali. Faça a sua parte. 

Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

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quarta-feira, 23 de março de 2022

Assistimos infrações à Constituição, sob o silêncio do Congresso

Alexandre Garcia

O bloqueio do Telegram, que atingiu de 50 a 70 milhões de brasileiros, e seu desbloqueio, dois dias depois, deixou algumas mensagens telegráficas para a cidadania. Primeiro, que não se respeita a Constituição, sob o silêncio vergonhoso de muitos. Alegando questões administrativas, na verdade se faz censura, contrariando o artigo 5º, cláusula pétrea, que assegura a livre manifestação do pensamento, vedado o anonimato, e garante a inviolabilidade das comunicações; e o art. 220, que proíbe a censura ou qualquer restrição sobre a informação e a expressão sob qualquer forma, processo ou veículo. 
Se for para pegar um criminoso, por calúnia, injúria, difamação, pedofilia, tráfico, por plataformas digitais, que se descubra o autor para flagrá-lo, mas é exorbitante punir genericamente quem usa a plataforma para conversar ou exercer sua profissão. Isso é censura prévia, além de pressupor que todos são suspeitos. Isso contraria os mais primeiros princípios de direto.
Segundo, porque em país livre não há tutores da cidadania; não há um Big Brother, como no livro de Orwell, a criar um Ministério da Verdade. Impossível um regime democrático ter alguém que determine, acima da Constituição, o que as pessoas podem ver, ouvir, ler e dizer. Terceiro, porque o único dono da Constituição é o povo; 
a Constituição atribui ao Supremo a guarda da lei maior — são os Onze Zelotes, os zeladores dessa arca da aliança com a democracia, que é a Constituição, que Ulisses chamava de cidadã. Mas não são eles que podem mudá-la. O Congresso é que tem esse poder, mas o Congresso se conseguir 60% dos votos de cada Casa, em duas votação cada uma. 
 
Mas impossível mudar cláusula pétrea, como é o art. 5º, já tantas vezes desobedecido, a não ser com a eleição de uma nova assembleia constituinte. No entanto, testemunhamos uma série de gravíssimas infrações à Constituição, desde o pretexto da pandemia, incluído até o desrespeito à inviolabilidade do mandato parlamentar, sob o silêncio vergonhoso do Congresso.
 
É óbvio, mas é preciso relembrar que, para fazer leis ou mudá-las, só com mandato popular conferido aos deputados e senadores. 
Para governar, exercer a administração pública, só tendo dezenas de milhões de votos para eleger um presidente da República. 
Assim, legislar e administrar é para quem tem voto, mandato conferido pelo povo, que é a origem do poder. 
Está nos dois primeiros artigos da Constituição e fala em três poderes independentes e harmônicos. Harmonia é quando um poder respeita a independência dos outros
Entre os poderes, uns fiscalizam os outros, e todos são fiscalizados pelo cidadão eleitor e pagador de impostos. 
O Legislativo fiscaliza os demais poderes; em especial o Senado fiscaliza e pode julgar ministro do Supremo, mas há um clamor contra o silêncio daquela Casa.
 
Senadores cobraram, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, postou que "descumprir a Constituição, aviltá-la e criticá-la severamente como se fosse um pedaço de papel, é algo muito nocivo para o nosso país. Constituição não é apenas um pedaço de papel. Ela deve ser respeitada e cumprida por todos". Só não citou a quem ele se dirige
Não lembro de críticas severas à Constituição, a ponto de merecer essa citação, mas não cumpri-la, não é apenas "algo muito nocivo", é crime contra a maior das leis
Se praticado por autoridade, exige providência legal.  
Fico imaginando se o presidente do Senado pretende apenas aplacar os senadores que cobram dele uma posição de defesa da Constituição contra os que deveriam protegê-la, mas a ignoram. Mas palavras não substituem atos.

Alexandre Garcia, colunista - Correio Braziliense


quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Quebrando o tabu: comentar Big Brother não é defesa de minorias - Gazeta do Povo

Madeleine Lacsko

Identitarismo Tóxico

Quebrando o tabu: comentar Big Brother não é defesa de minorias. A tese tóxica de que pessoas com vitiligo não são capazes de lidar com rejeição é um exemplo lapidar para você entender como o identitarismo funciona.

Começo pedindo mil desculpas se você gosta de Big Brother, eu tenho uma birra monumental. 
E não é pela baixa qualidade do entretenimento, mas porque precisaria piorar bastante para ser realmente boa diversão trash. O morno se vomita, gosto de quente ou frio. Vou exemplificar com casos reais para deixar ainda mais claro.

Esta é uma semana em que estou muito feliz porque um amigo que entende de ópera se dispôs a me explicar operetas de compositores húngaros. Estou maravilhada com a versão alemã de Gräfin Mariza. Também me diverti muito assistindo ao canal do Edinaldo Pereira no YouTube e vendo trechos de "A Casa dos Desesperados", de Sergio Mallandro. Para mim, ela é muito melhor que o Big Brother.

No meio disso tudo, acabei perdendo a paciência com esse mercado do identitarismo, que cria teorias malucas para que o parque de areia antialérgica possa se sentir revolucionário. Tudo tem limite. Para mim, o limite é quando eu perco a paciência e foi hoje. O site de bom-mocismo para elites metropolitanas Quebrando o Tabu conseguiu a façanha com uma postagem sobre Big Brother.

