O termo aqui não tem sentido de desfaçatez e falta de vergonha, mas de aludir àquele que simula ser outro. Pior: ser o outro, mas continuando a ser o mesmo
Deonísio
da Silva
A foto do
candidato a presidente da República, Fernando Haddad, atrás de uma máscara de
Lula, impedido de concorrer por estar preso em Curitiba, trouxe-me à lembrança
esta linha de A Trama, narrativa curtíssima de Jorge Luís Borges: “Ao
destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias”.
É
impressionante o que acontece. Ressurgem expressões como voto de cabresto,
curral eleitoral e o famoso personagem vivido por Paulo Gracindo como “dotô
coroné prefeito”, dos textos de Jorge Amado e de Dias Gomes, entre outros. Quer
dizer que o eleitor não pode escolher em quem votar? É obrigado a votar em quem
está atrás da máscara do mandante? A etimologia nos ensina que máscara e personagem
têm significados semelhantes, embora a primeira tenha vindo do Árabe más-hara,
burla, engano; e a segunda, do Grego prósopon, careta, que se tornaria o
Latim persona, pessoa, que nos deu também personagem.
Portanto, cara de pau não é usado aqui no sentido
tão usual de caradura, desfaçatez e falta de vergonha, que lhe dão os
dicionários, mas para designar quem simula ser outro. Ou pior ainda: ser o
outro, mas continuando a ser o mesmo. O mesmo não pode mostrar a própria
cara. É obrigado a mostrar a cara do outro. É uma pauta e tanto para
nossa ciência política, para a literatura e para a psicanálise. Cara de
pau, embora tenha feito as vezes de máscara, não é máscara de ferro. Como sabem
tantos, nos cárceres da França de Luís XIV havia um preso condenado a jamais mostrar
o rosto, posteriormente identificado apenas como o homem da máscara de ferro.
Tornou-se
célebre personagem de Os Três Mosqueteiros, do escritor francês
Alexandre Dumas, que teve um filho com o mesmo nome, também escritor, o
conhecido autor de A Dama das Camélias. Mas foi o pai quem tornou famosa
a figura literária, a seu tanto histórica e lendária, do homem da máscara de
ferro, de existência comprovada. Pesquisadores que se debruçaram sobre o
assunto chegaram à conclusão de que não era ninguém importante. Tendo vivido no
século XVII, estava confinado em cela de segurança máxima. Alguma importância
deveria ter…
Assim
isolado, como veio a tornar-se tão famoso? É que, ao ser transferido da prisão
de Pignerol para a da ilha de Sainte-Marguerite, uma escolta maior do que as
habituais chamou a atenção do público e contribuiu para o mistério cultivado
por seu carcereiro. Este, sim, em busca de dar maior visibilidade a seu ofício,
fez saber ao distinto público, pelas vias das fofocas habituais, que tinha sob seus
cuidados uma celebridade. Quem, na verdade queria ser célebre era o carcereiro.
Todavia,
o mistério continuou. Condenado a trinta anos de prisão e a usar o insólito
disfarce, ele nunca tirou a máscara, nem para dormir, para comer ou para lavar
o rosto? Bem, outros mistérios persistem. Quando de nova transferência, desta
vez para a Bastilha, em Paris, o público assistiu à chegada do ilustre
desconhecido, com o rosto coberto, não mais por uma máscara de ferro, mas de
veludo, disfarce que ele teria usado até morrer, já no século XVIII.
Havia
outro motivo para o prisioneiro usar a máscara. Ele seria irmão gêmeo do rei
Luís XIV e, condenado, não poderia mostrar o rosto! Quem teria formulado tal
hipótese teria sido o filósofo Voltaire, que também esteve preso na Bastilha
entre 1717 e 1718, e teria ouvido detalhes sobre a identidade do encarcerado. Este foi,
aliás, o argumento do filme em que o homem da máscara de ferro foi revivido no
cinema, em 1998, com atuações de Leonardo DiCaprio, Gérard Depardieu e Jeremy Irons,
entre outros. O filme foi pouco notado por força do megassucesso de Titanic,
que reinou soberano nas bilheterias todo aquele ano.
Outras
evocações virão, pois estas eleições prometem reviver, não apenas famosos
eventos literários e lendários, mas também a República Velha. Tomara que não
sejam trágicos, como já o foi o assassinato de João Pessoa, então presidente da
Paraíba, em 1930, estopim da revolução deflagrada naquele ano. O nome do cargo
mudaria mais tarde de presidente para governador.
*Deonísio
da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá