O Estado de S. Paulo
A doutrina do MPF é e sempre deve ser exclusivamente a lei. A bíblia que vale para nortear sua atuação é a Constituição. Toda ação que dela se desviar é abuso.
Nos últimos cinco anos, desde a deflagração da primeira fase da Operação
Lava Jato – e lá se vão 66 até o momento –, não foram poucos os
editoriais publicados nesta página em louvor ao inestimável serviço
prestado ao País pela força-tarefa composta por membros da Polícia
Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Receita Federal. Os números da maior operação de combate à corrupção e à lavagem de
dinheiro já realizada no Brasil são impressionantes e falam por si sós.
Porém, muito mais importante do que os resultados tangíveis da Lava Jato
foi o resgate da confiança dos brasileiros no primado da igualdade de
todos os cidadãos perante a lei. Este, sem dúvida, é o maior legado da
operação.
Até o advento da Lava Jato, salvo raras exceções, a isonomia consagrada
pela Constituição não passava de letra morta no imaginário da sociedade,
sabedora de que as cadeias no Brasil, tradicionalmente, eram lugares
destinados apenas aos criminosos negros e pobres. A realidade mostra que
ainda não deixaram de ser, mas já é possível notar fissuras nesse muro
até então intransponível para os mais abastados.
Coerente com seu compromisso centenário de defender a lei e a liberdade
acima de tudo, o Estado também não se furtou de apontar neste mesmo
espaço os desvios legais cometidos por alguns membros da força-tarefa da
Lava Jato e do Poder Judiciário em nome do combate à corrupção e de uma
suposta “depuração” do País, cujo corolário mais nefasto foi a
desqualificação da atividade política. Na inarredável defesa da lei e do
devido processo legal, não raro o Estado foi de encontro à corrente de
pensamento, por vezes majoritária, que defende a nobreza dos fins como
forma de escamotear os vícios dos meios.
Mas de que valeria o combate à corrupção que há muito mantém o Brasil no
atraso se o seu efeito colateral pode ser um mal tão ou mais
pernicioso, o triunfo do Estado policialesco? [imperioso lembrar o óbvio: o Estado policialesco só assusta aos criminosos;
as pessoas de BEM vivem até melhor sob o chamado 'estado policialesco', podem até ter algum direito suprimido, mas, que adianta ter um um lote imenso de direitos e não poder desfrutar deles? - impedidos pela criminalidade de todos os tipos = a criminalidade é nociva tanto quando um ladrão assalta, um vigarista aplica um pequeno golpe, ou temos um presidente da República ladrão.]
A Operação Lava Jato, ou ao menos a força-tarefa de Curitiba, a mais
conhecida, está perto do fim. É bom que assim seja porque o que deve ser
perene é o império da Constituição, das leis e do devido processo
legal, não algumas operações específicas. Respeitadas as leis e
garantido o devido processo pelo Poder Judiciário, não há mais razões
para crer que o combate à corrupção sofrerá algum revés apenas porque a
notória operação chegou ao fim. Esta, aliás, foi uma das muitas falácias
usadas como pretexto para justificar alguns abusos cometidos no curso
da Lava Jato.
Com a aproximação do fim da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba – que
não tem muito tempo pela frente porque realizou o trabalho que tinha de
realizar, não por qualquer outra razão –, noticia-se que seu mais famoso
personagem, o procurador da República Deltan Dallagnol, negocia uma
“saída honrosa” do front de combate à corrupção sem que isso sugira
“desistência” ou “abandono” da coordenação da força-tarefa após a
divulgação de controvertidas conversas privadas entre ele, outros
membros do MPF e o então juiz federal Sérgio Moro.
A solução, de acordo com um grupo de procuradores ligados a Dallagnol,
seria a criação de um grupo permanente de combate à corrupção, nos
moldes dos Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado
(Gaeco) dos MPs estaduais. Deltan Dallagnol teria de solicitar ao
Conselho Superior do Ministério Público sua promoção a procurador
regional, de modo que possa coordenar esse “Gaeco” do MPF e, então,
implementar a “doutrina” de combate à corrupção criada pela Lava Jato no
novo órgão, de natureza permanente. [qualquer ação do Estado tem que ser impessoal - vincular tudo a Dallagnol seria tentar (em ação fadada ao fracasso) criar o principio de que alguém é insubstituível.]
Ambas as iniciativas, tanto a criação de um “Gaeco” federal como a
perpetuação da tal “doutrina lavajatista”, são uma temeridade. A
doutrina do MPF é e sempre deve ser exclusivamente a lei. A bíblia que
vale para nortear sua atuação é a Constituição. Toda ação que dela se
desviar é abuso, é ilegalidade. A vingar a chamada “saída honrosa” nos moldes em que vem sendo
anunciada, fica claro que o objetivo final de parte do MPF é continuar
atuando à margem de qualquer tipo de controle, interno ou externo,
pautado apenas pela consciência de alguns de seus ilustres membros na
virtude de seus próprios desígnios.
Editorial - O Estado de S. Paulo