Carlo Cauti
O principal problema do arcabouço fiscal é simples: a conta não fecha. E isso segundo os próprios cálculos apresentados pelo governo
Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, em entrega do projeto do novo arcabouço fiscal
para o Congresso (18/4/2023) | Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados
“O novo arcabouço fiscal [na prática será um calabouço fiscal] demandará um aumento permanente e bastante alto da carga tributária.” Marcos Lisboa, ex-secretário de Política Econômica e ex-presidente do Insper, não poderia ser mais claro em comentar os efeitos da nova regra das contas públicas que substituirá o atual Teto de Gastos.
O economista discursou no dia 23 de maio durante um almoço com a Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE). O alerta sobre mais impostos à vista para os cidadãos brasileiros, todavia, não adiantou. Poucas horas depois o texto-base do arcabouço fiscal foi aprovado pelos representantes do povo na Câmara dos Deputados com 372 votos a favor e 180 contra.
Uma maioria esmagadora. Entre eles, muitos deputados da própria FPE, como Greyce Elias (Avante/MG), Keniston Braga (MDB/PA) e Augusto Coutinho (Republicanos/PE). Até mesmo 30% dos deputados do Partido Liberal (PL), ao qual é filiado o ex-presidente Jair Bolsonaro, votaram a favor do arcabouço. A orientação explícita do partido para votar contra foi sumariamente ignorada.publicidade
Duas opiniões unem quase todos os economistas do Brasil em relação ao arcabouço fiscal. A primeira é a falta de clareza nas complicadas regras que redigirão o orçamento federal. A segunda é justamente o alerta feito por economistas como Lisboa: o risco de aumentar ainda mais o peso dos tributos na vida dos já sobrecarregados cidadãos brasileiros.
O principal problema do arcabouço fiscal é simples: a conta não fecha. E isso segundo os próprios cálculos apresentados pelo governo.
Os gastos públicos previstos para os próximos anos são de tal magnitude que apenas um brutal incremento de impostos poderá encontrar os recursos necessários para financiar tamanho esbanjo. “Esse arcabouço está completamente desequilibrado em relação aos gastos e não racionaliza as receitas”, disse à Revista Oeste Raul Velloso, consultor, especialista em contas públicas e presidente do Fórum Nacional Inae. “O foco não está sendo nos gastos. E seria necessário olhar os gastos, entender o que ocorreu com eles no passado e inseri-los em um sistema de controle eficaz.”
O economista explica como o arcabouço fiscal permite um aumento das despesas acima da inflação, entre 0,6% e 2,5%, ao contrário do Teto de Gastos, que previa um aumento no máximo igual à inflação do ano anterior.
O Senado furou o arcabouço fiscal
A prova disso foi a aprovação do texto no Senado Federal na quarta-feira, 21, no qual os senadores fizeram quatro principais mudanças em relação ao texto aprovado pelos deputados. Foram retirados dos limites fiscais o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o Fundo Constitucional do Distrito Federal, e despesas com ciência, tecnologia e inovação.
A mudança não foi negociada com o deputado federal Cláudio Cajado (PP-BA), relator do texto na Câmara, e vai impor o retorno para a votação dos deputados. Além disso, o maior problema dessa mudança é a ausência de critérios sobre o que seriam despesas com ciência, tecnologia e inovação. Em tese, o governo poderá incluir qualquer despesa dentro dessas rubricas, burlando o limite de gastos. Sem contar que essas despesas poderão crescer sem qualquer restrição, levando ao caos na contabilidade federal.
O texto que chegou ao Senado, na verdade, já era muito melhor em relação ao que tinha sido enviado à Câmara pelo governo.
Cláudio Cajado incluiu uma série de gatilhos automáticos para conter o esbanjamento de gastos públicos em caso de excesso de despesas.
Por exemplo, proibindo a criação de novos cargos públicos, realização de concursos, alteração de carreiras, aumento salarial de servidores, concessão de benefícios fiscais, entre outros.
