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sábado, 20 de janeiro de 2018

Cabral acorrentado se torna um emblema da Lava Jato: é a suposição estúpida de que o fascismo dos meios levaria a um bom fim

A imagem de Sérgio Cabral em Curitiba, com os pés acorrentados, cercado de agentes federais com o rosto coberto, atinge o paroxismo da violência moral, da ilegalidade, do ato atrabiliário, do fascismo dos meios para a suposta virtude dos fins.

Há quanto tempo tenho chamado a atenção para os abusos praticados pela operação Lava Jato? Infelizmente, importantes setores da imprensa têm sido coniventes com eles. Já nem se diga a OAB nacional, rotineiramente de uma omissão escandalosa. Quando protesta, o faz de maneira tão frágil e covarde que melhor seria calar-se

Tanto bati que fui eu mesmo vítima daquilo que denunciava: como sabem, ou Ministério Público Federal ou Polícia Federal ambos em conluio? vazou uma conversa minha, ao telefone, com uma fonte, Andrea Neves. O intuito, obviamente, era me ligar a alguém que tinha tido a prisão preventiva decretada — em si, outro abuso, cumpre notar —, embora o diálogo nada tivesse a ver com a investigação nem sugerisse algo ilegal. Agredia-se, de forma desassombrada, uma garantia constitucional: o sigilo da fonte. Assim, a Lava Jato mandava um recado: “Não ousem discordar de nós ou nos criticar. Isso poderá custar caro”.

Ou o senhor ministro da Justiça, Torquato Jardim, determina que a Polícia Federal abra imediatamente uma investigação para apurar os abusos ou pode pedir demissão. Ou o delegado-geral da PF, Fernando Segóvia, toma ele mesmo providências ou também pode pegar o caminho da roça. E podem esperar coisa pior. Infelizmente, a troca de guarda na PF e no Ministério Público Federal foi irrelevante para fazer com que esses entes do Estado voltassem aos limites estritos da lei. Raquel Dodge, a procurador-geral, já é uma decepção. E não porque ela está deixando de fazer o que eu quero. Mas porque está permitindo, sem reação, que a corporação que comanda, por intermédio de alguns de seus próceres, jogue no lixo as leis, o decoro, o bom senso. Ainda volto a esse tema em particular. Estamos num caminho ruim e perigoso.

Não seja idiota, leitor amigo! Aplaudir a humilhação a que foi submetido Cabral corresponde a dar ao guarda do bafômetro a licença de lhe dar uns petelecos.
ATENÇÃO! INEXISTE PAÍS QUE MALTRATE SEUS PRESOS E TRATE BEM OS CIDADÃOS COMUNS.
ATENÇÃO! INEXISTE PAÍS QUE DISPENSE TRATAMENTO DIGNO A SEUS PRESOS E INDIGNO A SEUS CIDADÃOS.

Nas sociedades, o preso é um indicador do estado geral da saúde democrática. A razão é simples: aquele que está sob a guarda do Estado perdeu parte importante de sua autonomia, da capacidade de se autogerir, de tomar decisões sobre o próprio destino. O Estado toma para si tais atribuições — e assim tem de ser se houve a transgressão. Por isso mesmo, avaliar o que faz tal Estado com quem está sob a sua guarda corresponde a saber o tratamento que ele dispensa ao conjunto da população.

“Tá com peninha de Cabral?”, vomitam os idiotas. Não! Estou preocupado justamente é com esse fascismo dos meios que tem constituído a pedra de toque da Lava Jato. Ora, bolas! Fui ou não o primeiro a apontar que pelo menos quatro das dez medidas de Deltan Dallagnol contra a corrupção não faziam inveja a um regime fascista ou comunista? Fui ou não fui o primeiro na imprensa a bradar contra as prisões preventivas em avalanche, tornadas instrumentos de pressão para a delação premiada? Fui ou não fui o primeiro a protestar contra as conduções coercitivas, inclusive a de Lula, que, também elas, buscavam antes o ritual de humilhação do que a eficiência da operação?

