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Mostrando postagens com marcador Ana Maria Machado. Mostrar todas as postagens
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sábado, 3 de setembro de 2016

Transparência e encenação

As imagens mostram quase tudo, mas em falsa transparência. Ocultam, por exemplo, as manobras de bastidores

Há alguns anos, Fernando Gabeira revelou que, sendo candidato petista, amadureceu a decisão de sair do partido quando, ao gravar um programa eleitoral, foi surpreendido por uma encenação coletiva em que políticos de ar sério e pastas na mão fingiam se consultar ou exibir papéis e projetos em gestos teatrais, como se estivessem trabalhando. Chocado com a farsa preparada para enganar os eleitores, pura casca sem substância, concluiu que não queria continuar participando daquilo.

Há menos de um mês, dia 19 de agosto, em entrevista à BBC, Lula afirmou que em seu governo o Brasil era um país mais rico do que a Inglaterra. A fanfarronice pode ter sido recebida com sorrisos zombeteiros de alguns ou gargalhadas francamente debochadas de outros, racionalmente incapazes de aceitar que agora sumiu de repente, como carruagem de Cinderela nas 12 badaladas, esse país tão rico que não chegou a ser visto, com a pobreza resolvida em nível britânico — em saneamento básico, saúde gratuita para todos, habitação popular, escola de qualidade, transporte de massa adequado e segurança pública que permita a qualquer cidadão andar tranquilamente em sua cidade a qualquer hora. Mas muita gente não estranhou e engoliu a balela numa boa. Outros nem ligam, relevam a bazófia, gabolice que não prejudica ninguém e se repete há tanto tempo que já anestesiou os ouvintes. Tudo bem, a crença é livre. Acredite quem quiser. Com fé religiosa não se discute — é um fervor poderoso que opera em outra esfera, capaz de aceitar todos os milagres e promessas, inocências e santidades.

A dificuldade começa quando o fiel religioso é chamado a ser eleitor. A distinguir transparência de jogo de cena. Ainda mais em dias dramáticos como estes, em que uma presidente eleita por 54 milhões de votos é impedida por um congresso eleito por 140 milhões. Essa legitimidade de parte a parte só aumenta a exacerbação dos ânimos, já esgotados por processo tão longo. Sucedem-se momentos exaltados — de xingamentos de canalha e golpista a uma estarrecedora confissão do presidente de um Poder cobrando de senadora por favores oriundos de gestões indevidas junto a outro Poder. Câmeras guardam as imagens que para elas exibem os participantes, cada um buscando seu melhor ângulo e maior protagonismo na construção do personagem que deseja impingir à história ou à campanha eleitoral futura — não apenas diante de jornalistas, mas também de ficcionistas, mais uma vez desprezando fronteiras entre documento e circo, transparência e encenação. Mais que o fato, importa é “a disputa pela versão dos fatos”, como explicitou o líder petista no Senado. Sair bem na foto, no filme, no livro. As imagens mostram quase tudo, mas em falsa transparência. Ocultam, por exemplo, as manobras de bastidores pelo fatiamento da decisão, de modo a garantir que congressistas (como Cunha ou Renan, para só citar as estrelas) sejam também beneficiados no futuro. Ou que daqui a pouco a presidente defenestrada possa driblar a Justiça e pular para dentro de casa outra vez, pela janela do foro privilegiado.

Não é a primeira vez que os holofotes midiáticos atuam nesse jogo. Um dos momentos mais emblemáticos a que a nação assistiu, no impeachment do Collor, foi propiciado pelo então presidente do STF, Sidney Sanchez: tendo recebido um envelope lacrado do presidente da República, em pleno exercício de suas funções, deixou para abri-lo ao vivo durante o “Jornal Nacional” e leu , para microfones e câmeras, o texto em que Collor destituía seu advogado. Não se sabe se sob comando de um diretor de cena quanto ao ângulo ideal ou à melhor luz.

A diluição desses limites entre realidade e espetáculo também está presente nas sucessivas discussões sobre vazamentos e não apenas aqui e agora. Lá fora, basta lembrar os questionamentos envolvendo Julian Assange ou Edward Snowden (logo transformados em heróis de filmes ) e suas explosivas revelações, do tipo “doa a quem doer”. No Brasil, temos um exemplo didático: o do agora sumido procurador Luiz Francisco de Souza, que no governo FH consagrou o obsessivo processo chamado de “escandalização do nada” e falsos vazamentos, ao fazer denúncias semanais que logo ecoavam na mídia, provocando investigações que eram arquivadas em seguida por falta de base, mas enlameavam nomes e davam origem a acusações de “engavetamento geral”.

Para evitar manipulações ocultas, a cada vazamento cabe desconfiar e perguntar a quem serve a divulgação daquele rumor ainda sem provas. Analisar quem se beneficia com aquela “informação” assim plantada e coberta pela impunidade garantida pelo sigilo da fonte. Lembrar que a cada plantação anônima corresponde uma futura colheita. E a safra anunciada pode apenas ser a mentira de uma erva daninha trazendo riscos para a tenra planta da democracia, regime ideal ainda que imperfeito. Sempre ameaçado por aqueles que, dos bastidores, confundem iluminação ou transparência com sombras e jogo de cena. Olho neles.

