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terça-feira, 20 de março de 2018

Antifrágil



Antifragilidade de Bolsonaro será posta em xeque quando a campanha eleitoral começar oficialmente e a máquina de moer do sistema acionar seus motores 

É conhecida a teoria da obra de Nassim Taleb — da antifragilidade: a capacidade de prosperar no caos, de se beneficiar da adversidade, de avançar enquanto se imuniza, de se fortalecer sob pressão, aquela contra a qual a quase totalidade dos indivíduos sucumbiria. O elemento antifrágil seria como massa de pão: mais crescendo quanto mais socado.

Aplicar esse conceito talebiano ao complexo corrente da disputa político-eleitoral brasileira é uma esclarecedora obviedade. Não sou pioneiro. Outros analistas já o fizeram, em função de Jair Bolsonaro e condicionados pela experiência em que consistiu a campanha de Donald Trump nos EUA. Trump, porém, tinha o Partido Republicano consigo, o que lhe valia, de partida, algo como 40% dos votos e uma organização cuja capilaridade se estendia a todos os espaços do território americano.

Aos olhos de um observador desapaixonado, portanto, as chances de Trump vencer sempre foram grandes — ou não será quase sempre irresistível uma liderança política sustentada por um dos mais robustos pilares do establishment e ao mesmo tempo percebida como outsider por um eleitorado cansado do establishment? Impulsionado por essa improvável conjugação, Trump só precisou testar sua carcaça antifrágil no curso das prévias republicanas. Uma vez escolhido pelo partido, a rara circunstância que o blindaria como representante antiestablishment desde dentro do establishment, com todas as vantagens de dispor dessa engrenagem e não ser percebido como parte dela, pavimentaria seu caminho à eleição.

Mas: e Bolsonaro? A forma como sua resiliência se desdobra, ao longo já dos muitos meses em que sua pretensão presidencial está exposta aos adversários, e o modo como até aqui conseguiu — mesmo desprovido de lastro partidário — manter-se como um dos pauteiros do debate público são provas de antifragilidade e autorizam o crítico a sustentar que reúna, ou tenha exibido, mais genes de um corpo antifrágil do que Trump.

O verdadeiro teste para essa condição imune e mutante, contudo, ainda virá: a antifragilidade de Bolsonaro será posta em xeque quando a campanha eleitoral começar oficialmente e a máquina de moer do sistema acionar seus motores. Por exemplo: quando os mais de dez mil vereadores de PMDB e PSDB mobilizarem a musculatura desses tentáculos eleitorais — o próprio poder econômico — para defender o status quo político.

É preciso ter clareza sobre o que significaria a vitória presidencial de Bolsonaro: muito mais do que comprovação de que o chão tradicional sobre o qual gente como eu observara o processo eleitoral ora em curso já não existia enquanto lhe pisávamos, representaria uma ruptura histórica perfeita, um evento de exceção, o equivalente a rasgar o mapa eleitoral cindido progressivamente desde 1994 e cristalizado a partir da primeira reeleição de Lula, em 2006 — o mesmo que apagar de súbito a memória de milhões de brasileiros sobre o dualismo artificial PT-PSDB em que se acomodaram a votar. A esse arranjo sedimentado, pouco interessa que se diga, com razão, que expressivo contingente entre os que votaram nos tucanos não o fizeram por convicção, mas em oposição ao petismo. Não importa. Na hora H, repetidamente há anos, votou-se no PSDB. E isso tem peso, recall.

Não há novidade em que esse esquema seja desafiado por um terceiro elemento, vide Marina Silva em 2014, que contava com consistente estrutura partidária herdada de Eduardo Campos, de cuja morte dramática foi legatária e que, ainda assim, não tardaria a ser dilacerada pelo sistema. Sim. De acordo. Marina nunca foi antifrágil. Bolsonaro — tudo indica — é. Será esse feitio, entretanto, suficiente para que se mantenha competitivo sem o suporte das materialidades de um partido com, por exemplo, centenas de prefeituras?

É preciso propor graus e nuances — pensar em camadas e sobreposições — para a melhor aplicação da teoria talebiana ao contexto eleitoral brasileiro. É um equívoco fulanizar a antifragilidade. Se não resta dúvida de que Bolsonaro seja o primeiro candidato antifrágil numa eleição brasileira desde que o atual modelo eleitoral se plantou, em 1994, dúvida tampouco há de que enfrentará — eis o ponto — aquele, onipresente, que é a mais perfeita composição antifrágil: o establishment. [já ocorreram situações em que o establishment foi derrotado e nada impede que se repita com Bolsonaro.
O que mais se percebe são longas dissertações tentando diminuir Bolsonaro e ele reage tal qual 'massa de pão'.
A dúvida permanece: Bolsonaro ganha as próximas eleições já no primeiro turno ou haverá necessidade de um segundo?
As chances de Temer, sem coragem para modificar o status da intervenção federal no Rio de 'intervenção meia-sola' para 'intervenção total', faz que as chances de Bolsonaro só cresçam.
Uma intervenção que dá prioridade a seguir os conselhos dos grupos pró direitos humanos de bandidos não tem chance de prosperar.] 
 
Não será o sistema político o antifrágil estrutural e soberano? Não será, mais uma vez a se manifestar na polarização controlada PT-PSDB? O que seria o decreto da intervenção federal no Rio de Janeiro senão a resposta, de natureza antifrágil, com que a máquina se recompõe depois de duas denúncias contra o presidente? 