Ao repetir aqui o “fui ou não fui o primeiro”, não estou reivindicando primazias e heroísmos. É que sei bem o que isso tudo me custou e me custa. Ou também não é sob saraivada de balas que escrevo sobre as aberrações da sentença de Sérgio Moro na condenação de Lula? Afinal, não sou de direita? Não sou anti-esquerdista? Não sou um dos mais antigos críticos do PT na grande imprensa? Sim, é tudo verdade! Mas a minha repulsa a esse partido deriva do fato de ser eu um liberal, um defensor incondicional da democracia e do estado de direito. Por essa razão, pouco me importa se a vítima da agressão é Sérgio Cabral, uma figura política pela qual sinto profundo desprezo, ou Luiz Inácio Lula da Silva, que pensa e encarna boa parte das coisas que repudio em política.

Ocorre que não são os meus adversários — e as vicissitudes que os colhem — a decidir o que penso ou deixo de pensar. O que penso ou deixo de pensar não muda a depender dos alvos da ação dos entes estatais. Em qualquer caso, eles têm, de se ater os limites da legalidade. E isso vale para todo mundo.  Ocorre que o país está se acostumando à violência institucional. Pergunta-se antes “quem” para depois procurar saber o “quê”. Uma das coisas que sempre repudiei no petismo, inclusive no curto período em que lá estive, é o relativismo moral; é a noção — para citar lateralmente um texto clássico das esquerdas — de que existem “a nossa moral” (que serve à “nossa luta”) e a “deles”. Segundo essa concepção, “nós, de esquerda, podemos fazer coisas contra eles que eles jamais fariam contra nós; afinal, devemos tirar vantagens dos pruridos morais de nossos adversários, de sorte que, se a honra deles não permite o ataque pelas costas, então a nossa vantagem comparativa está em atacar pelas costas”…

Infelizmente, o pouco que havia ou se desenvolveu de pensamento liberal e conservador no país se deixou sequestrar por essa lógica incivilizada, bruta — no limite, homicida —, amoral. Alguns sinais de conteúdo ideológico estão invertidos, é claro!, mas os valores que animam uns e outros são os mesmos.

De volta a Cabral
Nessa sexta e neste sábado, todos os partidos, grupos de rua, militantes e afins que juram de pés juntos seu amor pela democracia liberal deveriam estar indignados com a imagem de Sérgio Cabral acorrentado. Por quê? Qual era o propósito de tal prática senão a humilhação do preso? Você gostou, amigo? Acha que é assim mesmo que se faz? Vamos ver a quem você vai reclamar quando o guarda da esquina resolver exercer sobre você a sua (dele) autoridade…

Eis aí. É assim que a Lava Jato está nos preparando um futuro melhor: violando leis, garantias constitucionais, direito dos presos a um tratamento digno etc. E tudo isso para quê? Para nada!  Como escrevi anteontem, os motivos alegados para transferir Cabral já são de uma fragilidade escandalosa. Se ele recebeu alguma regalia indevida no presídio do Rio, que se coibisse a prática e que se abrisse uma investigação para punir os responsáveis. Em vez disso, o juiz Sérgio Moro preferiu transferi-lo para “o sistema prisional do Paraná”, como a dizer: “aqui, no olho do furacão da Lava Jato, não tem mole, não! Aqui a gente humilha mesmo os poderosos. Aqui, eles não terão os direitos que lhes faculta a lei e que só servem à impunidade”.

Estamos começando a nos aproximar do abismo legal. Ainda vou trazer aqui um momento patético, vocês verão, em que um procurador da República se revolta contra o direito que tem um investigado de não responder a uma questão — capítulo da máxima das democracias no terreno penal, segundo a qual ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Isso é pilar da democracia, não instrumento da impunidade. Acontece, vocês verão, que o procurador não gostou. E nós sabemos que, com raras exceções, procuradores acreditam poder construir a sua própria República oligárquica, à qual todos nós, incluindo os Poderes da República, estaremos subordinados, unidos pelo “direito de obedecer”.

