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sábado, 22 de junho de 2019

Leis para todos os gostos



Esse debate que se desenrola sobre os diálogos entre o então juiz Sérgio Moro e o chefe dos procuradores da Operação Lava-Jato, Deltan Dallagnol não parece ter o poder de levar a uma decisão drástica do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a nulidade da condenação do ex-presidente Lula.  Principalmente porque as supostas provas levantadas pelo site The Intercept são flagrantemente ilegais, fruto de um mais que provável hackeamento de celulares de diversas autoridades envolvidas na Operação Lava-Jato.

Mas, sobretudo, porque ficou claro que não é possível definir como transgressão às normas legais as conversas entre Moro e Dallagnol, muito devido às incongruências de nossa legislação.  Há normas para todos os gostos, desde a Constituição até os regimentos internos dos diversos tribunais, passando pelas normas próprias das organizações que regem o exercício da advocacia.  Umas permitem que se entenda que as partes podem conversar com os juizes separadamente, outras definem que uma parte só pode ser ouvida na presença da outra.

O aconselhamento do juiz a uma das partes pode ser causa de nulidade, mas a definição do que seja aconselhamento fica por conta da interpretação de cada jurista. O hoje ministro Sérgio Moro, que citou o testemunho público do advogado Luis Carlos Dias Torres, garante que sempre conversou com dezenas de advogados que o procuraram dentro da Operação Lava-Jato.  Esse não foi o caso dos advogados de Lula, que nunca pediram uma audiência. Mesmo assim, como o próprio Zanin admitiu, houve várias conversas entre o Juiz e a defesa do ex-presidente nos intervalos das audiências. 

A questão do contato dos juízes com as partes tem a solução encontrada em muitos países, a do juiz de instrução, que trabalha na fase investigatória, mas não julga. Para o jurista José Paulo Cavalcanti, ex-ministro da Justiça e membro da Comissão da Verdade, essa solução faz mais sentido nos países do primeiro mundo, em que as sentenças de primeira instância já levam o cidadão para a cadeia, exemplos dos Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Inglaterra. [já no Brasil é diferente: um decreto de prisão preventiva pode manter um cidadão, apenas suspeito, preso até por anos, enquanto uma condenação de primeira instância dificilmente resulta em prisão imediata.] 
 
Separando quem aceita a denúncia de quem julga, como se fossem duas instâncias, para proteção do réu. Aqui, ressalta José Paulo Cavalcanti, a sentença de primeira instância é toda revista por tribunais, que reavaliam provas, podem pedir outras. E analisam o mérito. No fundo, a primeira instância dos países de primeiro mundo equivale à nossa segunda instância, explica José Paulo Cavalcanti. Com uma diferença grande, ele ressalta. “Não existe estrutura, aqui, para que isso funcione. Na última estatística de Pernambuco, apenas em 120 dos 184 municípios, havia juiz. Há juízes acumulando comarcas, com certeza, no Brasil todo.
Assim, parece fazer mais sentido a ele que julguem, “acelerando os processos. Evitando os riscos de prescrição. Deixando a revisão para os tribunais”. 

Outra peculiaridade de nosso sistema judiciário são os “memoriais”, ferramenta fruto da prática cotidiana forense e que deriva do “memorial de alegações finais”. Servem para que os advogados façam um resumo de suas razões para chamar a atenção dos juízes e ministros que julgarão o caso. Há recomendações expressas, baseadas na eficácia de tais “memoriais”: devem ser entregues próximo da hora do começo do julgamento, e não devem ter mais que três laudas, para que o magistrado possa ler com atenção.

A prática tornou-se tão recorrente que o Código de Processo Penal de 1973 a reconheceu, a fim de substituir o debate oral, devido ao acúmulo de julgamentos. O CPC de 2015 se refere aos “memoriais” nos julgamentos eletrônicos, onde não há debate oral. Alguns tribunais de apelação contemplam essa possibilidade, outros não. São considerados “atos processuais facultativos”.
 
O Supremo Tribunal Federal (STF) não os considera “atos essenciais à defesa”, mas “faculdade que pode ser exercida pelas partes” em qualquer momento anterior ao julgamento. Geralmente, os advogados fazem questão de entregar tais “memoriais” pessoalmente ao desembargador ou ministro, ocasião em que exercem os chamados “embargos auriculares”, reforço de argumentos por conversas particulares.
Tais “embargos auriculares” são também peculiaridades nossas, e muitas vezes advogados que já foram ministros nos tribunais superiores usam de seus conhecimentos pessoais para conseguir audiências privadas para defender seus clientes.

Merval Pereira, jornalista - O Globo