Os doutores que
compõem o Centro de Contingência da Covid-19, codinome do Altíssimo
Comando da Guerra Sanitária em São Paulo, que tem em Doria o Chefe
Supremo, certamente trataram dessa questão. As sumidades ali aglomeradas
(com as devidas cautelas aconselhadas pelo distanciamento social,
ressalvam) tratam de tudo. Já faz mais de um ano que se juntam quase
todos os dias para decidir o que pode e o que não pode, o que ajuda e o
que atrapalha, o que é verdade e o que é negacionismo. Como Doria,
recitam de meia em meia hora que estão lá para salvar vidas. Conhecem a
covid-19 só de vista, mas estão sempre grávidos de certezas.
Não é
atormentado por dúvidas quem ouve o tempo todo a voz da Ciência e os
conselhos da Saúde.
No fim da semana, o grupo comunica ao governador —
que tem a última palavra — quais municípios merecem ser alojados, por
exemplo, na fase amarela, e quais devem continuar de castigo na fase
vermelha, antessala da temida fase emergencial. (Nascida há poucas
semanas, a emergencial seria batizada de “fase preta” se alguém não
tivesse advertido que poderia parecer coisa de racista.)
Claro que o conselho de sábios tratou do assunto. Mas a reação
de Doria ao ouvir a expressão “transporte público” lembrou a do avô
surpreendido pelo neto que, no meio do jantar da família, resolve contar
aos berros um segredo do clã transmitido aos sussurros por sete
gerações. Num longo circunlóquio, o governador ressaltou que tal
problema não é uma exclusividade paulistana. Outras capitais são
assoladas com superlotações do gênero. Tampouco se trata de uma
complicação restrita ao Brasil: Londres, Paris, Nova York — mesmo
metrópoles mais avançadas ainda não descobriram como adaptar a
mobilidade urbana a estes tempos estranhos. Já avisando que a entrevista
chegara ao fim, Doria disse que o governo estadual recomendou mais de
uma vez o uso de horários alternativos inviáveis e reiterou que os
passageiros devem lavar as mãos com álcool em gel, além de proteger o
rosto com máscara.
O próprio orador desconfiou que discursava
sobre o nada, compreendeu que seria difícil debitar mais esse pecado na
conta de Jair Bolsonaro e partiu para a ofensiva. “Não posso impedir o
deslocamento de trabalhadores de serviços essenciais”, subiu o tom.
Como
vetar o embarque no metrô da enfermeira que salva vidas, do bombeiro
que salva vidas, do policial militar que salva vidas?
Quem imagina que
desde o início da pandemia apenas esses profissionais usam o transporte
não faz ideia do mundo que se espreme em qualquer vagão da Linha
Vermelha, nem viu por dentro algum ônibus que leva do centro da cidade a
Sapopemba.
Nesses mosaicos do Brasil, espremem-se nos horários de pico
camelôs, desempregados, assaltantes, domésticas, pedintes de esquina,
babás, garçons, pequenos negociantes, gente honesta, vigaristas,
vendedores de bugigangas, aposentados e jovens à procura de trabalho,
além de incontáveis brasileiros forçados a exercer a profissão na
clandestinidade porque a ordem é ficar em casa.
Ou na
semiclandestinidade exigida pelo farisaísmo:
os cabelos bem cortados dos
homens e os penteados impecáveis das mulheres denunciam a passagem
recente de barbeiros e cabeleireiras que mantêm seus salões fechados por
determinação dos ilustres fregueses. Para chegar às casas dos clientes
loucos por lockdowns, falta a esses trabalhadores de serviços
considerados não essenciais dinheiro para chamar um Uber. Usam o
transporte público.
Se ficassem em casa, o elenco que protagoniza as
entrevistas coletivas no Palácio dos Bandeirantes estaria parecido com
uma tribo de hippies dos anos 70.
A boa aparência, sublinhada
por máscaras customizadas e pelo sorriso de quem vive entre o chuveiro e
uma sala com ar condicionado, avisa que o que ali se vê é um bando de
hipócritas. Portadores de miopia seletiva, fingem não enxergar os
milhões de excluídos da quarentena feita sob medida para integrantes da
classe média alta, funcionários públicos indolentes, ricos, advogados de
corruptos, corruptos com bons advogados e o restante da elite nativa.
Seria excessivo esperar que essa turma se preocupe com aglomerações
decorrentes do isolamento dos excluídos.
Previsivelmente,
os fechadores compulsivos de bares, restaurantes, templos, museus,
cinemas, teatros, shopping centers, prateleiras de supermercados, salões
de cabeleireiros, barbearias, escolas, fábricas, lojas e outras vítimas
da epidemia de autoritarismo fecharam os olhos à dramática piora da
paisagem formada pelas favelas brasileiras, onde sobrevive uma imensidão
de gente que ajuda a transformar o transporte público no maior e mais
alarmante foco de disseminação do coronavírus do Brasil.
O palavrório
das entrevistas coletivas não incluiu sequer um asterisco sobre os
brasileiros amontoados em barracos. Também não foi nem será dedicada uma
mísera vírgula à pesquisa feita entre 9 e 11 de fevereiro pelo
Instituto Data Favela, em parceria com a Locomotiva – Pesquisa e
Estratégia e com a Central Única das Favelas (Cufa).
Foram
entrevistados habitantes de 76 favelas espalhadas por todos os Estados
brasileiros. As constatações são desoladoras.
Nas duas semanas
anteriores ao levantamento, por exemplo, em ao menos um dia 68% dos
moradores não tinham conseguido dinheiro para comprar comida.
As
refeições diárias caíram de 2,4 em agosto de 2020 para 1,9 em fevereiro,
e 71% das famílias agora sobrevivem com menos da metade da renda obtida
antes da pandemia.
Nove em cada dez favelados receberam alguma doação.
Sem esse gesto solidário, oito em cada dez famílias não teriam condições
de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza e pagar contas
básicas.
Nas favelas, o número de casos confirmados e óbitos é o dobro
do registrado nos bairros nobres, mas apenas 32% procuram seguir as
medidas de prevenção. Outros 33% tentam de vez em quando ajustar-se às
regras, 30% afirmam que não conseguem segui-las e 5% abdicaram de
tentativas. É certo que, do começo de fevereiro para cá, esse cenário se
tornou ainda mais cinzento.
A imprensa velha está fora do
universo pesquisado. Os moradores não entendem o que dizem comentaristas
da Globo, o grego antigo lhes parece menos complicado que o subdialeto
falado por ministros do Supremo e o alcance da internet é muito menor
que nas regiões habitadas por quem desfruta de três refeições por dia.
Mas também nos barracos se manifesta a sabedoria subjacente do povo
brasileiro. Os favelados sabem o que fez e faz cada governante e cada
instituição no Brasil da pandemia.
Acuados pela fome e pela insegurança,
usam o transporte público para buscar algum dinheiro em outros pontos
da cidade.
Sabem que as aglomerações nos ônibus, trens urbanos e vagões
do metrô são perigosas.
Mas os participantes involuntários do isolamento
dos desvalidos acham muito mais perigoso esperar num barraco a salvação
que não virá.
Leia também a matéria de capa desta edição, “A aglomeração dos invisíveis”
Augusto Nunes, jornalista - Coluna na Revista Oeste