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quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Brancos podem interpretar negros? E judeus? ‘Blackfishing’ é racista? - Vilma Gryzinski

Blog Mundialista - Veja

Dá para sentir que é uma encrenca tremenda: discussões raciais envolvem mundo artístico, com resultado obviamente explosivo

Para quem ainda nem se deu conta da existência do Little Mix, a discussão envolvendo uma de suas integrantes, Jesy Nelson, pode soar misteriosa. A coisa trata de um comportamento chamado ‘blackfishing”, expressão inventada para descrever quem, tendo a tez clara, tenta imitar o estilo e o balanço de artistas negros. É disso que a cantora Jesy Nelson foi acusada ao se desligar do grupo e se jogar na carreira solo (“Um dos mais desastrosos lançamentos da memória recente”, na definição algo acrimoniosa do Independent).

Para muitos fãs do grupo pop britânico de quatro garotas (uma loira, uma morena etc etc), foi até uma surpresa: muitos achavam que Jesy era a “morena”, ou racialmente mista. Os cabelos cacheados e até, possivelmente, um toque mais carregado de maquiagem criavam essa impressão.

 As cantoras Jesy Nelson e Leigh-Anne Pinnock em 14 de janeiro de 2016

Quem levantou a questão do “blackfishing” foi uma ex-colega de banda, Leigh-Anne Pinnock, legitimamente mestiça. Nicki Minaj, que participa do lançamento de Jesy, entrou na história – e dá para imaginar a quantidade de palavras censuradas que explodiram nas redes sociais. Foi nelas, claro, que surgiu o fenômeno “blackfishing”, com muitos milhares de jovens imitando a “atitude” de artistas negras no Instagram. Nos casos mais extremos, recorrendo até a cirurgias plásticas. Os preenchimentos labiais não contam porque já viraram padrão em países como a Inglaterra, sob a influência das irmãs Kardashian/Jenner, cujas saliências exacerbadas  por procedimentos também reproduzem padrões associados a corpos negros curvilíneos.

O fenômeno de alguma maneira espelha casos como o da americana Rachel Dolezal, branquíssima nativa de Montana que criou uma vida como se fosse negra e fez carreira na universidade e na tradicional Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de cor.  Mesmo depois que foi exposta, Rachel, com todo direito garantido pela flexível sociedade americana, continuou a levar a vida que escolheu e mudou o nome para Nkechi Amare Diallo.

Se uma professora universitária ou uma cantora se apresenta como se fosse negra, isso é ofensivo ou deveria ser celebrado como uma manifestação de que “a imitação é a mais sincera forma de elogio”? Depois de tanto tempo em que crianças e jovens negras não tinham figuras públicas para se espelhar segundo sua própria etnia, não é bom que agora ocorra o oposto?

Claro que num mundo em que as questões identitárias se tornaram tão proeminentes, isso não acontece. As “brancas negras” são acusadas de apropriação cultural (um conceito que, se fosse aplicado ao Brasil, levaria ao fim de praticamente todas as manifestações culturais). Mais complicados ainda são casos em que atores interpretam personagens de outra etnia. Aconteceu com a peça Uma Escrava Chamada Esperança, protagonizada pela ex-BBB Gyselle Soares. Houve protestos contra o “embranquecimento” da personagem, uma escrava que protestou em carta ao governador da época contra os suplícios que sofria e veio a se tornar advogada.

Um caso similar, guardadas as diferenças, está se desenrolando nos Estados Unidos. Personalidades artísticas de origem judia reclamam quando personagens judeus são interpretados por atores de outro perfil. Um caso específico envolve o ator Tony Shalhoub (o veterano Monk da série de mesmo nome).

O ator é de família libanesa, árabe e cristã, e interpreta o personagem Abe Weissman na série The Marvelous Mrs. Meisel. Quando surgiu a questão, ironizou que, como ator, foi treinado para não interpretar a si mesmo, mas, justamente, personagens.  Para que o argumento tivesse validade, seria preciso admitir que atores judeus não poderiam interpretar não-judeus.

O que seria de Espártaco sem Kirk Douglas (Issur Danielovich, filho de imigrantes judeus da então Bielo Rússia)? 
Ou de seu companheiro de filme Tony Curtis (originalmente, Bernard Schwartz)? 
Poderia o tão Wasp capitão James Tiberius Kirk , de Jornada nas Estrelas, ser confiado a William Shatner, que aos 90 anos voltou a ser notícia pela emocionante voltinha espacial que deu na nave de Jeff Bezos?

