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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Por que os aiatolás do Irã jogam o jogo mais perigoso do Oriente Médio? Leia artigo da Economist

O Estado de S. Paulo

O objetivo do regime iraniano neste momento, como ao longo da década recente, não é provocar uma guerra direta com o Ocidente e seus aliados, mas semear incertezas e instabilidades

Sinais de alerta de que a guerra de Israel com o Hamas pode vir a se tornar uma conflagração maior no Oriente Médio piscam por todos os lados. Os Estados Unidos mandaram uma segunda frota de ataque com porta-aviões, liderada pelo USS Eisenhower, ao Golfo Pérsico. “Há probabilidade de escalada”, afirmou o secretário de Estado americano, Antony Blinken, em 22 de outubro. Crescem as chances de mais ataques praticados por grupos aliados ao Irã contra forças dos EUA. “Nós não queremos ver um segundo ou terceiro front se desenvolver”, continuou Blinken.

Temores também crescem no Líbano sobre a possibilidade de Israel usar a cobertura dos americanos para lançar um ataque preventivo. 
Israel esvaziou suas cidades próximas à fronteira libanesa, e o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, alertou que, se o Hezbollah, uma milícia apoiada por Teerã no Líbano, entrar no conflito, as consequências para o país serão devastadoras
Uma razão para Israel ter postergado sua ofensiva em Gaza pode ser para incrementar suas preparações para uma escalada no front setentrional. O ministro de Relações Exteriores do Irã afirmou que a região parece um “barril de pólvora”.
 
Os governantes autocráticos do Irã podem ter nas mãos um dos palitos de fósforo capazes de incendiar seu pavio: um “eixo de resistência”, uma rede de aliados violentos por toda a região. 
O regime iraniano passou duas décadas construindo essa capacidade no Iraque, no Líbano, na Síria e no Iêmen
Teerã preda lugares onde a política local é fraca, onde é fácil enviar operadores e armas e onde nenhum ator externo é capaz de desafiá-lo, de acordo com o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, um centro de análise com sede em Londres. 
A capacidade do Irã de provocar caos à distância — por meio do Hamas, do Hezbollah, da infinidade de milícias xiitas no Iraque e dos houthi, no Iêmen — pode dar mais peso a Teerã do que suas capacidades militares convencionais, que são relativamente fracas.
O objetivo do regime iraniano neste momento, como ao longo da década recente, não é provocar uma guerra direta com o Ocidente e seus aliados, mas semear incertezas e instabilidades. No mesmo momento que trafega num limite para se tornar uma potência nuclear, o Irã também mantém uma ambiguidade estratégica com o eixo. 
Teerã nega estar no comando ao mesmo tempo que fornece armamentos a grupos armados, como os houthis, dando-lhes treinamento e usando-os como fachada para conduzir ataques — como o ataque a mísseis contra a Saudi Aramco, em 2019, que fez diminuir temporariamente em 5% a produção global de petróleo. 
O propósito é intimidar o Ocidente tanto quanto complicar seu cálculo. 
 
A atual crise evidencia oportunidades e problemas da estratégia do Irã. Teerã financia o Hamas há muito, mas não parecia saber antecipadamente a respeito de seu ataque contra Israel em 7 de outubro, de acordo com autoridades ocidentais cientes do assunto. 
Ainda assim, pareceu capitalizar sobre as atrocidades do Hamas e mobilizar o eixo de resistência. 
Hezbollah e Israel trocaram fogo com o apoio explícito, respectivamente, do Irã e dos EUA. 
Ao menos 19 combatentes do Hezbollah foram mortos. 
Os houthis, que controlam a capital do Iêmen, lançaram três mísseis de cruzeiro de médio alcance e vários drones, recentemente adquiridos do Irã, contra a cidade portuária de Eilat, em Israel (interceptados por um destróier americano). 
E milícias xiitas apoiadas por Teerã na Síria e no Iraque ampliaram seu conflito atacando repetidamente, com foguetes e drones, bases que abrigam soldados americanos (Washington retirou sua presença diplomática do Iraque como resultado).
 