O alarde com os tais “artigos de luxo” de Cabral já era um óbvio exagero, no qual a imprensa embarcou gostosamente, fazendo o barulho demagógico e populista que a Lava Jato queria que fizesse. Ora, com a população, então, pilhada contra o ex-governador, por que não oferecê-lo ao linchamento? E foi o que se fez.

Apenas um exemplo E que se note: Cabral é apenas um exemplo de algo bem mais grave. O desrespeito aos limites legais passou a ser prática corriqueira de setores abrigados na PF e no MPF. Lembro de novo: eu mesmo tive violada uma proteção constitucional sem ter, como é sabido, cometido crime nenhum. Agrediram um dos pilares da minha profissão. Só para mostrar quem manda. Nesta sexta, nas redes sociais, Deltan Dallagnol pregava abertamente o impeachment do ministro Gilmar Mendes e incentivava as pessoas a assinar uma petição em favor do impedimento. O quer vai acontecer com ele? Nada obviamente. Mas que ousasse um ministro do Supremo sugerir a exoneração, a bem do serviço público, de um procurador. O mundo viria abaixo.

O caso de Cabral é tão chocante que gerou a reação negativa mesmo em setores que vivem de joelhos para a Lava Jato. Em certa medida, a crítica nesses nichos é farisaica. Sua síntese: “Ao exagerar, a Lava Jato fornece um pretexto para seus críticos”, como se a operação, na sua essência, não estivesse eivada de violações legais e de agressões à institucionalidade.

Cadê Cármen Lúcia? A propósito, cadê Cármen Lúcia, presidente do Supremo, que responde pelo STF durante o recesso? Ela tem o hábito de se manifestar de moto próprio sobre isso e aquilo — geralmente causas que caíram, vamos dizer, no gosto dos defensores do populismo judicial. E sempre é muito sentenciosa a respeito. Quero saber o que pensa a ministra sobre a decisão deliberada de humilhar um preso.
“Ah, está reclamando porque é Cabral, né?” Não. Se você clicar aqui, lerá um texto deste blog, escrito no dia 8 de janeiro de 2014, em que bato duramente nas esquerdas porque elas se ocuparam apenas de combater a tortura a presos políticos, dando de ombros para o tratamento dispensado a presos comuns. Lá está escrito: A persistência da tortura e da violência nos presídios brasileiros — praticadas por autoridades ou pelos próprios presos — se deve ao apreço seletivo de nossos bem-pensantes pelos direitos humanos. A sua raiz, no fim das contas, é ideológica. A ditadura acabou em 1985. De Itamar Franco a esta data, o país está sob o comando de forças políticas ditas “progressistas”. A situação, no período, não fez senão se agravar.
Em suma, já não se trata de um problema da ditadura. É um problema da democracia.”

Não! O cara que condescende com a barbárie não sou eu. Eu sou um cara que a combate, venha de onde vier.
Com a palavra as entidades que congregam advogados.
Com a palavra os grupos defensores dos direitos humanos.
Com a palavra o diretor-geral da Polícia Federal.
Com a palavra o ministro da Justiça.
Com a palavra a procuradora-geral da República.
Com a palavra o juiz Sérgio Moro, que resolveu dividir “o preso e a presa Cabral” com o também juiz Marcelo Bretas.
Com a palavra os ditos movimentos de rua, que se colocaram como animadores de torcida da Lava Jato. Era para isso? É a essa a democracia que têm em mente, com esses valores?

Os responsáveis por aquele espetáculo deprimente têm de ser punidos.
Ah, sim: a PF informa que a corrente nos pés de Cabral segue “protocolo de segurança”. 
Bem, então que se exibam os protocolos. Ainda que existissem, eles não poderia estar, como estariam, acima da lei e da Constituição. 
A propósito: quantos outros passaram pela mesma humilhação? Um ato vergonhoso só poderia ser justificado com palavras também vergonhosas.

Blog do Reinaldo Azevedo