Fonte: Ana Maria Machado, escritora

sábado, 19 de setembro de 2015

É bom melhorar

Contestar as trapalhadas dos governantes que nos levaram a este atual estado é uma forma de amar o Brasil

Com todo o respeito, peço desculpas por discordar da senhora presidente. Não consigo mais ouvir calada essa história de que quem sofre com a situação atual, quem se aflige com os rumos do país, perde o sono e se angustia a cada instante com o descalabro que estamos vivendo, enfim, quem ama nossa terra faz parte do “pessoal do quanto pior melhor”, como reiteradamente ela nos acusa. Para quase todos nós, se continuar piorando só fica mais doloroso mesmo, e tudo o que queremos é que as coisas melhorem. De verdade e para valer, sem ilha de fantasia, sem slogan, sem mentirada de marqueteiro em programa eleitoral. Considerando que a rejeição à presidente anda nas nuvens, e sua aprovação está no fundo do poço, não é exagero afirmar que para a grande maioria da população brasileira, quem está fazendo tudo a seu alcance para que as coisas piorem cada vez mais é o governo. Se é que tamanho desgoverno pode assim ser chamado.

Quem perdeu a credibilidade e produz instabilidade é o comportamento errático e randômico, imprevisível e ilógico dos que deviam governar o país, e com essa obrigação foram eleitos. Para isso, ganharam nas urnas, embora atestassem sua cegueira para a realidade ao recusar o que mostravam todos os índices, os inúmeros jornalistas agredidos por isso, qualquer economista que não fosse de suas hostes e até mesmo o singelo relatório da pobre analista do Santander — cuja cabeça teve de ser sacrificada às certezas descoladas dos fatos, sempre prontas a xingar a matemática, acusando-a de neoliberal ou rudimentar. 

Quem piora a situação quando cala ou quando fala é o descontrole nascido da irresponsabilidade, da falta de transparência e da teimosia em fingir que sabe tudo para esconder a incompetência, juntando tudo isso num jogo de improviso permanente, que a cada instante volta atrás e desdiz o que disse, partindo para outra.  Basta ver quem foi que há pouco enviou ao Congresso uma proposta de orçamento deficitário, num movimento a meio caminho entre a chantagem aos parlamentares e o alerta às agências de classificação de risco para o tamanho da paralisia oficial. Consumada a perda do grau de investimento, consequência lógica, quem lançou o balão de ensaio da volta da CPMF com a desculpa de financiar a saúde? Quem recuou em seguida? Quem daí a pouco voltou a trazer à mesa essa carta, dizendo então que era para a Previdência, em alíquota de 0,2%? Quem, horas depois, já falava em 0,38%, agora para dividir com os governadores, comprar sua eventual influência junto aos congressistas e estimular a irresponsabilidade fiscal nos estados? Quem no meio de tudo isso autoriza que o palácio renove sua prataria enquanto desautoriza o ministro da Fazenda, deixando-o ser atacado pelas bases do partido? Quem, do nada, a esta altura, deixa um quadro ligado ao MST interferir para reduzir a autonomia dos militares ou lhes tirar o controle sobre a formação de seus oficiais?  

Quem só sabe negociar com o Congresso lhe oferecendo mais do mesmo: prometer o que não vai cumprir e acenar com vantagens e verbas? Quem, em quase 13 anos no poder, não se mexeu para fazer qualquer reforma profunda num orçamento engessado, com gastos vinculados aos reajustes do salário-mínimo e uma previdência que só tinha alguma chance graças ao gatilho do demonizado fator previdenciário? Quem sempre acusou os outros de arrogantes, metidos a sabichões que podiam explicar tudo, mas jamais se deu ao trabalho de pedagogicamente explicar à população a situação da Previdência nem mostrar que acabar com privilégios, pensões imerecidas e outros abusos não pode ser confundido com perda de direitos trabalhistas? Quem não convence mais nem consegue explicar nada (e por respeito não menciono a mandioca e outras gracinhas) pelo simples fato de que não consegue entender? Quem não percebe que o problema está na dívida pública crescente, nas despesas obrigatórias irreais, na política de estímulos de gastos, em nossos índices ínfimos de produtividade?

Mesmo discordando quanto aos remédios e tratamento deste pobre Brasil, não dá mais para ignorar os resultados dos exames nem se recusar a ver que pode ser correto o diagnóstico que eles apontam. Se o governo quer se suicidar, não pode exigir nossa cumplicidade nessa maluquice. Sabemos que a democracia foi conquistada a duras penas. A estabilidade da moeda também. Custa reconhecer? Contestar as trapalhadas dos governantes que nos levaram a este atual estado é uma forma de amar o Brasil: não é se identificar ao golpe de 64, nem servir à ditadura ou não ter história democrática, como ofensivamente quer fazer crer o líder do governo, nessa conversa de que a oposição quer cutucar a onça com vara curta. Isso não dá para admitir. É uma provocação. 

Bicho por bicho, já que a vaca foi pro brejo e estamos dando com os burros n’água, é bom se perguntar quem é a barata tonta, quem parece cabra-cega e quem é mesmo que está cutucando a onça desta nação com vara cada vez mais curta.

Por: Ana Maria Machado é escritora