Para o Irã, há certos benefícios óbvios. A conflagração em Gaza congelou — mesmo que apenas temporariamente — as conversas sobre normalização de relações entre Israel e Arábia Saudita
Os aiatolás do Irã, xiitas, não podem suportar a ideia de ser isolados enquanto Estados liderados por sunitas e Israel passam a cooperar mais. O impulso iraniano para deslegitimar os Acordos de Abraão continua: em uma região com ministros de Relações Exteriores muçulmanos na Arábia Saudita, em 18 de outubro, o Irã instou os países muçulmanos a impor um embargo de petróleo contra Israel. 
Teerã está apoiando pedidos para que o Egito receba palestinos de Gaza, talvez na esperança de agravar tensões entre Israel e seu mais antigo aliado árabe.
 
A turbulência regional também significa mais dinheiro para o Irã, pelo menos por agora. O preço do barril de petróleo subiu mais de US$ 5 desde 7 de outubro. 
Os EUA estão ansiosos para conter a inflação anteriormente à eleição no país, no próximo ano, e têm permitido tacitamente ao Irã exportar mais petróleo, apesar de formalmente manterem as sanções. “Esses barris iranianos são muito importantes” para Joe Biden, afirma Ahmed Mehdi, analista do setor petroleiro radicado em Londres. 
A produção chegou a 3 milhões de barris ao dia, seu nível mais alto desde que o governo Trump impôs sanções, em 2018. Ano após ano, afirma Mehdi, as exportações aumentaram mais de um terço.

Mas a guerra por procuração em escalada contra os americanos e seus amigos implica em grandes riscos para o Irã. Em Teerã, as autoridades gabam-se afirmando que voltaram a ser “estadistas”; o presidente Ebrahim Raisi — considerado por muitos no Ocidente um pária linha-dura — conversou com o presidente francês, Emmanuel Macron, nos dias recentes. Os iranianos comuns estão menos impressionados.

Uma guerra regional poderia desencadear um novo ciclo de protestos no Irã. A estudante iraniana Armita Geravand, que desmaiou após ser espancada pela polícia da moralidade, em 1.º de outubro, segundo ativistas locais, teve morte cerebral declarada — uma notícia que poderá ressuscitar o ultraje que levou manifestantes às ruas do Irã em 2022, após a morte sob custódia das autoridades iranianas de Mahsa Amini, que havia sido presa por não usar o véu obrigatório às mulheres no país
A população do Irã está cansada das aventuras de seu regime no exterior e relutante em suportar mais sofrimento pela Palestina. Protestos convocados pelo governo têm tido baixo comparecimento. Um minuto de silêncio numa partida de futebol em Teerã pelos mortos em Gaza foi interrompido por gargalhadas sonoras. “Nem Gaza, nem Líbano”, entoaram manifestantes das janelas de suas residências. “Nós sacrificamos nossas vidas pelo Irã.”

A guerra nas sombras do Irã é um jogo delicado, e a capacidade de Teerã de controlar seus aliados não é clara. Desde que os EUA assassinaram Qassem Suleimani, um dos formuladores do eixo de resistência, três anos atrás, a autonomia dos satélites iranianos. Conforme lançam ameaças de guerra juntamente com seus foguetes, eles poderão achar difícil recuar de sua retórica. Cada um estabeleceu “limites” para determinar intervenção contra Israel e o Ocidente. Não responder poderia ferir sua credibilidade com apoiadores locais. Uma invasão terrestre de Israel a Gaza poderia fazê-los forçar a mão.

Os aliados do Irã também têm de equilibrar suas aspirações militares com os interesses dos países que os abrigam. De acordo com autoridades iranianas, o presidente sírio, Bashar Assad, disse ao Hezbollah que não tem nenhum desejo de acudir aos seus chamados por ataques contra Israel de seu território. Do ponto de vista de Assad, o Hamas o traiu quando se aliou à rebelião contra seu regime, em 2011, após ele ter permitido ao grupo permanecer em segurança na Síria. Agora, Assad não quer lutar pelo Hamas.

O Líbano teme ser mais um peão de sacrifício. Seus xiitas são o maior grupo religioso do país, mas suas outras 17 denominações sectárias oficiais formam maioria. Reveladoramente, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, famoso por seus discursos beligerantes, evitou expressar-se publicamente de seu bunker em Beirute desde que os combates começaram. 
A ameaça de guerra pôs fim à esperança de uma ressuscitação do turismo no Líbano. 
A firma de seguros Lloyd’s sinalizou que poderá retirar cobertura no país, e a Middle East Airlines, maior empresa aérea libanesa, está estacionando parte de sua frota na Turquia. 
Os EUA aconselharam seus cidadãos a deixar o Líbano. O primeiro-ministro libanês afirmou que “a decisão sobre guerra e paz” não está em suas mãos.