Parece para você uma defesa exagerada de minorias?
Pois eu te digo que é o oposto, como todo identitarismo. O único resultado é a proteção psicológica de filho de rico que quer se sentir revolucionário mas tem preguiça de fazer revolução. É uma postagem mais do que superficial ou negacionista, é perversa. A mensagem que passa para quem realmente tem problemas para lidar com rejeição é cruel, a pior possível: diz que fica cada vez pior e o único jeito é ninguém mais te rejeitar.

Pense no primeiro e no último fora que você levou na vida.
Independentemente de qual tenha sido o mais dolorido, com qual deles você teve mais facilidade para lidar? Pois é, nós aprendemos com erros e traumas, é isso o que mostra a psicologia. Obviamente o sofrimento também traz consequências ruins. E isso pode ser superado com ajuda, como comprova a psicologia.

O Quebrando o Tabu resolveu dizer a todas as meninas com vitiligo que serão eternamente rejeitadas e vão ficar cada vez mais feridas com isso. Passou uma mensagem tóxica e negacionista para lacrar. Eu vou fazer o oposto. Vou dar a informação que vem da ciência para que nós possamos estender a mão a quem sofre com rejeição ou com a própria aparência. Essas pessoas não estão sozinhas e a ciência já evoluiu o suficiente para que elas possam proteger sua saúde mental.

Há pessoas que sofrem demais com rejeição de qualquer tipo. Não são necessariamente as que são mais rejeitadas. Somos humanos, não tamagochis. É possível que uma pessoa sofra demais com rejeição sem passar tanto por isso e vice-versa. Ocorre que este sofrimento hoje é desnecessário. Já há diversas terapias comprovadas para aprender a lidar com rejeição.

Se é o seu caso ou se você conhece alguém nessa situação, sugiro a leitura do livro "The Coddling of The American Mind", do psicólogo Jonathan Haidt, que eu cito bastante e foi uma das leituras mais esclarecedoras que já fiz. Ele fala muito sobre uma terapia comum que ajuda demais quando a pessoa sofre demais com traumas reais, a Cognitivo-Comportamental. Também explica que é possível entender esse sofrimento e se libertar da paralisia ou descontrole a cada lembrança.

Pessoas que têm problemas com a aparência às vezes pensam que vão viver sofrendo eternamente a cada olhar torto.  
O ideal seria as pessoas não olharem feio para quem é diferente ou tem deficiência, mas é possível? Não. O olhar torto será constante, infelizmente. 
Ocorre que é possível proteger a saúde mental de quem passa por isso. Sugiro vivamente que leiam os livros do meu querido amigo José Luiz Tejon. É uma inspiração para quem sofre virar a mesa.

Tejon teve o rosto queimado com uma lata de cera que explodiu no quintal quando tinha 5 anos de idade. Não queria nunca mais sair de casa. Pessoas com marcas bem menores costumam ter uma postura encolhida, acanhada, tentam esconder quem são para que os outros não olhem estranho. Ele não. Descobri isso quando a queimadura dele e a minha distração constante se encontraram pela primeira vez. Eu estava preparando uma pauta, fui apresentada ao Tejon, que é professor em diversas universidades e palestrante talentosíssimo. Estava sentada olhando o computador, ele sentou-se ao lado e começou a me ajudar. Quem me conhece sabe que pode cair o mundo e eu continuo no livro ou no computador.

Depois de um tempão trocando ideias, olhei para ele pela primeira vez. "Você tem a cara queimada, Tejon?" - quando eu vi, já tinha saído e exatamente desse jeito. Morri de vergonha. Fui tentar corrigir. Ele gargalhou do meu embaraço. Então me contou toda a história dele, dos livros, de como esse acidente que marcou a aparência ajudou a forjar o caráter porque ele teve ajuda para lidar com o trauma. Acabei fazendo o prefácio de um dos livros dele, "Guerreiros Não Nascem Prontos".

O mais engraçado é que os identitaristas vivem falando do tal "lugar de fala". Para falar sobre como é ter vitiligo e levar um fora você precisa ter vitiligo e ter levado um fora. Em tese, eu não poderia comentar sobre isso. Mas, por que o Quebrando o Tabu pode? E sem nem ouvir quem tem vitiligo? Porque identitarismo é um produto de luxo, o freepass do grande defensor de fracos e oprimidos. Já eu, que sou fascista, prefiro ouvir quem tem vitiligo, como essa moça:

E por que uma publicação que diz defender minorias lança ao público uma teoria negacionista que prejudica a saúde mental dessas minorias? Porque o identitarismo não é defesa das minorias, é um produto de luxo para elites metropolitanas. E se prejudicar as minorias, não tem problema. Elite metropolitana não é minoria, então tudo bem. O pessoal é encostado, superficial e egoísta? É, mas não quer se sentir assim nem mudar. 
Então o Quebrando o Tabu ensina que ver Big Brother é ser revolucionário. Pronto!

Mas o revolucionário não pode ver Big Brother? E quem vê Big Brother não pode comentar que gostou o não do fora que o rapaz deu na moça? Claro que pode! Só não pode dizer que isso é fazer militância ou defender minorias porque não é. Trata-se apenas de ver entretenimento lixo e entreter-se conversando sobre ele com quem faz o mesmo.

Eu assumo que gosto mesmo de entretenimento lixo como DNA do Ratinho e a Casa dos Desesperados de Sergio Mallandro. Tenho direito, ué, qual o problema? 
O pessoal do Quebrando o Tabu tem vergonha de ser quem é, então precisa fingir que vê Big Brother porque defende minorias em programas de grande audiência. 
Eu vou dizer então que vejo Ratinho e Sergio Mallandro porque rejeito a universalização da visão eurocêntrica de entretenimento e prefiro produções latinoamericanas.

Se você está precisando fazer uma grana, não vou julgar. Termino o artigo com uma pequena aula sobre como ganhar a vida enganando otário que tem pai rico. Uma alternativa é começar a xingar todo mundo que vê Big Brother dizendo que estão contribuindo para uma massificação do entretenimento eurocentrado. É preciso descolonizar a indústria do espetáculo.

Big Brother é uma criação da holandesa Endemol. Além de propagar os valores e o estilo de entretenimento do colonizador, ainda faz com que as culturas originárias percam o espaço na grade de programação das emissoras de seus próprios países. Em vez de um Chico Anysio e um Jô Soares, temos dona Endemol branca de olhos azuis dando as cartas. Eu só vejo DNA do Ratinho por isso, porque sou uma revolucionária.

E como ganha dinheiro com isso? Simples, tem que mirar em quem é rico e mencionou ou curtiu qualquer coisa do Big Brother. Junta uma turma de desocupados precisando de grana igual você e começa a xingar a pessoa. Ela tem de ser fascista e nazista porque está perpetuando o modelo opressor de entretenimento do colonizador, impedindo que as próximas gerações valorizem a cultura local. Daí, você começa a oferecer consultoria de letramento em descolonização. Contratou, a gangue para de xingar. Se você for pessoa honesta, ao ganhar sua primeira bolada, compartilhe a comissão comigo. Obrigada.

Madeleine Lackso, colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

domingo, 5 de setembro de 2021

STF: De guardião da Constituição a guardião da verdade?

André Gonçalves Fernandes

Vivemos em tempos estranhos. Achávamos que o STF fosse apenas o guardião da Constituição, o que, por si só, já não é pouco. Aliás, se, nos últimos anos, sua atuação restringisse em bem desempenhar essa nobre tarefa no que andou faltando, a julgar, pelo menos, à luz do ativismo judicial reinante e do desfile de decisões que reescreveram o texto do poder constituinte originário o STF estaria a atender ao comando constitucional.

 Fachada do STF - Foto: Dorivan Marinho / STF
 [com amplo espaço para a placa MINISTÉRIO DA VERDADE - destacando que é praxe os 'ministérios' integrarem a estrutura do Poder Executivo, do qual são órgãos auxiliares; há exceções = o Tribunal de Contas da União, integra o Poder Legislativo.]

Contudo, parece que os ares palacianos suprimiram o pouco do senso comum que ali havia e, agora, além de ser guardião da Constituição, o STF avocou a função de guardião da verdade. Isso mesmo. A partir da edição da Resolução 742/21, foi o criado o “Programa de Combate à Desinformação” para combater conteúdos que – na visão “aleteica” da Corte possam ser tipificados como "desinformação e narrativas odiosas" direcionados à Corte e aos ministros do STF, a ser “gerenciado por um Comitê Gestor”.


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Numa realidade em que as expressões "Big Brother", "polícia das ideias", "duplipensar", "pensamento-crime" e "novilíngua", infelizmente, tornaram-se corriqueiras, a tal resolução tem o inegável mérito de inovar, ao introduzir, digamos, o que com ela, na realidade, pretende-se: o papel de gestor da verdade ou, na hermenêutica orwelliana, a instituição do Ministério da Verdade.

Pronto. Agora, creio que já podemos incorporar o enredo de 1984 por completo. Resta apenas aguardar pelo final da trama, embora o “inquérito do fim do mundo” já tenha dado passos firmes nesse sentido, como bem ressalvou, por ocasião da decisão do plenário da corte, a lucidez do ministro Marco Aurélio.

Veja Também: - Opinião: Esquerda e estudantes aumentam ataques à liberdade de expressão nas universidades

- Brasil vive retrocesso na liberdade de expressão, diz cientista político

Sabemos que uma árdua tarefa, em toda sociedade democrática, está em aquilatar, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão e a proibição da discriminação, ainda que fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, porque envolve a verdade prática a ser buscada aqui e agora nessa historicidade localizada. Nesse particular, tolerar a desinformação ou a narrativa odiosa como, aliás, muitas a que assistimos ultimamente contra o STF –, por mais risíveis que sejam seus lastros teóricos, não significa concordar com elas ou aprová-las.

Permitir a livre expressão de opiniões antidemocráticas, xenófobas, nacionalistas, racistas, revisionistas, odiosas ou falsas não implica em estar de acordo com seus protagonistas e nem mesmo em dialogar com eles, quanto mais em conceder o reconhecimento público que esperam. Assegurar um acesso ao debate público é, no fundo, repudiar a intolerância intelectual, de molde, inclusive, a respeitar a vida intelectiva do homem, faculdade operativa antropológica que justamente nos diferencia de todo o mundo dos seres vivos e que, somado à nossa condição de criatura imago Dei, fundamenta, ontologicamente, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Uma sociedade sadia deve se legitimar no debate público. Admitir-se que qualquer ideia possa ser veiculada livremente é, no fundo, fazer com que os membros dessa sociedade aprendam a discernir, deliberar e formular um juízo prudencial de valor sobre as ideias que merecem ser vivenciadas na práxis social em prol do bem comum, descartando ou tentando aprimorar – no teatro social e não na canetada de um burocrata do Ministério da Verdade – aquelas que possam atentar contra isso.