A inclusão desses “freios de emergência” no documento animou o mercado. Exatamente por isso, no dia da aprovação do arcabouço, o Ibovespa, principal índice da Bolsa de Valores de São Paulo, fechou em alta de mais de 1%. “O mercado ficou mais tranquilo com esse documento”, explicou Tiago Sbardelotto, economista da XP. “As incertezas sobre a disciplina fiscal diminuíram. Não é uma regra perfeita, mas melhor uma regra que estar sem regras.” Não por acaso, após a aprovação do arcabouço, o Ibovespa acumulou uma série de pregões positivos, registrando uma valorização de mais de 10% no mês de junho.
Rombo pela frente
Mas o maior empecilho para fechar as contas públicas se origina nas políticas do PT.
Mas o maior empecilho para fechar as contas públicas se origina nas políticas do PT.
Um dos cavalos de batalha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre foi o aumento real do salário mínimo, política implementada durante seus primeiros dois mandatos, e que ele quer propor novamente na terceira passagem pelo Palácio do Planalto.
Só que um aumento real do mínimo provoca uma indexação em cascata, principalmente em gastos da Previdência Social.
Além disso, outras propostas do governo são o reajuste real do salário dos servidores públicos e a indexação dos custos de saúde e educação à receita corrente.
Uma desenfreada ciranda de despesas públicas que relembra os trágicos mandatos da ex-presidente Dilma Rousseff. Ela pode ter sofrido impeachment, mas sua máxima “gasto público é vida” evidentemente ainda circula vigorosa pelos gabinetes de Brasília. Gerando o mesmo resultado: desequilíbrio fiscal. Para financiar todos esses passivos o governo precisará de, pelo menos, R$ 150 bilhões por ano. O equivalente ao orçamento total do Bolsa Família para 2023.
Para o economista Marcos José Mendes, pesquisador associado do Insper, as novas regras previstas no arcabouço fiscal “são incompatíveis” com essas políticas de aumento maciço de gastos públicos. “Vai ser preciso aumentar a receita em um valor maior do que a União recebe hoje de imposto de renda líquido. Isso não se faz só acabando com subsídios tributários, “jabutis” e lacunas da legislação fiscal. Isso exigirá um aumento muito forte de carga tributária, que é bastante prejudicial ao crescimento econômico”, disse ele.
A gastança já começou
A gastança, na verdade, já começou antes mesmo da aprovação do arcabouço. Um dia antes da votação do texto, os Ministérios do Planejamento e da Fazenda pioraram a previsão de déficit primário para 2023, passando de R$ 107,6 bilhões para R$ 136,2 bilhões, o equivalente a 1,3% do PIB. Contando os juros da dívida pública, o orçamento deste ano vai fechar com um déficit de R$ 228,1 bilhões. Um valor superior ao rombo registrado em 2016, último ano do governo de Dilma, quando o vermelho foi de R$ 155,7 bilhões.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prometeu diminuir essa voragem de dinheiro público com medidas que definiu como “recomposição de receitas”. Em bom português, aumento de impostos. Os membros do Executivo insistem no malabarismo intelectual de que seria possível “aumentar a arrecadação sem aumentar a carga tributária”. Isso, dizem, seria possível graças a um aumento simultâneo do PIB, que diluiria o efeito da maior retirada de recursos da população por parte do Leão. Para eles seria possível aumentar a receita sem criar novos impostos ou pesar em alíquotas de impostos já existentes. Basicamente, o PT diz ter descoberto a fórmula do moto-contínuo nas finanças públicas.
Obviamente, isso não vai ocorrer. Mas a bulimia fiscal do governo persiste. Por isso, Haddad já está preparando um revogaço de benefícios fiscais concedidos no passado, principalmente, para empresas. Por sinal, concedidos em grande parte durante governos do próprio PT, como forma de alavancar o PIB. Só que eles entregaram a pior crise econômica da história do Brasil.
Com o revogaço dos benefícios fiscais, a Fazenda estima uma receita extra de R$ 300 bilhões. Para a maioria dos analistas, se chegar no máximo à metade desse valor, poderá ser considerado um sucesso. Nesse bolão estão, por exemplo, o Simples Nacional e a Zona Franca de Manaus. Vacas sagradas intocáveis até pelo governo Lula.
Sem contar que muitas empresas só aceitaram se instalar no Brasil por causa desses incentivos, os quais compensam, em parte, a baixa competitividade do sistema Brasil. Sem esses descontos nos impostos, essas empresas simplesmente fechariam as portas. Com aumento consequente do desemprego e redução ulterior da receita tributária.
“Sem esses recursos, a conta não vai fechar”, afirma Tiago Sbardelotto. “Há um grande caminho pela frente. Tanto que o governo já anunciou que imediatamente na sequência da aprovação do arcabouço vai propor novas medidas de arrecadação tributária. O secretário da Receita foi muito firme em dizer que há um plano A, B, C e D para aumentar a arrecadação. No final teremos um aumento de carga tributária.”
Caça à receita e “estratégia do salame”
Durante uma entrevista concedida em abril, o próprio Haddad admitiu que precisa de R$ 110 milhões a R$ 150 bilhões de incremento permanente de receita para viabilizar o arcabouço. Se não conseguir arrecadar esse valor, a nova regra fiscal não vai parar de pé. Por isso, logo que o Executivo tomou posse, começou em Brasília uma verdadeira “caça à receita”, com a invenção de novas modalidades de prelevo de recursos do bolso dos brasileiros.
O governo está sendo forçado a recorrer à “estratégia do salame”. Cada dia um imposto novo. Porém pequeno. Pouco visível. Que afete somente partes da sociedade, sem que seja percebido por toda a população
“Com um arcabouço com esse, a ênfase se torna a arrecadação. Só que desse jeito o país perde ulteriormente a competitividade. Já somos o país emergente com a maior carga tributária do mundo. É difícil até imaginar o que o governo tem em mente. E o brasileiro não aguenta mais impostos”, explica Velloso.
Uma das soluções mais rápidas seria cobrar imposto de renda sobre lucros e dividendos, atualmente isentos. Sozinha, essa medida garantiria uma arrecadação de pelo menos R$ 54 bilhões de reais. Mas provocaria furor e indignação na Faria Lima, onde há muitos figurões do mercado financeiro que votaram em Lula em 2022. Em um momento de fuga das pessoas físicas da Bolsa de Valores, a criação de um ônus dessa proporção seria a pá de cal na compra de ações por parte delas. Sem esse fluxo comprador, muitas corretoras e casas de análise não teriam mais razão de existir.
Por isso, o governo está sendo forçado a recorrer à “estratégia do salame”. Cada dia um imposto novo. Porém pequeno. Pouco visível. Que afete somente partes da sociedade, sem que seja percebido por toda a população. Entre outras, é o caso da taxação das apostas eletrônicas, que tinha como objetivo inicial arrecadar entre R$ 12 bilhões e R$ 15 bilhões por ano. Ou a taxação das compras on-line de produtos do exterior, as famosas “blusinhas da Shein”, que mira obter de R$ 7 bilhões a R$ 8 bilhões. Ou, ainda, a criação de um novo imposto sobre a exportação de petróleo bruto, que deveria garantir aos cofres públicos cerca de R$ 6,6 bilhões.
Nenhuma
dessas soluções é definitiva. São apenas paliativos, que mostram o
quanto o governo está desesperado em busca de dinheiro.
Mas o problema maior é que nenhuma dessas soluções conseguiu se concretizar. No caso da Shein, sendo acusada por Haddad de “contrabando”, o governo deu marcha à ré por ordem explícita de Janja, que percebeu a avalanche de críticas nas redes sociais. A desaprovação veio principalmente do eleitorado tradicional do PT, as classes menos abastadas, que mais se beneficiam com o baixo preço das roupas compradas pela plataforma chinesa. Resultado: arrecadação zero.