Se os aliados do Irã atacarem interesses dos EUA, ou possivelmente Israel, o mais provável é que os americanos retaliem inicialmente contra eles em vez de seu financiador. Ainda assim, a aposta iraniana é alta. A decisão do Irã de mobilizar o eixo de resistência sinaliza que, no longo prazo, o regime ruma ao isolamento e à autocracia. 

Apenas um mês atrás, Teerã celebrava uma troca de prisioneiros com Washington e a iminente transferência para o Irã de US$ 6 bilhões em rendimentos do petróleo congelados.  
O aiatolá Ali Khamenei abençoou pela primeira vez conversas diretas desde que o governo Trump abandonou o pacto nuclear. 
Alguns falavam de uma nova trégua. Agora essa perspectiva se arruinou — e as chances de uma guerra maior, catastrófica, mesmo que ainda baixas, são perigosamente altas. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Internacional - O Estado de S. Paulo - The Economist


sábado, 26 de março de 2022

O drama dos ucranianos “trans” barrados na fila de refugiados - Gazeta do Povo

Luciano Trigo

Com raras exceções, homens de 18 a 60 anos estão proibidos de deixar a Ucrânia enquanto durar a guerra, porque precisam ficar disponíveis para combater o invasor russo. 
É uma situação comum nas guerras: os homens podem ser convocados para lutar e, portanto, não podem deixar o país em busca de segurança. Mulheres e crianças podem.

                                       Foto: Reprodução Instagram

É o que está acontecendo na Ucrânia: um mês após o início do conflito, o número de refugiados já passa de 3,6 milhões, segundo o Acnur, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. A Polônia é o destino mais frequente, já tendo acolhido mais de 2 milhões de ucranianos. A imensa maioria desses refugiados é composta por mulheres, idosos e crianças.

Daí as imagens, de partir o coração, mostrando pais de família se despedindo das esposas e filhos que podem deixar o país, bem como as filas de refugiadas na fronteira – que foram, aliás, objeto de comentários sem noção de um deputado brasileiro em visita ao país (comentários que, nas redes sociais e na mídia do ódio do bem, se tornaram um escândalo maior que a guerra).

Imagens de despedidas assim também aconteceriam no Brasil, onde o serviço militar é obrigatório para os homens – que, mesmo quando são dispensados, se tornam reservistas e podem ser convocados a lutar em defesa da pátria, na hipótese de uma eventual invasão pelas forças armadas de um país vizinho. Mulheres e crianças poderiam deixar o país.

Ora, ao longo da História da civilização, os homens nunca acharam injusto esse tratamento desigual, ao contrário: sempre foi algo auto-evidente que a segurança e a proteção de mulheres e crianças vêm na frente. São os homens que vão para a guerra, e as mulheres nunca reclamaram disso – e estão certíssimas.

Tenho a convicção de que nenhum soldado ucraniano no front gostaria que suas mulheres e filhos estivessem ao seu lado, expostos a tiros e bombardeios – porque, justamente, defender a pátria, para um soldado, significa, também, defender sua família.

Guerra afeta a mesa do brasileiro: pão, massa e biscoito vão ficar mais caros 

O gás natural russo e a guerra energética da Europa

Pois bem, leio que a guerra na Ucrânia está confrontando a agenda identitária das minorias trans, o que lança algumas questões éticas sobre o tema. Escrevo sem nenhuma ironia e consciente de que qualquer pessoa que integre uma minoria – qualquer minoria – já sofreu com o preconceito e passou por situações de intolerância que uma pessoa “comum” sequer imagina. Isso posto, vamos ao que está acontecendo na Ucrânia.

Ou bem se luta por direitos iguais
, por uma situação na qual não faça nenhuma diferença pertencer ou não a uma minoria, ou a luta será para trocar de lugar com o opressor

A primeira situação é a de homens trans (mulheres biológicas que se identificam como homens). Como o registro na carteira de identidade indica que eles (elas? elus?) são mulheres, essas pessoas estariam formalmente autorizadas a deixar o país, mesmo tendo optado pela identidade masculina - e supostamente aceitando os ônus e os bônus de ser homem.

