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sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A CPI virou um monstro - Revista Oeste

Silvio Navarro

Quem conhece Renan Calheiros e os personagens que gravitam em torno dele sabe que o circo não vai parar por aí


Em maio, a reportagem de capa da edição 61 da Revista Oeste escancarou o circo montado no Senado com o objetivo de manter a pandemia de coronavírus na crista do embate eleitoral de 2022. Quase três meses depois, o elenco liderado por Renan Calheiros (MDB-AL) vai transformando uma ópera-bufa num monstruoso espetáculo de autoritarismo. Protagonistas e figurantes seguem um roteiro que tenta cercear a liberdade de imprensa, prender quem discorda e chantagear adversários.

Um requerimento apresentado por Renan começa a espancar o idioma já em seu início. “Cumpre esclarecer que os requeridos levantamento e transferência de dados”, lê-se no segundo parágrafo. “Requer-se que as ordens de levantamento e transferência deverão cumpridas”, delira uma frase incompreensível no quarto. E sobram erros toscos de digitação. Por exemplo: “A pessoa contra quem se busca a quebra e a transferência dfe sigilo”. É melhor parar por aqui. No documento de dez páginas, Renan pediu a quebra do sigilo bancário da rádio Jovem Pan, de uma produtora de documentários e de alguns sites conservadores. O relator da CPI acusou a emissora de disseminar fake news sobre a pandemia. Causou estranheza a abrangência da devassa nas contas. Renan queria que fosse examinada a movimentação financeira a partir de 2018, quando ninguém podia prever a aparição do vírus chinês.

Neste 3 de agosto, uma terça-feira, Renan recuou. Alegou que o documento fora produzido acidentalmente enquanto estava de férias, num mea-culpa incapaz de convencer seu mais feroz aliado. Curiosamente, também subescreveu o documento o petista pernambucano Humberto Costa. “Precisaria ter uma retratação”, disse Arthur Rollo, advogado da emissora. “Não basta Renan dizer que foi um errinho. Receamos que o requerimento seja reapresentado e volte a ameaçar direitos e garantias fundamentais presentes no artigo 5º da Constituição, desrespeitada pelo senador Calheiros.”

Dois senadores governistas garantem que o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), foi quem abortou o atentado à liberdade de imprensa. “Aziz argumentou que era arriscado demais mexer com a Jovem Pan e seus comentaristas de peso”, disse um deles a Oeste. Para Thaméa Danelon, procuradora da República e professora de Direito, o pedido de Renan “não tem base fática nem jurídica”. “Não há fundamentação especificada. O senador Renan diz que, como a CPI tem matiz político, o pedido não precisaria ser bem fundamentado como ocorre no Judiciário. Isso está equivocado”, afirmou. “Como exerce poder de juiz, a CPI tem de ter as responsabilidades de um juiz. Ou seja, é preciso informar por que foi pedida a diligência e o que se busca obter com a violação de sigilos tutelados pela Constituição.”

Pedidos idênticos contra outras empresas e jornalistas foram aprovados. São eles: LHT Higgs Ltda. (a produtora Brasil Paralelo), Farol Produções Artísticas (Senso Incomum), Allan dos Santos (Terça Livre), José Pinheiro Tolentino Filho (Jornal da Cidade On-line), Paulo Enéas (Crítica Nacional) e Tarsis de Sousa Gomes (Renova Mídia). Em resposta, os veículos disseram que não temem ser investigados e, apesar da afronta à liberdade de expressão, estão prontos para ser ouvidos pela CPI uma comissão que, nas palavras de Janaina Paschoal, jurista e deputada estadual pelo PSL paulista, “precisa se reinventar a cada dia porque não há o que ser investigado”.

Renan tem método
A intimidação a políticos e jornalistas considerados rivais é uma marca da trajetória de Renan, uma das figuras mais peçonhentas dos corredores de Brasília desde a redemocratização do país. Em 2007, quando enfrentou cinco processos de cassação de mandato e estampou cinco capas da revista Veja (de maio a setembro), o senador preparou dossiês contra inimigos para forçar a absolvição.