Todo mundo entende que quando atores negros interpretam aristocratas ingleses na série Bridgerton a intenção é fazer um manifesto anti-racista, invertendo expectativas. O ponto de partida foi a especulação, sem nenhuma base, de que a rainha Charlotte, personagem histórico que aparece na série, seria descendente, em nona geração, de Afonso III de Portugal e sua amante moura, Madragana.

A muito germânica Sophia Charlote de Meklemburg-Strelitz, que se casou com George III, o “rei louco”, com apenas dezesseis anos, foi retratada em alguns quadros com “traços mulatos”, segundo a descrição de seu médico, Christian Friedrich Stockmar. “Era famosamente feia”, resumiu Desmond Shawe-Taylor, ex-curador da coleção real. Na ficção de Bridgerton, nada disso aparece. Ao contrário, o ator Regé-Jean Page, inglês de mãe do Zimbabwe, esfacelou corações no planeta inteiro como o arrasadoramente belo e romântico duque de Hastings.

Na ficção de Bridgerton, nada disso aparece. Ao contrário, o ator Regé-Jean Page, inglês de mãe do Zimbabwe, esfacelou corações no planeta inteiro como o arrasadoramente belo e romântico duque de Hastings. Que tenha sido convincente como um duque negro é uma prova do poder da arte da interpretação – e ninguém reclamou que ele praticamente reencarnou grandes galãs brancos, de Clark Gable em E O Vento Levou a Colin Firth em Orgulho e Preconceito.

Duques negros ou cantoras brancas que copiam o estilo black podem relaxar os estereótipos, o que é sempre bom, mas definitivamente não vão encerrar a discussão.

Blog Mundialista - Vilma Gryzinski,  jornalista - Revista VEJA


quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Trump matou ‘Dr. Evil’ - William Waack

O Estado de S.Paulo

Desde o fim da Guerra Fria o Irã expandiu-se no Oriente Médio, e os EUA encolheram

A ordem do presidente Donald Trump para matar o general iraniano Qassim Suleimani expressa o fim da hegemonia americana no Oriente Médio. Estabelecida com grande abrangência desde o fim da Guerra Fria e a primeira Guerra do Golfo, em 1991, essa hegemonia foi perdida em grande parte por ações e erros dos próprios americanos, involuntariamente os principais responsáveis pela inédita expansão política e militar do Irã naquela região.

Como resultado de grandes acontecimentos, como a derrota do Taleban no Afeganistão, a desagregação do Iraque pós-invasão americana de 2003, a “primavera árabe” (que sacudiu monarquias sunitas), o acordo de potências (Rússia, China e as europeias) sobre o programa nuclear iraniano, o fim do Estado Islâmico e a restauração do poder de Assad na Síria, até o momento da liquidação do general, o Irã exibia uma posição política e militar no Oriente Médio mais forte do que possuía havia cinco anos. Levou uns 20 anos para chegar lá. O que muda agora?

A execução de Suleimani nada parece alterar na postura dos EUA diante da complexa situação do Oriente Médio: objetivos erráticos, concentração (uma quase obsessão) no conflito na Palestina, pouca vontade de se envolver em guerras, abandono de aliados (de militares egípcios a curdos). E não saber lidar com uma fratura fundamental na região: xiitas são apenas 10% entre os muçulmanos no mundo, mas quase a metade dos muçulmanos no Oriente Médio, o que ajuda a entender o peso dessa milenar disputa cultural, política e sectária em todos os vizinhos do Irã.

Boa parte da capacidade de expansão que o Irã registrou desde a Revolução de 1979 está no suporte sectário que recebeu de populações xiitas quase sempre tratadas como minorias perigosas em países árabes sunitas (alguns importantes para os EUA, como Arábia Saudita) – e não tanto o aspecto ideológico, embora o “feito” da revolução conduzida pelos aiatolás tenha sido o de virar de cabeça para baixo a relação entre religião e Estado no mundo islâmico.

