Silvio Navarro
Há uma semana, o governo Lula não consegue explicar a visita da mulher de um dos líderes do Comando Vermelho aos gabinetes de assessores do ministro Flávio Dino — com a viagem paga pelos cofres públicos
Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Em que país do mundo uma mulher que responde pela alcunha “Dama do Tráfico”, casada com o líder de uma facção criminosa, entra pela porta da frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública e é recebida duas vezes por auxiliares diretos do titular da pasta? A resposta: no Brasil.
Nesta semana, uma série de reportagens do jornal O Estado de S. Paulo apresentou ao país uma personagem do mundo do crime chamada Luciane Barbosa Farias, de 37 anos, a “Dama do Tráfico”.
Ela tem esse apelido porque é casada há uma década com Clemilson dos Santos Farias, o “Tio Patinhas”, líder do Comando Vermelho (CV) no Amazonas.
Ele está preso em Tefé (AM), onde cumpre pena de 30 anos de cadeia. Ela recorre em liberdade de uma condenação — já em segunda instância — a dez anos de prisão por associação criminosa e lavagem de dinheiro.
O Comando Vermelho é a segunda maior facção do país, com ramificações em 13 Estados — só é menor do que o PCC, presente em 24. O CV tem 40 anos e domina um terço do território do Rio de Janeiro.Clemilson dos Santos Farias, conhecido como “Tio Patinhas”, posa com uma metralhadora capaz de derrubar aviões | Foto: Reprodução/Redes Sociais
Luciane esteve em Brasília várias vezes e teve acesso livre a ministérios, ao Congresso Nacional e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — segundo ela documentou em sua conta no Instagram. Estudante de Direito, ela diz ser diretora de uma ONG — sempre uma ONG — batizada Instituto Liberdade do Amazonas (ILA), interessada em defender direitos humanos de detentos. Documentos do Ministério Público e da Polícia Civil do Amazonas, contudo, mostram que sua função é outra: lavagem de dinheiro do Comando Vermelho. A polícia diz que a ONG é de fachada.
Se o Brasil não fosse governado pelo PT e o ministro da Justiça não fosse Flávio Dino, entusiasta do desencarceramento em massa, a simples presença de uma pessoa com essa ficha criminal já seria motivo para uma ampla investigação. Como ela conseguiu agendar esse tour por gabinetes tão importantes? Centenas de deputados estaduais, prefeitos e advogados não conseguem esse tipo de acesso.
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A pasta de Dino disse que “o setor de inteligência não detectou a presença” da mulher do traficante. Qualquer cidadão que já tenha ido à Esplanada sabe que a identificação (documento com foto) é protocolo obrigatório na entrada — o visitante recebe um crachá para ser devolvido na saída ou um adesivo, cuja cor identifica o departamento visitado. Essa informação, aliás, consta do próprio site do Ministério.
Nenhum funcionário, principalmente os que participaram das reuniões, preocupou-se em digitar o nome dela no Google.Regras para entrar nas dependências do MJSP | Foto: Reprodução
Outro ponto crucial nessa história é que reuniões sobre assuntos de interesse nacional, com a participação de funcionários graduados, como os quatro citados acima, constam em agendas e terminam com registros em ata rubricada.
Isso porque elas costumam gerar um processo interno, justamente para atender os pleitos.
O Estado de S. Paulo noticiou nesta quarta-feira, 15, que, ao contrário do que disse o governo, houve andamento do pedido feito pela ONG da mulher do traficante. Ou seja, está tudo documentado.
Matéria publicada pelo Estadão (13/11/2023) | Foto: Reprodução/O Estado de S. Paulo
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Se a história de que nenhum integrante do governo sabia com quem estava dialogando parece pouco crível, ela foi se agravando ao longo da semana.
O nome que consta nas agendas dos encontros oficiais é o da advogada Janira Rocha, ex-deputada do Psol do Rio de Janeiro. Luciane seria, portanto, uma acompanhante. Os investigadores do Amazonas descobriram que, poucos dias antes das reuniões em Brasília, Janira recebeu R$ 23 mil do Comando Vermelho.
A ligação da ex-parlamentar com a facção criminosa estava comprovada. Ela nega relação entre os pagamentos e as conversas em Brasília.
Além da militância pelo Psol, Janira ficou famosa por advogar pela ex-deputada Flordelis, condenada a 50 anos de prisão pelo assassinato do marido, e por trabalhar junto com a advogada Flávia Fróes na defesa do traficante Fernandinho Beira-Mar. Para se livrar do vínculo com criminosos, o Psol disse que Janira se desfiliou da sigla em 2020. Elias Vaz, um dos secretários de Flávio Dino que estiveram nos encontros, também foi filiado ao Psol e conhece Janira há anos. Guilherme Boulos em reunião ao lado de Luciane Barbosa Farias, representante do Comando Vermelho | Foto: Reprodução/Instagram
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Quando a gente achava que não faltava mais NADA, a Dama do Tráfico, Luciane Barbosa Farias, esposa do Tio Patinhas do Comando Vermelho – a mesma que teve portas abertas no Ministério da Justiça de Flávio Dino -, acabou de entregar Silvio Almeida e o Ministério dos Direitos… pic.twitter.com/djvMBVKUNF— Marcel van Hattem (@marcelvanhattem) November 15, 2023
Como se não bastasse toda essa rede de contatos da mulher do líder do Comando Vermelho com o governo e com políticos de esquerda, o pagador de impostos foi surpreendido pela seguinte informação: foi ele quem pagou pelo menos uma das viagens dela a Brasília — há registros de datas em março, maio e novembro.
Numa conversa com jornalistas por meio de um aplicativo de vídeo, Luciane disse que passagens e diárias foram bancadas pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, chefiado por Silvio Almeida. A pasta confirmou a informação, mas não disse quanto custou a viagem. O argumento é que ela representava o Estado do Amazonas no “Comitê de Prevenção e Combate à Tortura”. A “Dama do Tráfico” reclama de maus-tratos aos detentos.
Aqui entra outro componente político: Dino e seus secretários afirmam que é o PT quem comanda o bombardeio contra ele na imprensa
Em vez de assumir a responsabilidade por ter financiado a viagem, o ministro Silvio Almeida disse que a culpa foi de quem divulgou a informação. “Os próceres do fascismo à brasileira não têm compromisso com a verdade nem com o Brasil; se valem de distorções para difamar, caluniar e destruir as conquistas do povo brasileiro.”
A oposição coleta assinaturas para pedidos de impeachment dele e de Dino.
Dino contra as cordas
Politicamente, a sequência de reportagens caiu como uma bomba nos planos de Flávio Dino para assumir a cadeira de Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF). Soma-se à escalada de violência no Rio de Janeiro e na Bahia, à falta de um programa nacional de segurança pública e ao sumiço das imagens do Ministério da Justiça nos atos de vandalismo de 8 de janeiro.
No Senado, a avaliação é que sua indicação representa um risco alto para o governo: pode ter o nome rejeitado pela Casa.
Ou seja, Lula teria de assumir o desgaste com o Congresso e com o próprio PT.
O partido quer conduzir o advogado-geral da União, Jorge Messias, o “Bessias”, à Corte. E no próprio Senado o favorito seria Bruno Dantas, ministro e presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), que fez carreira como funcionário da Casa e tem como padrinho Renan Calheiros (MDB-AL).
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Dino tem levado sua própria escolta pessoal às audiências públicas no Congresso: o delegado-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues; o chefe da Polícia Rodoviária, Antônio Fernando Oliveira; e o número 2 do Ministério, Ricardo Cappelli.
Nessas audiências, uma pergunta recorrente parece tirar Dino do sério: como ele conseguiu entrar na Favela da Maré, reduto do crime organizado no Rio, sem escolta policial?
O sorriso debochado dá lugar a um semblante sisudo. “Vocês, ‘bolsonaristas’, não gostam de pobres” é a frase usada para encerrar os debates.
Post de Cappelli provoca nova faísca na guerra entre Flávio Dino e PT pelo STF https://t.co/sfg5RWwbVg— Malu Gaspar (@malugaspar) November 14, 2023
Nem de longe foi a primeira vez que o nome de políticos e partidos de esquerda aparecem ligados a facções criminosas. A divulgação dessas ligações pela imprensa ou nas redes sociais, aliás, foi um dos temas proibidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na campanha do ano passado. Houve ordens de remoção de conteúdo e aplicação de multas.
Até agora, ninguém foi demitido do governo e nem sequer é formalmente investigado. Não há um único processo administrativo aberto sobre o caso da “Dama do Tráfico”.
Lula esperou três dias para se pronunciar sobre o escândalo. Sem ter o que dizer, o petista sacou a desculpa de sempre: tudo não passa de fake news.
Tampouco um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou ou cobrou explicações — é bem provável que nenhuma investigação oficial aconteça.
Mas, desta vez, ninguém pode negar que o governo Lula esteve à mesa com o Comando Vermelho.
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