Presidente afirma que descartou decretar uma GLO para não transferir seu poder de governar a um general e que o fato de não ter porta quebrada no Palácio no domingo das invasões significa que “facilitaram” a entrada dos extremistas
O presidente disse que já conversou com os comandantes sobre o que entende como o papel dos militares e expôs sua contrariedade com o que Bolsonaro fez das Forças Armadas durante sua gestão. “Eu disse para eles que nunca imaginei que tivéssemos um presidente que tivesse sido expulso das Forças Armadas por má conduta e, ao assumir a presidência da República, tivesse criado um clima negacionista dentro das Forças Armadas”, disse.
Aos comandantes, Lula criticou o envolvimento das Forças Armadas no processo de fiscalização das urnas eletrônicas. ““Eu disse aos comandantes: o que explica uma comissão de general ir cuidar de urna eletrônica? Qual a lógica? Quem tem que cuidar da democracia são os partidos, a sociedade”.
“O cidadão negou chamar o Exército de Caxias, e passou a tratar como se fosse uma coisa dele. Esse cidadão conseguiu poluir as Forças Armadas”, disse Lula. “É como se tivesse dado um terremoto, mudou tudo de lugar. Bolsonaro mudou o comportamento de muita gente nesse País.”
O presidente se referia a um praça da ativa da Marinha que pregava a execução de petistas e participava do acampamento, enquanto estava lotado no Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Outro oficial da equipe de Heleno, da ativa do Exército, alardeava impunemente desobediência a Lula. A segunda referência foi a familiares do ex-comandante-geral do Exército general Eduardo Villas Bôas. “Esses acampamentos ficaram tanto tempo gritando ‘golpe, golpe’. Isso é democrático? Quem estava financiando, bancando ônibus, churrasco, almoço? Queremos descobrir. Isso coloca a democracia em risco. Vimos no acampamento mulher e filha de general gritando golpe. Isso não é normal. Eu disse aos comandantes e vou voltar a conversar com eles, temos que colocar um relacionamento civilizado e respeitoso”, disse Lula, na contramão de antigos comandantes da era Bolsonaro que defenderam em nota conjunta antecipada pelo Estadão a legalidade dos protestos.
“Não quero saber se um soldado qualquer votou no Bolsonaro ou Lula, se um general não votou no Lula. Minha preocupação é que quem participa de carreira de Estado tem que pensar e servir ao País, não pode ter lado. O lado deles é cumprir o que está garantido na Constituição como função de cada um de nós. E isso nós vamos fazer com que aconteça daqui para frente”, disse o presidente.
Dando a medida do clima de tensão entre o governo e os militares, o presidente contou que na noite do domingo, 8, após o ato de invasão e depredação do Congresso, do Planalto e do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF), com os vândalos dentro do acampamento na porta do QG do Exército, dois blindados foram colocados na avenida que dá acesso ao local impedindo a ação da polícia contra os extremistas. “Os tanques estavam protegendo o acampamento. O general me ligou dizendo para que não entrasse no acampamento de noite que era perigoso”, contou o presidente.
“Eu ainda não conversei com as pessoas a respeito disso. Eu estou esperando a poeira baixar. Quero ver todas as fitas gravadas dentro da Suprema Corte, dentro do palácio. Teve muito gente conivente. Teve muita gente da PM conivente. Muita gente das Forças Armadas aqui dentro conivente. Eu estou convencido que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar porque não tem porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui”, afirmou. O clima de desconfiança perdura no governo e, até o momento, Lula sequer conta com ajudantes de ordem militares.
Sobre a decretação da GLO para enfrentar os extremistas, Lula explicou porque descartou a medida que lhe foi apresentada como uma alternativa de ação do governo federal. As operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) são realizadas por ordem da Presidência da República e ocorrem nos casos em que há esgotamento das forças tradicionais de segurança pública. A GLO é regulada pela Constituição Federal e concede aos militares a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade. A proposta foi colocada na mesa do presidente pela Defesa e, segundo ele, recusada “na hora”.