Ignoro o número de homens trans na Ucrânia, bem como quantos se valeram da prerrogativa do sexo biológico para escapar da guerra, ou quantos foram coerentes com suas escolhas e permaneceram para defender seu país. Mas, seguramente, contribuiria para a popularidade da bandeira trans se os homens trans ucranianos ficassem para lutar, já que querem ser reconhecidos e tratados como homens.

A segunda situação está gerando mais controvérsia: são as mulheres trans, homens biológicos que se identificam como mulheres. Nesta semana, li reportagens como esta e esta, algumas criticando o fato de que o governo ucraniano está proibindo a saída do país dessas pessoas.

Os guardas da fronteira estariam ordenando que elas (eles? elus?) deem meia-volta e lutem pelo seu país.   
Seria uma forma de discriminação, alega-se. Mas as leis marciais na Ucrânia são claras: homens biológicos com idade entre 18 e 60 anos devem ficar e lutar. As leis não abrem exceção para mulheres trans. Para os guardas da fronteira, são apenas homens tentando fugir do seu dever.

O que dá para concluir daí?

Primeiro, que a vida real é muito diferente das narrativas das redes sociais e da grande mídia. 
Um guarda de fronteira ucraniano, que possivelmente já perdeu parentes na guerra, pode se sentir indignado ao ver um homem biológico, ou uma “pessoa com pênis”, querer fugir do país pela simples motivo de se sentir mulher; mas, nas redes sociais, este guarda seria seguramente cancelado pelos militantes do ódio do bem que nunca viram uma guerra de perto.

Segundo, que o problema aumenta e se torna mais complicado quando as minorias lutam não pela igualdade de direitos, por tolerância e respeito, mas por um tratamento diferenciado e compensatório – que também pode ser interpretado como privilégio.

Ou bem se luta para que não faça nenhuma diferença pertencer ou não a uma minoria, ou seja, por uma situação em que ninguém pode ser prejudicado, nem beneficiado, por pertencer a um determinado grupo, ou a luta será para trocar de lugar com o opressor e adotar a mesma prática que se afirma combater, isto é, a de supor que, pelo acaso de ter nascido rico ou pobre, homem ou mulher, ou pertencendo a tal ou qual etnia, ou ainda, por escolher ser gay ou hetero, eu tenho direito a vantagens e benefícios que as outras pessoas não têm.

Quem está com a razão, o guarda de fronteira ou Zi Faamelu e outros ucranianos trans que querem deixar o país? Resposta: é impossível chegar a um consenso, porque vivemos em um mundo que escolheu abrir mão de algumas premissas básicas para a vida em sociedade, como o reconhecimento das diferenças biológicas entre homens e mulheres (o que não tem nada a ver com a orientação sexual de cada um). Isso funciona na mídia e nas redes sociais. Na realidade dura e crua de uma guerra, não. [ao nosso ver o 'guarda de fronteira' e quem se  recusar a lutar deve ser sumariamente fuzilado - pena reservada aos desertores. Certa ou errada, com ou sem o ex-comediante, a Ucrânia está guerra e as leis de guerra devem ser aplicadas. Desertores estão entre as coisas mais rejeitadas em um país em guerra.] 

Luciano Trigo, colunista - Gazeta do Povo - VOZES


 

domingo, 31 de maio de 2020

Comandante do Exército está no front da guerra ao coronavírus - VEJA

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A inércia opera a favor de quem? - Alon Feuerwerker

Análise Política

O presidente da República vive uma situação contraditória. Nunca o apoio a ele foi tão sólido na sua base fiel. Todas as pesquisas mostram entre 25% e 35% do eleitorado acompanhando-o mesmo nas polêmicas em que está sozinho contra o resto da política e a opinião pública. Mas a faca tem dois gumes, e nunca como nesta crise da Covid-19 Jair Bolsonaro esteve tão próximo do isolamento. Na sociedade, nas instituições e mesmo dentro do próprio governo.
As falas e ações de Bolsonaro deixam claro que os movimentos dele com acenos à conciliação são apenas manobras táticas para ganhar tempo e reagrupar forças com o objetivo de retomar a ofensiva. Ele joga com a atitude dos que confiam plenamente na vitória final, ou dependem excessivamente dela para sobreviver. E também por isso não têm maior interesse num acordo de paz. Ou mesmo num armistício mais duradouro, que possibilite a estabilização do front.

Em política, é sempre importante levar em conta a inércia. Responder à pergunta “se não acontecer nada, acontece o quê?”. É a outra forma de perguntar a favor de quem joga o tempo. E a análise desse fator deve ser sempre pontual, pois o vento pode mudar de sentido de uma hora para outra. Então cabe perguntar: se persistir à esquerda e ao dito centro a rejeição a enveredar pelo caminho do confronto final contra o presidente, qual será o desfecho?

Para recuperar a expressão popularizada pelo técnico da Seleção na Copa de 1978 (faz tempo...), Cláudio Coutinho, Bolsonaro mostra jogar de olho no ponto futuro. Na crise provocada pelo SARS-CoV-2, apesar de ajustes táticos aqui e ali, parece confiar que a fortaleza dos adversários, particularmente os governos estaduais, [já começam  a despontar entendimentos diferentes entre os governadores e a tendência natural é que essas divergências se transformem em pontos de atritos ... - manter em um mesmo balaio,  27 governadores é até divertido o desastre que vai dar.
Enquanto pelo menos nessa 'guerra' Bolsonaro é só ele, coeso, pensamento único = o dele.] vai cair diante da inevitabilidade de alguma hora as pessoas precisarem voltar ao trabalho para garantir a subsistência.

Não chega a ser uma aposta tão arriscada. O tema começa a ganhar espaço em todo o mundo mesmo sem o vírus da Covid-19 estar neutralizado. Até porque fica cada vez mais evidente que isso talvez demore. E bastante. Então trata-se de planejar a executar a volta à atividade mais dia menos dia, tomando as providências necessárias, ou possíveis, para reduzir a transmissão do patógeno quando as pessoas voltam de algum modo à vida social.

Um governo convencional teria assumido cedo a liderança do lockdown, e agora estaria liderando o planejamento da operação para sair dele. E saborearia os píncaros da popularidade. E a completa imobilização da oposição. É o que acontece, por exemplo, na Argentina. Onde está a diferença? Talvez ela esteja em Alberto Fernández ter um partido institucional hegemônico e vertebrado, enquanto Bolsonaro não tem nenhum.

Talvez essa diferença leve o presidente brasileiro a acreditar que se decidir enveredar pelo caminho da conciliação com o establishment acabará imobilizado, se não terminar derrubado. Na ausência de um partido institucional para chamar de seu, Bolsonaro precisa manter em movimento o partido bolsonarista extra-institucional, exatamente para bloquear o movimento de adversários políticos, especialmente dos que se apresentam como possíveis aliados.

Entrementes, disputa espaço nas manchetes com a contabilidade de mortes. E fica a pergunta: “Se não acontecer nada, acontece o quê?” 

Alon Feuerwerker, jornalista e analista político - Análise Política


segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Um louco mundo em chamas - Fernando Gabeira

Em Sem categoria
 
Outro dia, num artigo, reproduzi uma frase do sociólogo Ulrich Beck em que ele afirma que as coisas estão mudando tão rápida e amplamente que as pessoas têm a impressão de que o mundo ficou maluco. Pois acrescento outra impressão inquietante: a de que o mundo está pegando fogo. Com causas e consequências diferentes, três grandes incêndios assustaram o planeta: Amazônia, Califórnia e Austrália.

O grande incêndio da Austrália foi mal compreendido pelo governo brasileiro, que provocou as ONGs e artistas: por que não se manifestam? Ilusão. No momento em que escrevo, de Pink a Elton John, os artistas já doaram US$15 milhões aos bombeiros de South Wales e Victoria, as regiões mais atingidas pelo fogo.
“Imprecionante”, como diria o ministro Weintraub. Acontece que a reação do governo australiano foi parecida com a do brasileiro, ao afirmar que eram incêndios frequentes e regulares nas regiões atingidas. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, interrompeu suas férias no Havaí, mas ainda assim foi severamente criticado nas regiões devastadas.

Seu governo não se prepara para as consequências do aquecimento global. A própria oposição está de mãos atadas porque as forças políticas dependem das forças que produzem carvão e gás. Para completar a visão do sistema, a mídia, dominada por Rupert Murdoch, tende também à negação das importantes mudanças climáticas.Alguns cientistas impressionados com o processo acham que entramos na era do fogo, a qual chamam de Piroceno.  Acontece que não estamos apenas sob impacto de grandes incêndios, mas de eventos extremos, tempestades, furacões, secas prolongadas.

Isso acontece num mundo que reage à tese do aquecimento global, e às conquistas da ciência de um modo geral. É uma tendência ampla que não se limita a negar o aquecimento, mas se estende ao movimento antivacinação e, na sua face mais radical, chega ao terraplanismo.  Não há o que fazer, exceto seguir argumentando pacientemente. Mas talvez fosse necessária uma inflexão tática. Ao invés de convencer sobre o aquecimento global, centrar a discussão nos eventos extremos que se sucedem.  Mesmo quem não acredita em aquecimento global pode ser convencido de que os desastres naturais são cada vez mais frequentes e é preciso uma séria preparação em escala nacional.

Isso não tem nada a ver com esquerda ou direita, muito menos é uma doutrinação do marxismo internacional. Talvez seja possível obter dessa corrente de céticos, e até adversários da ciência, algum tipo de compromisso sobre o fortalecimento de uma Defesa Civil nacional. Embora os dirigentes atuais sejam muito decididos a combater a ideia de aquecimento ou mudanças climáticas, um certo pragmatismo tem chance no Brasil, independentemente da posição deles. Tive a impressão de que, depois das grandes inundações em Blumenau, a Defesa Civil de Santa Catarina se organizou melhor e se tornou uma das mais eficazes do país.

Os bombeiros de Minas Gerais, depois de tantos desastres com barragens, transformaram-se, por sua vez, numa referência internacional nesse tipo de intervenção.  Num mundo que parece maluco e prestes a se consumir em chamas, é muito difícil convencer com grandes ideias, embora os governos não param de se reunir para debater o tema. O desenvolvimento de uma sólida e bem equipada Defesa Civil pode ser um objetivo alcançável, se houver uma concentração de forças nessa tarefa, aparentemente, modesta. O interessante é que isto diz respeito apenas parcialmente ao governo e ao Parlamento. É essencial preparar a sociedade em todos os níveis. Não alcançaremos o rigor e a disciplina dos japoneses.

Mas também não somos os vira-latas que os pessimistas acreditam que somos. Há experiências pontuais de comunidades de risco que já sabem quem precisa de ajuda na hora crítica, onde estão guardados os barcos, para onde fugir quando necessário. Enfim, a sensação que tenho é que, se baixarmos a bola, temos mais chance de chegar ao gol, apesar das exasperantes dificuldades da partida.  Mas, se tivéssemos tido a intuição de criar realmente um grande front pelo saneamento básico, o atraso não seria tão pesado como é hoje. Não trabalho com a tese de uma coisa ou outra. Apenas acho que é preciso definir o possível e o necessário em cada momento e não se perder apenas nas belas ideias gerais.

Fernando Gabeira, jornalista - Blog do Gabeira 


Artigo publicado no jornal O Globo em 13/01/2020

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Outro patamar - Merval Pereira

O Globo

A ascensão de Moro como político


O ministro Sérgio Moro está se saindo um “hábil político”, como disse Bolsonaro. Ontem, passou o dia no Congresso, negociando a aprovação do pacote anticrime (veja como ficou o projeto), e a autorização para a prisão em segunda instância, que foi retirada dele, mas deve ser votada separadamente. À noite, teve uma vitória importante, mesmo que alguns pontos tenham sido perdidos. Nessa luta, deu uma declaração polêmica que o favorece, e, em certa medida ao governo Bolsonaro, mas criou arestas com o governador de São Paulo João Doria, que havia lhe oferecido guarida meses atrás, quando parecia que sua relação com o presidente Bolsonaro não ia bem. O excludente de ilicitude, que foi proposto pelo presidente Bolsonaro, deveria mesmo ser retirado. E o "juiz de garantias" criado por proposta dos deputados, é uma boa novidade. [um dos inconvenientes criação do 'juiz de garantias' é que a Justiça já é lenta em todo o Brasil, e nas cidades do interior a situação é pior - tem juiz respondendo por várias comarcas - e se o juiz da garantias for necessário em cada comarca, vai travar tudo.]
O ministro da Justiça foi a primeira autoridade a criticar os policiais paulistas pelo que chamou de “erro operacional grave”, referindo-se à tragédia na favela de Paraisópolis, em que nove jovens morreram pisoteadas.  Moro elogiou a Polícia Militar do Estado de São Paulo, “uma corporação de qualidade, elogiada no país inteiro”, mas não se furtou a comentar o caso, afirmando que “aparentemente houve lá um excesso, um erro operacional grave”.  O que o ministro Sérgio Moro queria era mesmo defender o “excludente de ilicitude”, que o Congresso retirou do pacote anticrime. Refutava críticas de que a ação policial em São Paulo teria sido feita já sob influência da proposta que encaminhou ao Congresso. [críticas totalmente improcedentes, feitas de forma irresponsável ou por quem não entende nada sobre o que pretende comentar..
A diferença entre o excludente de ilicitude - proteção ao policial que em confronto ou em situação em que é agredido, reage fazendo uso dos meios necessários, vindo seu agressor a falecer - e mortos por pisoteamento, ao fugir de uma ação policial, sendo pisoteado pelo próprios companheiros de fuga (situação ocorrida na favela Paraisópolis).]

Moro, que comemorava a queda dos índices de criminalidade em todo o país, sabe que a cada tragédia como a de Paraisópolis, ou da menina Ágatha no Rio, cresce em parte ponderável da sociedade a rejeição a tal instrumento, que é visto como uma “licença para matar”.  Para ele, os dois casos são situações em que o “excludente de ilicitude” não poderia ser utilizado, pois “em nenhum momento ali existe uma situação de legítima defesa”.  Em outro front, ele conseguiu que o Senado tente um caminho mais rápido para a aprovação da prisão em segunda instância. Em vez de uma emenda constitucional como quer a Câmara, a alteração seria por projeto de lei, mudando o Código de Processo Penal (CPP). A presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Simone Tebet decidiu pautar a votação do projeto de lei na próxima terça-feira, na reunião da CCJ.

Além de precisar de menos votos do que uma emenda constitucional, a mudança do CPP pode ser terminativa na própria CCJ, sem ir a plenário. Na Câmara, o projeto também pode ser aprovado apenas pela CCJ, a não ser que uma décima parte do total da Câmara ou do Senado peça que o assunto vá ao plenário.  É provável que já no Senado haja esse pedido, pois bastam 8 senadores para isso. Mas a aprovação parece garantida, já que a senadora Simone Tebet recebeu um documento com a assinatura de 43 senadores pedindo que o assunto fosse adiante, sem esperar a decisão da Câmara.

A aprovação na Câmara pode ser mais complicada, pois o presidente Rodrigo Maia defende a utilização de emenda constitucional, alegando que dá mais segurança jurídica. Como bastariam 51 deputados para exigir que o tema seja submetido ao plenário, é provável que isso aconteça. [para o presidente da Câmara evitar a insegurança jurídica - que é causada mais por decisões do Supremo do que do Congresso - é mais importante do que garantir a sociedade contra bandidos endinheirados, condenados em segundo grau, que permanecem em liberdade, aguardando julgamentos de recursos cujo objetivo feito é mais procastinatório.
Quanto mais complica, mais demora e mais tempo os bandidos permanecem em liberdade.]
O ministro Sérgio Moro defende a tese de que é possível tratar o assunto das duas maneiras, sem que o projeto de lei do Senado prejudique a emenda constitucional da Câmara.  A aprovação do pacote anticrime, que endureceu muito as penas e restringiu regalias para os criminosos mais violentos, poderá ser coroada com a mudança sobre a prisão em segunda instância, que era, talvez, o ponto mais importante do pacote.  Como “político hábil”, Moro não fez críticas aos parlamentares, e negou-se a comentar a possibilidade de vir a ser vice de Bolsonaro em 2022, alegando que o lugar é do General Mourão. Está disposto a prosseguir seu périplo pelo Congresso para angariar apoio na luta contra a violência nas cidades, tema que assumiu lugar de destaque em seu discurso. Promovido a símbolo do combate à corrupção, Moro parece buscar agora um outro patamar.

Merval Pereira, colunista - O Globo
 
 

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

A doutrina do Ministério Público – Editorial

O Estado de S. Paulo

A doutrina do MPF é e sempre deve ser exclusivamente a lei. A bíblia que vale para nortear sua atuação é a Constituição. Toda ação que dela se desviar é abuso.

