Antifragilidade de Bolsonaro será posta em xeque
quando a campanha eleitoral começar oficialmente e a máquina de moer do sistema
acionar seus motores
É
conhecida a teoria — da obra de Nassim Taleb — da antifragilidade: a capacidade
de prosperar no caos, de se beneficiar da adversidade, de avançar enquanto se
imuniza, de se fortalecer sob pressão, aquela contra a qual a quase totalidade
dos indivíduos sucumbiria. O elemento antifrágil seria como massa de pão: mais
crescendo quanto mais socado.
Aplicar
esse conceito talebiano ao complexo corrente da disputa político-eleitoral
brasileira é uma esclarecedora obviedade. Não sou pioneiro. Outros analistas já
o fizeram, em função de Jair Bolsonaro e condicionados pela experiência em que
consistiu a campanha de Donald Trump nos EUA. Trump, porém, tinha o Partido
Republicano consigo, o que lhe valia, de partida, algo como 40% dos votos e uma
organização cuja capilaridade se estendia a todos os espaços do território
americano.
Aos olhos
de um observador desapaixonado, portanto, as chances de Trump vencer sempre
foram grandes — ou não será quase sempre irresistível uma liderança política
sustentada por um dos mais robustos pilares do establishment e ao mesmo tempo
percebida como outsider por um eleitorado cansado do establishment?
Impulsionado por essa improvável conjugação, Trump só precisou testar sua
carcaça antifrágil no curso das prévias republicanas. Uma vez escolhido pelo
partido, a rara circunstância que o blindaria como representante
antiestablishment desde dentro do establishment, com todas as vantagens de
dispor dessa engrenagem e não ser percebido como parte dela, pavimentaria seu
caminho à eleição.
Mas: e
Bolsonaro? A forma como sua resiliência se desdobra, ao longo já dos muitos
meses em que sua pretensão presidencial está exposta aos adversários, e o modo
como até aqui conseguiu — mesmo desprovido de lastro partidário — manter-se
como um dos pauteiros do debate público são provas de antifragilidade e
autorizam o crítico a sustentar que reúna, ou tenha exibido, mais genes de um
corpo antifrágil do que Trump.
O
verdadeiro teste para essa condição imune e mutante, contudo, ainda virá: a
antifragilidade de Bolsonaro será posta em xeque quando a campanha eleitoral
começar oficialmente e a máquina de moer do sistema acionar seus motores. Por
exemplo: quando os mais de dez mil vereadores de PMDB e PSDB mobilizarem a
musculatura desses tentáculos eleitorais — o próprio poder econômico — para
defender o status quo político.
É preciso
ter clareza sobre o que significaria a vitória presidencial de Bolsonaro: muito
mais do que comprovação de que o chão tradicional sobre o qual gente como eu
observara o processo eleitoral ora em curso já não existia enquanto lhe
pisávamos, representaria uma ruptura histórica perfeita, um evento de exceção,
o equivalente a rasgar o mapa eleitoral cindido progressivamente desde 1994 e
cristalizado a partir da primeira reeleição de Lula, em 2006 — o mesmo que apagar
de súbito a memória de milhões de brasileiros sobre o dualismo artificial
PT-PSDB em que se acomodaram a votar. A esse arranjo sedimentado, pouco
interessa que se diga, com razão, que expressivo contingente entre os que
votaram nos tucanos não o fizeram por convicção, mas em oposição ao petismo.
Não importa. Na hora H, repetidamente há anos, votou-se no PSDB. E isso tem
peso, recall.
Não há
novidade em que esse esquema seja desafiado por um terceiro elemento, vide
Marina Silva em 2014, que contava com consistente estrutura partidária herdada
de Eduardo Campos, de cuja morte dramática foi legatária — e que, ainda assim,
não tardaria a ser dilacerada pelo sistema. Sim. De acordo. Marina nunca foi
antifrágil. Bolsonaro — tudo indica — é. Será esse feitio, entretanto,
suficiente para que se mantenha competitivo sem o suporte das materialidades de
um partido com, por exemplo, centenas de prefeituras?
É preciso
propor graus e nuances — pensar em camadas e sobreposições — para a melhor
aplicação da teoria talebiana ao contexto eleitoral brasileiro. É um equívoco
fulanizar a antifragilidade. Se não resta dúvida de que Bolsonaro seja o
primeiro candidato antifrágil numa eleição brasileira desde que o atual modelo
eleitoral se plantou, em 1994, dúvida tampouco há de que enfrentará — eis o
ponto — aquele, onipresente, que é a mais perfeita composição antifrágil: o
establishment. [já ocorreram situações em que o establishment foi derrotado e nada impede que se repita com Bolsonaro.
O que mais se percebe são longas dissertações tentando diminuir Bolsonaro e ele reage tal qual 'massa de pão'.
O que mais se percebe são longas dissertações tentando diminuir Bolsonaro e ele reage tal qual 'massa de pão'.
A dúvida permanece: Bolsonaro ganha as próximas eleições já no primeiro turno ou haverá necessidade de um segundo?
As chances de Temer, sem coragem para modificar o status da intervenção federal no Rio de 'intervenção meia-sola' para 'intervenção total', faz que as chances de Bolsonaro só cresçam.
Uma intervenção que dá prioridade a seguir os conselhos dos grupos pró direitos humanos de bandidos não tem chance de prosperar.]
Não será
o sistema político o antifrágil estrutural e soberano? Não será, mais uma vez a
se manifestar na polarização controlada PT-PSDB? O que seria o decreto da
intervenção federal no Rio de Janeiro senão a resposta, de natureza antifrágil,
com que a máquina se recompõe depois de duas denúncias contra o presidente?
Alguém dirá que Temer não saiu mais forte da crise? Para onde vai a voz do dinheiro
— do mercado financeiro — de São Paulo senão para quem governa o estado há duas
décadas? [e que agora perdeu o controle da situação: PIB subiu no telhado; intervenção federal nada fez até agora, exceto se esforçar para agradar a turma que defende direitos pró bandidos.]
Essa é a
antifragilidade sem face de que o antifrágil Bolsonaro é desafiante. Apenas um
sobreviverá.
Carlos
Andreazza é editor de livros - O Globo