“Se eu tivesse feito a GLO, eu teria assumido a responsabilidade de abandonar a minha responsabilidade. Aí sim estaria acontecendo o golpe que as pessoas queriam. O Lula deixa de ser governo para que algum general assuma o governo. Quem quiser assumir governo que dispute a eleição e ganhe. Por isso não quis fazer GLO. Nós tínhamos que fazer a intervenção na polícia do DF porque ela é a responsável pela segurança do DF e quem paga o salário deles somos nós do governo federal”.
O presidente descartou a possibilidade de demitir o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho. O cargo tem sido cobiçado pelo PT desde o período da transição e Múcio passou a ser criticado por defender publicamente o direito de manifestação dos acampados na frente dos quartéis. “Quem coloca ministro e tira sou eu. José Múcio vai continuar. Se eu tirar ministro cada vez que cometerem um erro vai ser a maior rotatividade de mão de obra do Brasil”, disse Lula.
Múcio foi nomeado para distender a relação entre os petistas e os militares. Antes mesmo da posse, o ministro negociou com os comandantes das três Forças para que não houvesse mudanças antes que os indicados por Lula assumisse os postos. O governo petista, que tinha outros nomes de sua predição para os comandos, acabou optando pela solução de nomear os oficiais-generais mais antigos.
No encontro com jornalistas, Lula disse que os ataques aos prédios públicos ocorridos no domingo, 8, são lição para o País de que o bolsonarismo extremista está vivo. E declarou que o bolsonarista fanático “não respeita ninguém”. “O que aconteceu foi alerta de que precisamos construir narrativas para tirar da cabeça de bolsonaristas raivosos de que são superiores ao resto da humanidade, do povo brasileiro, e apenas governar bem, e construir narrativas para restabeleça a paz tranquilidade e harmonia”, afirmou Lula.
“Estamos apenas há 12 dias no governo, nem terminamos ainda de montar o governo, até agora foram indicadas poucos, estamos fazendo uma triagem profunda. A verdade é que no Palácio estava repleto de bolsonaristas e militares e queremos corrigir por funcionários de carreira, de preferência civis que estavam aqui e foram transferidos para outro departamento para que se transforme num gabinete civil, numa Presidência da República com mais civilidade do que nos últimos quatro anos”, disse.
O presidente informou que o governo busca um acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU) para mobiliar de forma emergencial e reformar as residências vinculadas à Presidência. Ele disse que ainda acha que “vai levar um tempo” até se mudar de vez para o Palácio da Alvorada, porque reequipar o imóvel, atualmente, pode demorar 90 dias, dada a necessidade de realizar licitações. Por isso, o petista busca uma exceção junto ao TCU para as compras emergenciais. Ele reclamou que despachar de um hotel não é adequado para governar o País e revelou até ter recebido oferta de casas particulares.
Lula contou que foi visitar o Palácio da Alvorada e saiu de lá decepcionado. No seu primeiro mandato em 2003, antes de assumir, o petista conheceu as instalações ainda ocupadas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. “Fernando Henrique me levou para ver os quartos do jeito que ele saiu eu entrei sem problema. Agora estava tudo desarrumado, o sofá não tinha mais, o quarto não tinha mais cama. Não sei se eram coisas particulares do casal, mas levaram tudo. O Palácio está como se não tivesse sido habitado”, contou.
O petista disse considerar a situação sui generis por ele e a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, ainda não terem uma residência oficial disponível para morar em Brasília. Ela participou do café da manhã ao lado de Lula, do ministro Paulo Pimenta (Secretaria de Comunicação Social)
Segundo ele, outra residência oficial da Presidência, a Granja do Torto, que estava ocupada pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, também não está em condições de moradia e precisa de passar por reforma. “Estou cansado de ficar em hotel. Pessoas me ofereceram cassas. Não quero morar como se fosse um clandestino. Nunca antes nesse País o presidente da República não teve onde morar”, reclamou o presidente que está hospedado e despachando com a mulher e dois cachorros de estimação numa suíte presidencial em um hotel no centro de Brasília. “O Torto precisa ser recuperado, parece uma coisa abandonada, apesar de o Guedes estar morando lá, tem coisa deteriorada. Espero o mais rápido possível dar uma reparada para começar a frequentar o Torto”.
Política - O Estado de S. Paulo