Alguém dirá que Temer não saiu mais forte da crise? Para onde vai a voz do dinheiro — do mercado financeiro — de São Paulo senão para quem governa o estado há duas décadas? [e que agora perdeu o controle da situação: PIB subiu no telhado; intervenção federal nada fez até agora, exceto se esforçar para agradar a turma que defende direitos pró bandidos.]
Essa é a antifragilidade sem face de que o antifrágil Bolsonaro é desafiante. Apenas um sobreviverá.

Carlos Andreazza é editor de livros - O Globo

terça-feira, 7 de novembro de 2017

A fábrica de isentões

A facção justiceira da Lava-Jato, de inspiração jacobina, será já é — a principal agente eleitoral brasileira para 2018, cujo alcance para influir se tornou senhor da decisão sobre quem poderá ou não concorrer no ano que vem. Mas os efeitos da cultura acusadora que plantou entre nós — essa que condena publicamente indivíduos nem sequer denunciados — por muito tempo permanecerão. Reúno-os sob o título de “renovação política” — algo que devemos perseguir desesperadamente, ao menos de acordo com quase todas as revistas jornalísticas nacionais.

A propósito, viciado na adrenalina folhetinesca dos últimos meses, mesmo o jornalismo terá de se reencontrar com a capacidade de investigar — desintoxicando-se do comodismo de ser mero veiculador de vazamentos seletivos, hábito barato e de repercussão tão espetacular quanto (não raro) irresponsável, o que o coloca na incômoda posição de ventilador acrítico para a circulação de interesses de parte do Estado.  O Brasil é um país doente, mas que prefere se medicar com cosméticos; que define o que quer destruir sem refletir sobre o que haveria como alternativa. Por exemplo: em vez de reformar, com rigor, o sistema de financiamento empresarial de campanhas eleitorais, optou por dinamitá-lo, daí porque — não havia outro destino — já nos afundamos no atraso por meio do qual o Estado bancará as eleições.

Esse é o verdadeiro extremo que nos ameaça. O das escolhas radicalmente popularescas, que jogam para a galera e que de súbito fazem herói, paladino na luta contra os criminosos de colarinho branco, aquele juiz que anteontem criara as condições para que José Dirceu pudesse ser hoje, em liberdade, articulador oculto do projeto de reerguimento eleitoral do petismo. Esse é o extremismo palpável que perturba o país. O das soluções ultra burras, que ignoram nuances e possibilidades de aperfeiçoamento, e jogam na lama os fundamentos da democracia representativa tão arduamente erguidos. E o que haverá como alternativa?

Ao igualar crimes de naturezas e gravidades diversas — como se o assalto ao Estado para financiar um projeto de permanência no poder pudesse ser comparado ao roubo que enriquece fulano e sicrano — e assim ceifar cabeças indistintamente, à revelia dos processos judiciais, e ao se transformar em pauteira-mor do jornalismo no Brasil, editando e distribuindo o enredo por meio do qual se informa que política é exercício para bandidos, a divisão janotista da Lava-Jato, a que tentou limitar o direito ao habeas corpus, contribuiu decisivamente para a criminalização da vida pública neste país, circunstância a partir da qual se desenrolam consequências reais, orgânicas, como a reencarnação competitiva de Lula, reabilitado pela fabulosa multiplicação de chefes de quadrilha, e artificiais, como a requentada ideia de que a solução para a política se encontra fora da política, no desprezo pela representação partidária, essa sendo a matéria deste artigo.

Ou o leitor não terá notado que querem nos vender, como tendência, a ascensão irresistível de movimentos suprapartidários — bancados por ricaços culpados — dispostos a investir em candidatos com perfil para Macron brasileiro?  O troço é tão falso quanto ardiloso. Uma fábrica de isentões cujo produto correrá para se declarar nem de direita nem de esquerda, porque acima — logo explicará — dessa dicotomia ultrapassada; mas que se apresentará com um programa que desfila a própria cartilha esquerdista para o século XXI, apenas domesticada por concessões liberais na economia: desarmamento, legalização do consumo de drogas e pregação abortista etc., tudo, porém, amortecido pelo compromisso com o tripé macroeconômico. Ou seja: uma indústria reprodutora de Obamas a serem comerciados como Macrons. Não há, no entanto, novidade alguma nisso; a não ser o fato de que Marina Silva teria concorrentes no planeta Melancia — caso típico de quando a oferta supera em muito a demanda.

Aí está o que chamam de renovação política; mas que outra coisa não é que imposição do apolítico, paraíso para o desenvolvimento de personalismos — como Luciano Huck. Erra, pois, quem avalia que a recente aceleração da campanha que pretende forjar, por meio do estigma de extremistas, uma polarização entre Lula e Jair Bolsonaro tenha a intenção de beneficiar, franqueando-lhe o terreno do centro (no caso, da centro-direita), algum nome tradicional, como Geraldo Alckmin — já rotulado de velha política pela mesma narrativa renovadora. Esses movimentos — isto, sim — trabalham para que um outsider, embalado como desprovido de caráter ideológico, encarne e capitalize uma percepção difusa de centro equilibrado. Esse é o campo que querem alargar e preencher: o do nem-nem.

Quebrarão a cara. Entre outras razões, em decorrência de uma premissa fundamental ainda pouco examinada, a se verificar tanto mais em período eleitoral: quando alguém chama, por exemplo, Bolsonaro de extremista, chama de extremista igualmente seu eleitore também aquele, até então indeciso, que concorda com uma ou outra ideia do candidato.  Goste-se ou não do que representam, os nossos — segundo a butique — extremistas, precisamente porque fazem política, crescem como massa de pão, quanto mais lhes batem. Isso dá notícia não sobre eles, mas sobre o eleitor. Que tem lado. E quer lado.


O Globo - Carlos Andreazza