Então, aqui, temos um ponto crucial na busca da verdade prática a ser buscada no seio social: a relação entre verdade e liberdade. A liberdade está associada a uma certa medida, isto é, a medida da realidade que, por sua vez, em termos tomistas, corresponde à medida da verdade.

Então, para buscarmos a verdade das ideias que se refletem na práxis social, suprimir a narrativa odiosa ou a desinformação é impedir que a liberdade atue eficazmente nesse sentido. Todavia, não ficamos só nisso, porque tal eliminação pressupõe um certo despotismo judicial ilustrado: a corte incorpora uma função deliberativa daquilo que acredita ser a verdade prática historicamente situada e, em casos mais patológicos, pode vir a professar um messianismo político-social, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, aquilo que é próprio da deliberação social, onde o juízo prudencial final é formado por um fecundo e maior entrechoque das opiniões de seus atores.

Nesse sentido, tal despotismo passa a impor sua interpretação sob o manto de uma decisão administrativa, mas esse manto é diáfano e, por isso, podemos observar, a partir da carência da intermediação de um processo deliberativo social, toda sua fragilidade intrínseca e, por mais ilustrados que sejam seus fundamentos ou as cabeças que componham o tal Ministério da Verdade, continua-se a cortejar com o despotismo na forma de pensar e decidir.

Por isso, a proteção preferencial pela liberdade de expressão – vinculada à liberdade de pensamento, conformadora da opinião pública livre e condição do pluralismo como valor do ordenamento jurídico – convida-nos a excluir a possibilidade de sancionar os discursos nocivos ou desinformativos pela via da pura e simples gestão do Ministério da Verdade.

Dessa forma, numa sociedade aberta, evita-se que qualquer ideia, por mais insustentável que nos pareça num primeiro olhar intuitivo, possa ser rejeitada pela caneta inquisitorial do gestor de plantão, só pelo fato de ser considerado um discurso de ódio ou uma desinformação, supostamente apto a colocar em risco as mais elementares demandas públicas de ordem institucional no STF.  O perigo não está tanto no reconhecimento da objetividade da verdade, mas nos excessos de convencimento subjetivo dos membros do Ministério da Verdade sobre a possibilidade de captá-la, algo que os leva a descartar, de antemão, uma humilde e prudente falibilidade.

As exigências de racionalidade prática dos meios adequados para se fazer prevalecer a verdade prática, longe de destruir seus fundamentos, acabam por se apoiar em fundamentos éticos, mormente no postulado de que a tolerância exige propor a verdade prática e renunciar sua imposição pura e simples, sem que isso demande de cada um de nós, sequer remotamente, a obrigação de negar essa mesma verdade, afirmá-la ou de ignorá-la, tornando-se desnecessárias as medidas, por parte do Ministério da Verdade, de “alfabetização midiática” [Mobral da Verdade?] e fortalecimento da imagem (artigo 2º, inciso II, da Resolução 742/21).

Aliás, acerca dessas ações, podemos apostar que esse tal tenderá ao mesmo insucesso da versão raiz do regime militar e, se o STF pretende um legítimo fortalecimento de sua imagem, basta revogar essa resolução e começar a fazer o feijão com arroz como guardião da Constituição –, porque o que me preocupa, como cidadão, não são tantas as notícias falsas sobre a corte, mas, paradoxalmente, as verdadeiras:  
- censura à Revista Crusoé; 
- busca e apreensão de bens, fundada numa discutível ameaça, em casa de general; 
- influência na ação que resultou na desmonetização de canais no YouTube; 
- proibição de uso de redes sociais por jornalistas não engajados;               - afastamento de fiscais da Receita Federal que investigavam familiares de ministros da corte; 
- expedição de mandado de constatação em escritório do ex-PGR com base num fato penal atípico; 
- o já mencionado inquérito do fim do mundo e, agora, 
- a presente resolução administrativa.

A Constituição, que nos é apresentada como a verdade jurídico-política dessa sociedade em que vivemos aqui e agora, é, por definição, suscetível de desenvolvimentos institucionais políticos e legislativos muito diversos, desde que respeitem seu conteúdo diretivo ou principiológico.

Este peculiar modo de conhecimento da realidade convida-nos, prudentemente, a uma busca compartilhada da verdade prática e não a uma proposta de imposição do autoritarismo da subjetividade togada pela palavra e pela pena do Ministério da Verdade. Evitamos, desta maneira, a “tolerância repressiva” de Marcuse: ou você concorda comigo ou você é um desinformante odioso.

Não se trata de fabricar um consenso, entendido como uma espécie de substitutivo de uns princípios objetivos com os quais não poderíamos contar para iluminar uma realidade material, mas, antes, de encontrar, fecundamente, o sentido objetivo de uma exigência prática, ajudando-nos conjuntamente a desvelá-la. Por sinal, a colegialidade típica das cortes constitucionais não deixa de responder, mais de uma vez, a esta mesma dinâmica, a qual, no caso da edição da Resolução 742/21, andou a faltar. Por fim, espero, sinceramente, que, logo amanhã cedo, a Polícia Federal não bata aqui em casa. A patroa não irá gostar e, caso volte no mesmo dia para o lar, serei apenado a dormir na sala de estar.