No caso da taxação das apostas eletrônicas, a cobrança é quase impossível, já que a maioria dessas empresas estão sediadas fora do Brasil, em paraísos fiscais como Aruba ou em países onde existem tratados de não bitributação. Resultado: dos R$ 15 bilhões previstos inicialmente, o governo espera obter no máximo R$ 2 bilhões.
No caso do imposto sobre a exportação de petróleo, criado por meio de uma brecha legal que permite não passar pelo Congresso Nacional, a frustração foi retumbante. Resultado: o governo arrecadou nos primeiros 60 dias somente R$ 21 milhões. Apenas 0,3% do esperado. E a vigência do imposto terminará, em tese, após 120 dias.
Tudo isso sem passar sequer pela aprovação do Congresso Nacional, onde a ausência de uma base aliada transformaria a aprovação de novos impostos em um verdadeiro Vietnã político.
Para evitar esse pântano, o governo chegou a renunciar a algumas medidas arrecadatórias.
Por exemplo, a Medida Provisória nº 1.160/2023, editada imediatamente após a posse de Lula, em janeiro, mudando as regras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o órgão que decide sobre as disputas envolvendo impostos e tributos. Com a nova MP, os conselheiros voltariam a ter os chamados “votos de qualidade”, eliminados no governo Bolsonaro. Ou seja, se o consumidor contestasse algum imposto na frente do Carf, o governo teria sempre a maioria dos votos, ganhando sistematicamente todos os processos e obtendo assim mais recursos. Em junho a MP caducou, e o Ministério da Fazenda não ousou propor a conversão em lei no Congresso Nacional. Mesmo significando a perda de bilhões de reais.
Pedido de socorro ao STF
Ao governo não sobrou outra alternativa senão recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF). Que, claro, prontamente o socorreu por meio de uma série de decisões que geraram rapidamente novas, e vultuosas, receitas. Mesmo que isso tenha significado atropelar princípios de civilização jurídica, como o conceito de “coisa julgada’.
Foi o caso dos Temas 881 e 885, em que os ministros concluíram, por unanimidade, que decisões judiciais tomadas de forma definitiva a favor dos contribuintes devem ser anuladas se, em seguida, o STF tiver entendimento diferente sobre o tema.
Mesmo se o próprio STF já tiver julgado o caso. Com essa decisão, retroativa até 2007 — ainda que cobranças de tributos caduquem após cinco anos —, a União obteve o direito de receber bilhões de reais de empresas brasileiras.
Uma avalanche de dinheiro que sequer o próprio governo soube quantificar. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) informou que “não há como calcular, a priori, o impacto econômico do julgamento”. Nada adiantou a indignação do mundo empresarial e de advogados de todo o Brasil, que alertaram sobre o risco de uma enorme insegurança jurídica. “Quem não pagou fez uma aposta”, respondeu o ministro Barroso. O mesmo autor do eterno “perdeu, mané, não amola”.
Mas a verdadeira bomba nuclear fiscal foi a decisão do STF que enquadrou os bancos na cobrança de PIS e Cofins sobre receitas financeiras.
Também nesse caso, foi incluído um retroativo entre 2000 e 2014. Somente essa decisão deveria gerar uma receita extraordinária de R$ 115 bilhões. Curiosamente, exatamente o valor necessário para o governo conseguir fechar as contas públicas. É obvio que o recurso ao STF, além de um claro perfil de ilegitimidade jurídica, é um expediente momentâneo, que não garante a estabilidade das contas públicas.
Com esse arcabouço fiscal o Brasil vai conviver com déficits maiores, que levarão a maiores necessidades de receitas, ou seja, mais impostos.
Reduzindo o crescimento futuro do Brasil e deixando o país menos competitivo.
Sem contar a perene tentação que o governo terá de financiar esses gastos com a impressão de mais dinheiro. [= aumento da inflação]
A independência do Banco Central do Brasil (BCB) impede essa deriva. Por enquanto. Não por acaso, ele se tornou o alvo favorito dos ataques petistas. Mas isso seria o passo definitivo em direção a uma argentinização da economia brasileira. Ou, pior, uma venezuelização.