A coligação levada adiante pelo Irã, num arco que vai do Afeganistão ao Mediterrâneo, passando pelo “coração” da região (norte do Iraque e Síria), mostrou-se razoavelmente coesa, enquanto o bloco “anti-iraniano” de aliados dos americanos tem motivos diversos, é mais fragmentado geograficamente e, pelo menos nas aparências, é adversário da principal potência militar amiga dos EUA na região, Israel, inimiga do bloco xiita também. Embora bem menos poderoso, o Irã pode ser comparado à Rússia e à China no papel de “revisionistas” da ordem de segurança e poder vigentes desde o fim da Guerra Fria. Como russos e chineses, iranianos se consideram herdeiros de civilização milenar que teria “primazia” sobre seu entorno, mas, ao contrário do que aconteceu na Rússia e na China, no Irã a ideologia como eixo de ação do regime não cedeu e tem como objetivo expulsar do Oriente Médio o inimigo “Grande Satã”, tal como o líder revolucionário Ruhollah Khomeini batizou os EUA – o grande corrompedor, que o digam Adão e Eva.

Ocorre que a visão “estratégica” de Trump vem direto de filmes nos quais um “Dr. Evil” precisa ser eliminado. Pena que roteiros de Hollywood se preocupem menos com coisas como o fim de uma ordem hegemônica, isto é, quando outros ocupam o lugar de quem antes podia fazer ou desfazer. Do ponto de vista político e militar, Rússia e Irã derrotaram os EUA e na guerra civil da Síria. O Irã é o virtual “ocupante” do Iraque. A Turquia, integrante da Otan, faz o que quer. Até a monarquia saudita olha hoje com mais cuidado para Moscou e mesmo Teerã, enquanto a China não esconde a intenção de, se puder, incluir o Irã no seu estratégico projeto de uma nova Rota da Seda. Mas Trump acha que matou o facínora.
 
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo 
 
 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

E o Brasil com isso? - Eliane Cantanhêde

No maior teste da nova política externa, Brasil adota neutralidade ou assume lado?

O conflito dos Estados Unidos com o Irã é o maior teste do governo Jair Bolsonaro e já exibe duas claras guinadas, não apenas em relação aos governos petistas, mas à própria política externa tradicional do Brasil. E o pior está por vir, pois a vingança do Irã é certa, mas não se sabe quando, como e com que grau de ferocidade. O que fará o Brasil? [O Brasil tem que ser pragmático e seguir o caminho que qualquer estadista de importância, digno do nome - incluindo o próprio Trump - faria:
Colocar os INTERESSES do BRASIL ACIMA DE TODOS os demais interesses.
Acima do Brasíl, só DEUS ACIMA DE TUDO - que está, sempre esteve e sempre estará acima de tudo. 
E na situação atual a NEUTRALIDADE é a melhor, e mesmo a única opção de privilegiar os interesses do Brasil, colocando-os acima de todos os outros.
Registramos nosso entendimento de que não haverá guerra.
Saiba mais, lendo aqui.]

As duas mudanças perpassam as discussões de cúpula do governo e podem ser identificadas na nota do Itamaraty. A primeira é que o foco no Oriente Médio não é mais o conflito Israel-Palestina e sim o Irã. A segunda é que o Brasil deixa de tratar o terrorismo como uma questão distante, dos países desenvolvidos e do Oriente Médio. O terrorismo passa a ser problema nosso, sim.[considerando a natureza da operação, o caráter que não existe uma guerra declarada, estamos diante de um novo tipo de terrorismo? o terrorismo de estado?]

No “novo Brasil”, alinhado incondicionalmente não só aos EUA, mas ao governo Trump, o Irã é a maior ameaça internacional, com seu projeto audacioso de hegemonia na região e insinuando-se até como novo líder mundial a partir do seu programa nuclear. Persa, não árabe, é o Irã quem assume a dianteira no enfrentamento a Israel, negando até o holocausto e o próprio Estado de Israel, como já se esgoelava Mahmoud Ahmadinejad, homem forte do país entre 2005 e 2013.

Tanto Trump quanto Bolsonaro têm forte base política entre judeus e evangélicos, que estão na linha de frente pró-Israel. Não por acaso, o primeiro compromisso e a segunda manifestação de Trump após o ataque que matou o principal líder militar iraniano foram em Miami, num evento evangélico. Agregue-se à ascensão do Irã a sua proximidade com a Venezuela de Nicolás Maduro e tem-se a suspeita de apoio iraniano à instalação de células do Hezbollah na América do Sul. Bom pretexto para a mudança da posição brasileira sobre terrorismo. Não é mais “coisa dos outros”.