Os principais alvos eram os colegas de bancada Jarbas Vasconcelos (MDB-PE) e Pedro Simon (RS), que ele conseguiu destituir da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na época, além do amazonense Jefferson Peres (PDT) e dos goianienses Marconi Perillo (PSDB) e Demóstenes Torres (DEM). Contra os dois últimos, incumbiu o assessor Francisco Escórcio, conhecido como Chiquinho, da busca de informações. Numa entrevista à TV Globo, Demóstenes que mais tarde seria cassado por envolvimento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira — disse que os arapongas de Renan instalaram câmeras em hangares de Brasília.

Renan viu no antibolsonarismo reinante na imprensa uma janela para tentar lavar o seu passado

Outra ação de Renan naquele ano foi encomendar a Agaciel Maia ex-diretor-geral do Senado que acabaria envolvido até o pescoço no escândalo dos atos secretos de José Sarney — um catatau com todas as despesas dos 80 senadores com verbas de gabinete: gasolina, restaurantes, aluguel de escritório, passagens aéreas etc. Desse levantamento, surgiu uma briga histórica entre Renan e Tasso Jereissati (PSDB-CE) sobre o custeio de combustível de jatos particulares pelos cofres públicos, que só explodiria no plenário dois anos depois. Ironicamente, hoje os dois estão na mesma trincheira contra o governo. Vale a pena relembrar o diálogo,  cuja sessão Sarney teve de interromper pelo risco de cenas de pugilato na TV Senado.

Renan, não aponte esse dedo sujo pra cima de mim! Estou cansado de suas ameaças.
— Esse dedo sujo infelizmente é o de Vossa Excelência. São os dedos dos jatinhos que o Senado pagou.
Pelo menos era com meu dinheiro. O jato é meu, não é dos seus empreiteiros.
— O dinheiro é seu?
É meu, é meu! Eu tenho pra falar, tá?
— Coronel! — respondeu Renan, fora dos microfones.
Eu, coronel? Cangaceiro, cangaceiro de terceira categoria!
— Seu m…, — rebateu Renan.

Renan nunca mudou. Salvou o mandato em 2007, reelegeu-se, fez do filho, então prefeito da pequena Murici, o governador do Estado, coleciona dezenas de inquéritos que misteriosamente não avançam no Supremo Tribunal Federal (STF) e viu no antibolsonarismo reinante na imprensa uma janela para tentar lavar o seu passado. Segundo assessores de senadores governistas, seu gabinete — assim como o de Aziz e o de Randolfe Rodrigues (Psol-AP) — funciona como uma central de distribuição de documentos pré-selecionados (alguns já estão até grifados) com cruzamentos telefônicos, dados de empresas e o passado dos depoentes. É possível que o material seja elaborado pelos 49 funcionários que Renan mantém no Senado (26 deles comissionados no escritório de apoio em Alagoas) e pelas assessorias, reembolsadas mensalmente ao custo de R$ 10.500.

A vítima mais recente da trinca Renan, Aziz e Randolfe foi Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde. A CPI pediu seu afastamento do cargo e promoveu uma enxurrada de manchetes contra ela. Médica, Mayra defende o uso de medicamentos no tratamento imediato da covid-19 que a CPI condena. “Ela é responsável pela morte de muitos amazonenses”, afirmou Aziz. “Pela morte de pessoas que eu conhecia.”

Não bastasse a tentativa de tirá-la do cargo, a defesa de Mayra ainda teve de acionar o Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que o bunker dos xerifes da covid no Senado passou a municiar jornalistas com dados do sigilo telefônico dela. Em algumas mensagens disparadas via WhatsApp, uma repórter da Folha de S.Paulo cobra explicações sobre 300 telefonemas para médicos e políticos que defendiam o tratamento precoce, como o deputado Osmar Terra (MDB-RS) e o senador Eduardo Girão (Podemos-CE).

A CPI ainda tem longas semanas pela frente, e quem conhece Renan e os personagens que gravitam em torno dele sabe que o circo não vai parar por aí. O recado, aliás, foi dado já na quarta-feira 4: “Eu sou o relator da CPI e posso produzir a prova”.

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