André Gonçalves Fernandes, post Ph.D., é professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).

 VIDA E CIDADANIA - GAZETA DO POVO


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O Supremo e seu novo “Ministério da Verdade” - Gazeta do Povo

Editorial - Gazeta do Povo

Quando, dias atrás, descrevemos a perseguição atual à liberdade de expressão no Brasil como uma mistura de Kafka e Orwell, acabava de vir a público a mais recente ação do Supremo Tribunal Federal para confirmar a avaliação. Em portaria datada de 27 de agosto e publicada no dia 30, a corte investe ainda mais na novilíngua e institui o seu próprio “Ministério da Verdade”, chamado eufemisticamente de “Programa de Combate à Desinformação (PCD)” e que mantém todos os vícios de que tratamos em ocasiões anteriores, especialmente a confusão conceitual e formal que confunde diferentes tipos de manifestação e os considera todos passíveis de criminalização ou repressão.

LEIA TAMBÉM: O que muda no Imposto de Renda após as alterações feitas pela Câmara

Percebe-se, já nos “considerandos”, que o Supremo já define de forma muito aberta o que gostaria de combater. Cita três vezes a “desinformação”, dando a entender que a preocupação da corte está na difusão de afirmações factuais falsas a respeito da atuação do Supremo; mas também menciona o “combate ao discurso de ódio contra instituições públicas”. Ora, “discurso de ódio”, como bem se sabe, se tornou uma “versão negativa” do que o filósofo Alfonso López Quintás chamou de “palavras-talismã”, conceitos vagos em nome dos quais se pode tudo, como “liberdade” e “progresso”. Basta caracterizar algo – qualquer crítica, por mais polida ou sensata que seja – como “discurso de ódio” para que se justifique sua supressão, como bem demonstra a “cultura do cancelamento” atual, que já é suficientemente distópica quando exercida por particulares, mas que ganha contornos totalitários quando passa a envolver a mão do Estado.

STF quer usar monitoramento para combater a “desinformação” e o “discurso de ódio” – e quem definirá o que é “narrativa odiosa” será, certamente, o próprio Supremo

E quem, afinal, define o que são “narrativas odiosas à imagem e à credibilidade da Instituição, de seus membros e do Poder Judiciário”? Quem mais, a não ser os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal? E bem sabemos quais são os critérios dos membros da corte, que ameaçam de prisão quem chama o Supremo de “uma vergonha”, ou que buscam destruir a carreira de membros do Ministério Público que criticam decisões – decisões, e não pessoas, que fique claro – bastante criticáveis da corte. A julgar pelo retrospecto, qualquer crítica legítima, seja formulada em termos brandos ou de forma mais incisiva, será classificada como “discurso de ódio” se ferir os brios dos ministros.

Para bem identificar os “ataques” ao Supremo, o PCD investirá pesadamente em monitoramento – foi este o termo óbvio que o Supremo quis evitar quando mencionou o “desenvolvimento e aquisição de recursos de tecnologia da informação para identificação mais célere de práticas de desinformação e discursos de ódio”, mas, no fundo, é disso que se trata. Em outras palavras, o dinheiro do contribuinte brasileiro será usado para que o STF rastreie mais rapidamente o que se fala dele, para que se tomem as devidas providências.
E que providências serão essas? Diz a resolução que o enfrentamento dos “efeitos negativos provocados pela desinformação e pelas narrativas odiosas” será feito “a partir de estratégias proporcionais e democráticas”. Para que isso ocorra, no entanto, a corte terá de promover uma guinada de 180 graus, porque praticamente tudo o que vem fazendo até agora em causa própria tem sido desproporcional e antidemocrático. Inquéritos abusivos e sigilosos com acúmulo de funções, censura, prisões ao arrepio da Constituição, quebras de sigilo e desmonetizações (estas últimas, promovidas não pelo STF, mas pelo TSE, que nada mais faz que seguir o exemplo da corte suprema) contra pessoas ou empresas cujas atitudes as autoridades não são capazes de descrever nos termos do Código Penal podem ser qualquer coisa, menos “proporcionais” ou “democráticas”.

Por fim, a corte quer realizar ações de “fortalecimento de imagem (...) com a finalidade de disseminar informações verdadeiras e de produzir conteúdo que gere engajamentos positivos sobre o Tribunal”. Esperando sinceramente que não esteja passando pela mente dos ministros a instituição de uma versão “suprema” dos MAVs petistas ou o recurso a influenciadores de mídias sociais para que falem bem da corte, eis a nossa modesta sugestão para que o Supremo possa gerar “engajamentos positivos”: basta proteger o Estado de Direito, defender as liberdades e garantias individuais, deixar de legislar e de se intrometer nas funções do Poder Executivo, respeitar a Constituição, manter os ladrões na cadeia em vez de investir em malabarismos jurídicos que estimulam a impunidade, e cessar a perseguição contra quem está apenas exercendo seu direito constitucional à liberdade de expressão. Este é o papel de uma corte: respeitar e fazer cumprir a lei, e não monitorar ou caçar críticos na internet em sua versão particular de 1984.

Editorial - Gazeta do Povo

Observações:

O recém-criado Programa de Combate à Desinformação, do Supremo Tribunal Federal (STF), tem sido comparado ao “Ministério da Verdade” , do famoso livro “1984”, de George Orwell. Em “1984”, George Orwell fala de um partido único que assume o governo e vigia as pessoas o tempo todo por meio de câmeras, um sistema de controle chamado de “Big Brother”.

No livro, o “Ministério da Verdade” define o que seria a “verdade” conforme as crenças que deveriam ser incutidas na cabeça das pessoas – concordem elas ou não. Nessa sociedade, sob jugo de tiranos, não haveria apenas falsificação da verdade, censura e perseguição a ideias diferentes, mas até controle do pensamento. E o estímulo para que as pessoas se vigiassem e denunciassem os “infratores” das regras de só falar o que era autorizado.

Ainda é exagerado comparar o Programa do STF com o cenário do Ministério da Verdade de Orwell. [Não nos parece considerar um exagero comparar o Programa do STF com o Ministério da Verdade. Mas temos que ter presente que a Suprema Corte pode estar seguindo os passos do poema NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI; segundo, cabe a uma
Suprema Corte decidir, especialmente sem ser provocada o que é a VERDADE?
] O
s moldes da iniciativa são perigosos e inspiram essa associação.

Com a ajuda de agências de checagem (quem as monitora? que interesses as movem?), o STF quer combater conteúdos contra ele mesmo, que possam ser enquadrados como "desinformação e narrativas odiosas" direcionados à Corte, aos ministros do STF e ao Poder Judiciário. Para isso, em decreto, afirmou que vai criar um sistema de monitoramento para identificar “práticas de desinformação e discursos de ódio”; criará uma página de contestação de notícias denominada “Verdades do STF”; fará uma “alfabetização midiática” para jornalistas, entre outras ações bastante questionáveis.

A Gazeta do Povo já se posicionou sobre o tema, no editorial "O Supremo e seu novo 'Ministério da Verdade'”.  STF quer usar monitoramento para combater a “desinformação” e o discurso de ódio– e quem definirá o que é narrativa odiosaserá, certamente, o próprio Supremo.

Juristas procurados pela Gazeta do Povo apontaram os riscos dessa ação. Várias perguntas surgem naturalmente:  
- Uma pessoa com opiniões diferentes das apresentadas pelo STF, julgada pela Corte, a quem poderá recorrer? 
- Se o STF cometer erros, quem poderá brecar suas ações? 
- É função do STF definir o que é ou não verdade? 
Se existem outros mecanismos na legislação para isso, e não é a função do STF fazer esse monitoramento, qual é o sentido disso?

A preocupação com o desdobramento do Programa está fundamentada em fatos. Desde o início do Inquérito conhecido como “das Fake News”, o STF abriu outras investigações (o que não é o seu papel) e permitiu bloqueios de perfis nas redes sociais, mandados de busca e apreensão, censuras a veículos de comunicação e até prisões bastante questionáveis. O erro não é combater fake news, mas não seguir o devido processo legal – instituído para dar a todos o amplo direito à defesa.

A Gazeta do Povo é um dos poucos meios de comunicação preocupados com esse cenário. A liberdade de expressão não é um direito absoluto, mas também não pode ser relativizada com justificativas aparentemente nobres. É tão íntima a ligação da liberdade de expressão com a democracia que, onde aquela falta, não se pode mais falar na presença desta.

Já escrevemos e continuaremos a escrever sobre liberdade de expressão, com responsabilidade. Temos coragem, mas precisamos da sua ajuda para continuar a cumprir o nosso papel: influencie, participe do debate, da construção de uma sociedade melhor. 

Gazeta do Povo


domingo, 15 de setembro de 2019

Big brother? - Eliane Cantanhêde

 O Estado de S.Paulo

Controle de dados pode servir, além da defesa de aliados, para ataque de adversários?

O mais novo temor em Brasília é que a Lava Jato original possa ser trocada por uma Lava Jato particular, em que os dados não seriam mais compartilhados por uma força-tarefa de juízes, procuradores, auditores e delegados para o combate à corrupção, mas, sim, centralizados num único gabinete: o do presidente da República.

Quando se questiona essa investida simultânea na PF, no antigo Coaf e na Receita, suspeita-se que tudo isso é para a proteção de filhos, parentes, amigos e poderosos dos três Poderes. Que tal olhar para o outro lado da moeda? E se, em vez de ser exclusivamente de defesa, uma intervenção nas instituições de investigação servir também para o ataque? Em tese, já imaginaram o que pode representar a PF nas mãos de um filho do presidente, eventualmente escrivão de polícia; um secretário da Receita Federal disposto a mudar tudo e a centralizar os dados e investigações para dividi-las com o poder; um chefão do Coaf que admita compartilhar informações sobre movimentações financeiras com o Planalto? [por sorte, o questionamento proposto é em tese e certamente nenhum dos candidatos a se tornar dono de instituições, tem tal interesse.
Oportuno registrar: a PF é subordinada diretamente ao ministro da Justiça que está subordinado diretamente ao Presidente da República - que  até 2022, com as bençãos de DEUS e reeleição, é JAIR BOLSONARO.
A mesma posição de segundo escalão se aplica ao Coaf - atual UIT - e à Receita federal, mudando apenas o ministério.]

Significa que, sempre em tese, uma única pessoa, o presidente da República – atual ou futuro – teria a sua disposição um mapeamento detalhado da vida pessoal, da folha policial e dos dados fiscais e bancários de todos os seus desafetos de qualquer área. Além de defender o amigo X, ele poderia facilmente atacar o adversário Y. Mesmo antes de centralizar as escolhas do novo procurador-geral da República e o comando da PF, Receita e Coaf, [aqui um registro óbvio, mas, evita que passe despercebido a eventuais desavisados, a forma de escolha do chefe da PGR e a subordinação dos ministros de Estado vigora desde a CF 88 - da qual Bolsonaro sequer foi membro da Constituinte - e mesmo das anteriores.] o presidente Jair Bolsonaro já usou publicamente, e com seu próprio viés, informações conhecidas contra, por exemplo, Luciano Huck, João Dória, jornalistas. E se tiver acesso a dados de ministros de tribunais, deputados, senadores, governadores, funcionários, cidadãos e cidadãs? Além de divulgar, ficaria tentado a usar esse arsenal para amedrontar quem ousar confrontá-lo ou meramente questioná-lo?

É interessante a aproximação de Bolsonaro, seus filhos, seu chanceler e outros ministros com o autoproclamado guru da direita internacional, Steve Bannon, que foi estrategista da campanha presidencial de Donald Trump e depois demitido por ele da Casa Branca. Entre outras coisas, Bannon é especialista em coleta, análise e uso político de dados de cidadãos. Aliás, quem gosta de ficção vai ficar fascinado pelo documentário “The Great Hack” (“Nada é Privado: o escândalo da Cambridge Analytica”), que confirma o quanto a realidade anda superando a imaginação e as construções mais mirabolantes dos ficcionistas. O 007 é pré-histórico, quer dizer, pré-internet.

Em resumo, para não dar “spoiler”, ali é contada como foi construída a vitória de Trump, ou melhor, a derrota de Hillary Clinton nos EUA, e como o Reino Unido conseguiu cair na armadilha do Brexit. Primeiros ministros vêm e vão, sem recuos e sem avanços – sem saída. E como se chegou a isso? Com o uso dos dados e mentes das pessoas, identificando e focando nas menos convictas – logo, mais suscetíveis a propagandas maciças e às demoníacas fakenews. Por trás de tudo, a onda mundial da extrema direita. Detalhe: Bolsonaro aparece ligeiramente no filme.

Na era PT, ficamos roucos de denunciar o aparelhamento de órgãos e estatais em favor de um partido, um grupo político e, finalmente, um esquema sistêmico de corrupção. Neste primeiro ano de Bolsonaro, surgem dúvidas sobre o aparelhamento, se não é mais por um partido, mas por um projeto de poder com conexões internacionais e centralizado num presidente que, vira e mexe, dá uma cutucada na democracia. Com instituições e dados centralizados, sob o risco de uso na defesa de aliados e no ataque de adversários, ou de meros críticos, pode-se criar a mais destrutiva arma política: o medo. É só suposição, mas não é pura ficção.
 
Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo
 
 

domingo, 17 de junho de 2018

Um 'Big Brother' dos gastos com planos de saúde




Com tecnologia e contratação de médicos e enfermeiros, empresa detecta desperdícios que elevam os custos e prejudicam os pacientes  


Em um galpão de 4.000 m² que já abrigou uma lavanderia industrial em Barueri, na região metropolitana de São Paulo, funciona o maior centro de conexão de dados do mercado da saúde na América Latina. O paciente não se dá conta, mas, quando entrega a carteirinha do convênio ao atendente do consultório, do hospital ou do laboratório de análises clínicas em qualquer região do Brasil, tem grandes chances de disparar as sinapses digitais da Orizon, uma empresa que tudo checa e registra. 




A cada dia, 500 mil procedimentos (do simples hemograma à cirurgia complexa) são autorizados ou negados instantaneamente pelo sistema que conecta grandes corporações: 43 operadoras de planos de saúde, 140 mil prestadores de serviço e 11 mil farmácias que oferecem programas de desconto aos beneficiários de planos de saúde. Transações relacionadas ao atendimento médico de 13 milhões de pessoas trafegam por ali. No momento em que se discute quais sãos os custos que impactam no preço dos planos de saúde, é importante levar em consideração as fontes de desperdício, os desvios e as fraudes que corroem o dinheiro que os empregadores e seus funcionários colocam nos planos coletivos e que as famílias investem nas modalidades individuais.


A necessidade de fiscalizar os prestadores que criam artimanhas para engordar pagamentos, ou colocam a saúde dos pacientes em risco ao indicar procedimentos desnecessários, deu origem a um sofisticado mercado de auditoria. São empresas que, como a Orizon, prosperam no ramo da desconfiança. - É como o custo bélico. Se os países estivessem em paz, ele não existiria. Na saúde, o aparato de guerra é construído porque um lado (as operadoras) sabe que o outro (hospitais e demais prestadores) vai ser mais feliz se fizer mais procedimentos e cada vez mais caros – diz o engenheiro Mario Martins, presidente da empresa. 


Os gastos dos planos de saúde com desvios ultrapassaram a cifra de R$ 22 bilhões em 2015 (19% do total de despesas assistenciais das operadoras), segundo estimativa do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma entidade de pesquisa mantida pelas empresas do setor. No final, quem paga a conta dos gastos desnecessários e da engrenagem criada para combatê-los é o cliente.
 

Um sino chama a atenção logo na entrada do imenso salão onde trabalham centenas de funcionários da Orizon. Toda grande conquista é festejada com energéticas badaladas -- uma tradição que veio do varejo. Um dos acontecimentos mais celebrados pela equipe foi a adoção do chamado “motor de regras”, o cérebro do sistema de controle. Trata-se de um analisador digital, um grande pente fino capaz de monitorar, em tempo real, qualquer item fora do padrão no processo de autorização de procedimentos médicos. 


ESTRUTURA SOFISTICADA

Em vez de apenas transportar os dados da carteirinha do paciente entre o prestador de serviço e o plano de saúde, ele é capaz de intervir instantaneamente no fluxo de dados com o objetivo de captar desvios. Por exemplo: um doppler de carótidas serve para avaliar o fluxo em duas artérias carótidas e em duas artérias vertebrais que levam sangue até o cérebro. Tudo em um único procedimento. No entanto, há clínicas e hospitais que cobram como se quatro exames tivessem sido realizados. O sistema sinaliza que aquilo está fora do padrão e levanta uma bandeira. A investigação detalhada do que aconteceu é tarefa para os funcionários. Ao final dela, a operadora pode decidir não pagar a conta (a chamada glosa) ou até romper o contrato com o prestador.



Em um mundo fascinado pelo potencial do Big Data (a possibilidade de analisar grandes volumes de informação com o objetivo de tomar decisões mais acertadas), a matéria-prima derivada de tantas interações é o maior ativo da empresa criada pela Cielo em parceria com a Bradesco Saúde e a Cassi (a operadora do plano de saúde dos funcionários do Banco do Brasil). 



A Orizon tem conseguido captar mais desvios porque investiu em duas frentes: a tecnologia para atuar em tempo real em grandes massas de dados e a contratação de pessoal especializado para trabalhar em células de investigação. Elas são compostas por dezenas de enfermeiros, médicos e farmacêuticos que trabalharam nos departamentos de faturamento dos hospitais. Eles sabem, por exemplo, como os materiais usados em uma cirurgia complexa podem ser lançados em uma conta sem que a maioria das auditorias consiga detectar inclusões indevidas ou itens desnecessários. 






- Temos um time altamente qualificado que veio do lado de lá. Essa é uma inteligência tática. Eles entendem como os outros pensam e quais são os incentivos para que as fraudes e os desperdícios ocorram - afirma Martins. 


Em outra frente de trabalho investigativo, realizado depois que as contas já foram pagas, é possível apontar quais são os médicos que pedem menos exames, os cirurgiões que oferecem os melhores preços e mantêm os pacientes internados por menos tempo, os hospitais que enviam mais pessoas à UTI – mesmo quando esse encaminhamento é questionável. Assim como as redes sociais, a Orizon usa a teoria dos grafos (ramo da matemática que estuda as relações entre os objetos de um determinado conjunto) para traçar conexões entre os profissionais. - Com isso, conseguimos descobrir que um médico pede muito mais exames que o normal e está associado a um cirurgião que opera muito mais que o normal e usa materiais muito diferentes do normal - diz Martins. 


Por razões contratuais, os relatórios e cruzamentos gerados pela Orizon permanecem em sigilo. A pedido do GLOBO, a empresa concordou em apontar exemplos de desvios detectados recentemente, sem mencionar o nome das empresas envolvidas.

- É difícil afirmar categoricamente que essas práticas sejam fraudes porque seria necessário comprovar que houve má-fé. Elas são, no mínimo, desperdício - diz Marcio Landi, diretor de finanças da empresa. 


Veja abaixo exemplos de desperdícios flagrados pela Orizon durante as checagens de contas médicas:

EXAMES DESNECESSÁRIOS

Ao analisar exames realizados no pronto-socorro de dez hospitais do Estado de São Paulo em 2017, a empresa detectou excesso de avaliações em caráter emergencial – o que encarece os atendimentos. Uma sinusite pode ser diagnosticada por radiografia (R$ 33, em média). Em 18% dos casos, foram realizadas tomografias (R$ 240) para avaliar os seios da face, sem que houvesse indício de gravidade capaz de justificar essa opção. 


COBRANÇAS INDEVIDAS


Bomba de infusão é o aparelho usado para infundir remédios na corrente sanguínea com um maior controle sobre o gotejamento. Em mais de 30 mil contas checadas entre janeiro de 2013 e dezembro de 2017, os analistas descobriram que o número de diárias pelo uso do aparelho era superior ao período de internação do paciente. Segundo a empresa, o desperdício chegou a R$ 24 milhões


ABUSO DE MATERIAL ESPECIAL

Ao analisar 354 cirurgias de quadril realizadas durante o ano de 2015, a empresa detectou que alguns hospitais usavam um material à base de tântalo (metal mais caro que titânio) em 100% das operações. Com isso, as contas ficaram 64% mais caras. O tântalo deve ser usado em 10% das chamadas cirurgias de revisão quando há dificuldade de integração óssea e o paciente precisa ser reoperado.