As primeiras manifestações do presidente Jair Bolsonaro foram bem-vindas. Ele admitiu o impacto da crise sobre o preço do petróleo, mas descartou tabelamento. Ponto com o mercado e com o Ministério da Economia. E lembrou que o Brasil não tem armamento nuclear e não pode assumir um lado, ficando sujeito a retaliações. Ponto com os militares e com a diplomacia responsável. A nota do Itamaraty, porém, é toda em cima do combate ao terrorismo e embica para a condenação ao Irã e o apoio aos EUA, deixando em aberto qual será a posição brasileira se, ou melhor, quando o Irã retaliar. Nesse momento, Trump cobrará posição e ação. O que o Brasil responderá? [NEUTRALIDADE; na Guerra das Malvinas, o Brasil assumiu uma postura correta e corajosa e manteve sua neutralidade naquele conflito, adotando as medidas adequadas que devem ser padrão no comportamento de uma nação neutra - inclusive negando trânsito sobre espaço aéreo brasileiro à aviões das nações beligerantes.
A Suíça se manteve neutra,  encravada entre países em conflito, durante a Segunda Guerra Mundial, e ao fim do conflito estava MAIOR do que ao início.
Talvez seja até conveniente que a competência para emitir manifestações  sobre a situação no Oriente Médio seja afastada, ainda que temporariamente, do Itamaraty.]
A nota não condena a ação americana e o assassinato do general Suleimani, mas sim, além do “terrorismo”, os ataques à embaixada dos EUA em Bagdá. E diz que o Brasil está pronto para participar de “esforços” para evitar uma escalada. Participar como? Como mediador neutro ou a favor de um lado? Ouçam-se os generais e estrategistas militares e eles responderão: “não é coisa nossa”. Ouçam-se embaixadores e especialistas em política externa e eles farão coro: “não temos nada a ver com isso”. E, juntos, concordam com a primeira avaliação de Bolsonaro: o Brasil não tem tamanho para entrar nessa guerra. Melhor seguir o exemplo da França: pedir cautela e fim da escalada. Ponto.

Além da questão geopolítica e dos riscos para o planeta, a crise envolve questões internas. Trump convive com o impeachment e a reeleição neste ano. O Irã sofre rejeição em parte do Iraque e do Líbano. Logo, arrumar “inimigos externos” é conveniente a ambos, assim como Hugo Chávez recorria ao “demônio” EUA a toda hora para unir a Venezuela. Objetivamente, o Brasil pode muito pouco num conflito ou numa guerra assim e tem de se preocupar com a ameaça imediata: o preço do petróleo. Isso, sim, tem reflexos diretos no País. Inclusive, na política interna.
 
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo
 
 
 
 
 

segunda-feira, 18 de março de 2019

O sono da razão de assassinos intoxicados

Como de praxe, até celibatários que nada entendem de formação de crianças e educação de alunos intoxicaram o distinto público com seus diagnósticos



Deonísio da Silva
O pintor espanhol Francisco de Goya retratou-se sentado e dormindo sobre suas anotações. Seu corpo luta para não dormir, mas a força do sono é maior.
Atrás dele, criaturas soturnas espreitam o sono do pintor: morcegos, linces, corujas e um gato preto, representando fantasmas e medos do artista. Talvez a obra de Goya sirva de moldura para outro massacre numa escola brasileira, que serviu de pretexto para falsas interpretações.

Como de praxe, até celibatários que nada entendem de formação de crianças e educação de alunos intoxicaram o distinto público com diagnósticos mais arrumadinhos e mais bem aparados do que seus cabelos e pestanas, preocupados em aparecer, dando a impressão de que sabem de tudo, como sempre. Não sabem. E mostram isso logo ao abrir a boca. Mas enganam bem, há muito tempo e a muita gente.