Nos últimos cinco anos, desde a deflagração da primeira fase da Operação Lava Jato – e lá se vão 66 até o momento –, não foram poucos os editoriais publicados nesta página em louvor ao inestimável serviço prestado ao País pela força-tarefa composta por membros da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Receita Federal. Os números da maior operação de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro já realizada no Brasil são impressionantes e falam por si sós. Porém, muito mais importante do que os resultados tangíveis da Lava Jato foi o resgate da confiança dos brasileiros no primado da igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Este, sem dúvida, é o maior legado da operação.

Até o advento da Lava Jato, salvo raras exceções, a isonomia consagrada pela Constituição não passava de letra morta no imaginário da sociedade, sabedora de que as cadeias no Brasil, tradicionalmente, eram lugares destinados apenas aos criminosos negros e pobres. A realidade mostra que ainda não deixaram de ser, mas já é possível notar fissuras nesse muro até então intransponível para os mais abastados.

Coerente com seu compromisso centenário de defender a lei e a liberdade acima de tudo, o Estado também não se furtou de apontar neste mesmo espaço os desvios legais cometidos por alguns membros da força-tarefa da Lava Jato e do Poder Judiciário em nome do combate à corrupção e de uma suposta “depuração” do País, cujo corolário mais nefasto foi a desqualificação da atividade política. Na inarredável defesa da lei e do devido processo legal, não raro o Estado foi de encontro à corrente de pensamento, por vezes majoritária, que defende a nobreza dos fins como forma de escamotear os vícios dos meios.


Mas de que valeria o combate à corrupção que há muito mantém o Brasil no atraso se o seu efeito colateral pode ser um mal tão ou mais pernicioso, o triunfo do Estado policialesco? [imperioso lembrar o óbvio: o Estado policialesco só assusta aos criminosos; 
as pessoas de BEM vivem até melhor sob o chamado 'estado policialesco', podem até ter algum direito suprimido, mas, que adianta ter um um lote imenso de direitos e não poder desfrutar deles? - impedidos pela criminalidade de todos os tipos = a criminalidade é nociva tanto quando um ladrão assalta, um vigarista aplica um pequeno golpe, ou temos um presidente da República ladrão.]

A Operação Lava Jato, ou ao menos a força-tarefa de Curitiba, a mais conhecida, está perto do fim. É bom que assim seja porque o que deve ser perene é o império da Constituição, das leis e do devido processo legal, não algumas operações específicas. Respeitadas as leis e garantido o devido processo pelo Poder Judiciário, não há mais razões para crer que o combate à corrupção sofrerá algum revés apenas porque a notória operação chegou ao fim. Esta, aliás, foi uma das muitas falácias usadas como pretexto para justificar alguns abusos cometidos no curso da Lava Jato.

Com a aproximação do fim da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba – que não tem muito tempo pela frente porque realizou o trabalho que tinha de realizar, não por qualquer outra razão –, noticia-se que seu mais famoso personagem, o procurador da República Deltan Dallagnol, negocia uma “saída honrosa” do front de combate à corrupção sem que isso sugira “desistência” ou “abandono” da coordenação da força-tarefa após a divulgação de controvertidas conversas privadas entre ele, outros membros do MPF e o então juiz federal Sérgio Moro.

A solução, de acordo com um grupo de procuradores ligados a Dallagnol, seria a criação de um grupo permanente de combate à corrupção, nos moldes dos Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) dos MPs estaduais. Deltan Dallagnol teria de solicitar ao Conselho Superior do Ministério Público sua promoção a procurador regional, de modo que possa coordenar esse “Gaeco” do MPF e, então, implementar a “doutrina” de combate à corrupção criada pela Lava Jato no novo órgão, de natureza permanente. [qualquer ação do Estado tem que ser impessoal - vincular tudo a Dallagnol seria tentar (em ação  fadada ao fracasso) criar o principio de que alguém é insubstituível.]

Ambas as iniciativas, tanto a criação de um “Gaeco” federal como a perpetuação da tal “doutrina lavajatista”, são uma temeridade. A doutrina do MPF é e sempre deve ser exclusivamente a lei. A bíblia que vale para nortear sua atuação é a Constituição. Toda ação que dela se desviar é abuso, é ilegalidade. A vingar a chamada “saída honrosa” nos moldes em que vem sendo anunciada, fica claro que o objetivo final de parte do MPF é continuar atuando à margem de qualquer tipo de controle, interno ou externo, pautado apenas pela consciência de alguns de seus ilustres membros na virtude de seus próprios desígnios.
Editorial - O Estado de S. Paulo