As coisas, porém, começam a mudar. Assim, houve quem trouxe, como o psicólogo, advogado e assistente social Jacob Pinheiro Goldberg, ainda no calor da hora, o claro raio ordenador para ver os acontecimentos à luz de prática e teoria combinadas.  Em resumo, as raízes destas tragédias de já assustadora frequência estão no ambiente intoxicado em que vivem os estudantes, onde é patente a falta de autoridade sobre adolescentes e jovens, seja por parte dos pais, seja por parte dos professores, e no caráter violento da sociedade brasileira e seu complexo sistema de exclusões, sem esquecer o lado patológico e demoníaco do mal em si mesmo. De resto, a razão ainda esbarra em aspectos inexplicáveis do cotidiano, mesmo quando não está dormindo.

Mas o fato é que para milhões de brasileiros, sejam crianças, adolescentes, jovens ou adultos, sempre falta quem lhes possa dizer não. “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”, diz o provérbio, mas no Brasil o verbo obedecer virou pesado anátema. Mandar também.  Sem contar que muitas drogas rondam as escolas, não apenas o tóxico, associado aos mais diversos crimes, como sabem aqueles que frequentam o ambiente escolar e universitário.

A própria palavra assassino veio do Árabe haxaxin, fumador de haxixe, droga utilizada para instigar jovens bandoleiros a assaltar e matar os cruzados nos desfiladeiros do Irã, a caminho de Jerusalém, entre os séculos XI e XII. Haxix designa erva seca em árabe, que pode ser feno, forragem, mas também o cânhamo, cannabis sativa em Latim e makanha em Quimbundo, uma língua africana. Deu maconha em Português.
O haxixe e a maconha tornaram-se drogas de referência, mas no berço estas palavras ainda estavam cobertas pela pureza das designações originais, sem quaisquer ligações com o crime.

Entre fins do século XI e começos do XII, durante as primeiras cruzadas, um líder religioso nizarita, ramo dissidente do islamismo xiita, notabilizou-se por liderar um bando que cometia as maiores atrocidades nos desfiladeiros do Irã. Conhecido pelo apelido de Velho da Montanha, por refugiar-se entre as montanhas do Norte do Irã, numa fortaleza conhecida por Alamute, cujo significado é Ninho da Águia em língua persa, o ancião chamava-se Hassan ibn al-Sabbah Homairi e, depois de perpetrar inumeráveis homicídios, foi executado pelas tropas de Gengis Khan em 1124, aos 90 anos.

Ele e seus liderados tinham, porém, cometido tantos homicídios em mais de meio século de assaltos sistemáticos que a palavra assassino, cujo étimo veio da erva consumida, com influências do nome do próprio chefe, chegou ao Português e substituiu homicida, confinado aos territórios jurídicos da lei, o mesmo ocorrendo em outras línguas. Os jovens assassinos autores do massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), fizeram com que palavras como assassino, bárbaro, pavor e medo fossem invocadas para descrever a situação de pânico que instauraram ali. É curioso que esteja ausente a palavra fobia nessas horas, que reservamos para medos irracionais, como homofobia, claustrofobia, demofobia etc.

Outras singularidades estão no tenebroso e trágico contexto. O professor Raul Brasil, que dá nome à escola paulista onde houve o massacre, era casado com uma senhora chamada Otília. Eles tiveram dez filhos e a todos deram nomes iniciados por H: Helena, Hugo, Herval, Hélio, Heitor, Hilda, Heberth, Hebe, Haydeé e Heros.  No reino das palavras, escrevendo apenas para dizer outras coisas, não com o fim de acrescentar alguma luz sobre a tragédia, mas com o propósito de aliviar a tamanha tristeza que tomou conta de todos, lembremos que a inocência original das palavras é violada de forma inaudita quando elas são usadas para expressar outras realidades.

Assim, a palavra escola está mudando de significado ao longo destas últimas décadas no Brasil. Pouco se aprende ali, pela decadência assustadora do ensino, e para piorar tornou-se, como as igrejas, os templos, as universidades, as mesquitas e as sinagogas em tantos lugares do mundo, um alvo de terroristas desesperados para aparecer na mídia, ainda que o coroamento de seus atos seja o suicídio. Algo deve ser feito e a sociedade ainda não sabe como defender-se de assassinos que querem matar, mas também querem morrer junto com suas vítimas.
Uma tarefa urgente, porém, se impõe: acordar a razão.
*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O homem da cara de pau

O termo aqui não tem sentido de desfaçatez e falta de vergonha, mas de aludir àquele que simula ser outro. Pior: ser o outro, mas continuando a ser o mesmo


Deonísio da Silva
A foto do candidato a presidente da República, Fernando Haddad, atrás de uma máscara de Lula, impedido de concorrer por estar preso em Curitiba, trouxe-me à lembrança esta linha de A Trama, narrativa curtíssima de Jorge Luís Borges: “Ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias”.

É impressionante o que acontece. Ressurgem expressões como voto de cabresto, curral eleitoral e o famoso personagem vivido por Paulo Gracindo como “dotô coroné prefeito”, dos textos de Jorge Amado e de Dias Gomes, entre outros. Quer dizer que o eleitor não pode escolher em quem votar? É obrigado a votar em quem está atrás da máscara do mandante?  A etimologia nos ensina que máscara e personagem têm significados semelhantes, embora a primeira tenha vindo do Árabe más-hara, burla, engano; e a segunda, do Grego prósopon, careta, que se tornaria o Latim persona, pessoa, que nos deu também personagem.

Portanto, cara de pau não é usado aqui no sentido tão usual de caradura, desfaçatez e falta de vergonha, que lhe dão os dicionários, mas para designar quem simula ser outro. Ou pior ainda: ser o outro, mas continuando a ser o mesmo. O mesmo não pode mostrar a própria cara. É obrigado a mostrar a cara do outro. É uma pauta e tanto para nossa ciência política, para a literatura e para a psicanálise. Cara de pau, embora tenha feito as vezes de máscara, não é máscara de ferro. Como sabem tantos, nos cárceres da França de Luís XIV havia um preso condenado a jamais mostrar o rosto, posteriormente identificado apenas como o homem da máscara de ferro.

Tornou-se célebre personagem de Os Três Mosqueteiros, do escritor francês Alexandre Dumas, que teve um filho com o mesmo nome, também escritor, o conhecido autor de A Dama das Camélias. Mas foi o pai quem tornou famosa a figura literária, a seu tanto histórica e lendária, do homem da máscara de ferro, de existência comprovada. Pesquisadores que se debruçaram sobre o assunto chegaram à conclusão de que não era ninguém importante. Tendo vivido no século XVII, estava confinado em cela de segurança máxima. Alguma importância deveria ter…

Assim isolado, como veio a tornar-se tão famoso? É que, ao ser transferido da prisão de Pignerol para a da ilha de Sainte-Marguerite, uma escolta maior do que as habituais chamou a atenção do público e contribuiu para o mistério cultivado por seu carcereiro. Este, sim, em busca de dar maior visibilidade a seu ofício, fez saber ao distinto público, pelas vias das fofocas habituais, que tinha sob seus cuidados uma celebridade. Quem, na verdade queria ser célebre era o carcereiro.

Todavia, o mistério continuou. Condenado a trinta anos de prisão e a usar o insólito disfarce, ele nunca tirou a máscara, nem para dormir, para comer ou para lavar o rosto? Bem, outros mistérios persistem. Quando de nova transferência, desta vez para a Bastilha, em Paris, o público assistiu à chegada do ilustre desconhecido, com o rosto coberto, não mais por uma máscara de ferro, mas de veludo, disfarce que ele teria usado até morrer, já no século XVIII.

Havia outro motivo para o prisioneiro usar a máscara. Ele seria irmão gêmeo do rei Luís XIV e, condenado, não poderia mostrar o rosto! Quem teria formulado tal hipótese teria sido o filósofo Voltaire, que também esteve preso na Bastilha entre 1717 e 1718, e teria ouvido detalhes sobre a identidade do encarcerado.  Este foi, aliás, o argumento do filme em que o homem da máscara de ferro foi revivido no cinema, em 1998, com atuações de Leonardo DiCaprio, Gérard Depardieu e Jeremy Irons, entre outros. O filme foi pouco notado por força do megassucesso de Titanic, que reinou soberano nas bilheterias todo aquele ano.

Outras evocações virão, pois estas eleições prometem reviver, não apenas famosos eventos literários e lendários, mas também a República Velha. Tomara que não sejam trágicos, como já o foi o assassinato de João Pessoa, então presidente da Paraíba, em 1930, estopim da revolução deflagrada naquele ano. O nome do cargo mudaria mais tarde de presidente para governador.

*Deonísio da Silva


Diretor do Instituto da Palavra & Professor


Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá