Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER
Mostrando postagens com marcador vagões. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador vagões. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 21 de abril de 2021

A quarentena dos desvalidos - Revista Oeste

Augusto Nunes

Os governantes fingem ignorar a existência de um Brasil maior e mais populoso que o conhecido pelos loucos por lockdowns

 Neste 13 de abril, o governador João Doria foi enfim confrontado com a pergunta que não queria ouvir — e nenhum jornalista havia ousado formular nas mais de 200 entrevistas coletivas sobre a pandemia de coronavírus concedidas desde março de 2020: 
o que pretende fazer para ao menos reduzir as aglomerações nos ônibus, trens metropolitanos e vagões do metrô?  
O repórter tinha numa das mãos fotografias que escancaravam o tumor medonho: amontoada em ambientes opressivos e mal ventilados, a multidão de passageiros confirmava que, todos os dias, esquadrilhas de vírus chineses sobrevoam os meios de transporte público para expandir a morte e o medo no maior conglomerado urbano do país.  
O que tinha a dizer sobre isso o líder do combate ao inimigo invisível na frente paulista?
Os doutores que compõem o Centro de Contingência da Covid-19, codinome do Altíssimo Comando da Guerra Sanitária em São Paulo, que tem em Doria o Chefe Supremo, certamente trataram dessa questão. As sumidades ali aglomeradas (com as devidas cautelas aconselhadas pelo distanciamento social, ressalvam) tratam de tudo. Já faz mais de um ano que se juntam quase todos os dias para decidir o que pode e o que não pode, o que ajuda e o que atrapalha, o que é verdade e o que é negacionismo. Como Doria, recitam de meia em meia hora que estão lá para salvar vidas. Conhecem a covid-19 só de vista, mas estão sempre grávidos de certezas
Não é atormentado por dúvidas quem ouve o tempo todo a voz da Ciência e os conselhos da Saúde. 
No fim da semana, o grupo comunica ao governador — que tem a última palavra quais municípios merecem ser alojados, por exemplo, na fase amarela, e quais devem continuar de castigo na fase vermelha, antessala da temida fase emergencial. (Nascida há poucas semanas, a emergencial seria batizada de “fase preta” se alguém não tivesse advertido que poderia parecer coisa de racista.)

 Claro que o conselho de sábios tratou do assunto. Mas a reação de Doria ao ouvir a expressão transporte público lembrou a do avô surpreendido pelo neto que, no meio do jantar da família, resolve contar aos berros um segredo do clã transmitido aos sussurros por sete gerações. Num longo circunlóquio, o governador ressaltou que tal problema não é uma exclusividade paulistana. Outras capitais são assoladas com superlotações do gênero. Tampouco se trata de uma complicação restrita ao Brasil: Londres, Paris, Nova York — mesmo metrópoles mais avançadas ainda não descobriram como adaptar a mobilidade urbana a estes tempos estranhos. Já avisando que a entrevista chegara ao fim, Doria disse que o governo estadual recomendou mais de uma vez o uso de horários alternativos inviáveis e reiterou que os passageiros devem lavar as mãos com álcool em gel, além de proteger o rosto com máscara.

O próprio orador desconfiou que discursava sobre o nada, compreendeu que seria difícil debitar mais esse pecado na conta de Jair Bolsonaro e partiu para a ofensiva. “Não posso impedir o deslocamento de trabalhadores de serviços essenciais”, subiu o tom. 
Como vetar o embarque no metrô da enfermeira que salva vidas, do bombeiro que salva vidas, do policial militar que salva vidas? 
 
Quem imagina que desde o início da pandemia apenas esses profissionais usam o transporte não faz ideia do mundo que se espreme em qualquer vagão da Linha Vermelha, nem viu por dentro algum ônibus que leva do centro da cidade a Sapopemba
Nesses mosaicos do Brasil, espremem-se nos horários de pico camelôs, desempregados, assaltantes, domésticas, pedintes de esquina, babás, garçons, pequenos negociantes, gente honesta, vigaristas, vendedores de bugigangas, aposentados e jovens à procura de trabalho, além de incontáveis brasileiros forçados a exercer a profissão na clandestinidade porque a ordem é ficar em casa.
 
Ou na semiclandestinidade exigida pelo farisaísmo: 
os cabelos bem cortados dos homens e os penteados impecáveis das mulheres denunciam a passagem recente de barbeiros e cabeleireiras que mantêm seus salões fechados por determinação dos ilustres fregueses. Para chegar às casas dos clientes loucos por lockdowns, falta a esses trabalhadores de serviços considerados não essenciais dinheiro para chamar um Uber. Usam o transporte público. 
Se ficassem em casa, o elenco que protagoniza as entrevistas coletivas no Palácio dos Bandeirantes estaria parecido com uma tribo de hippies dos anos 70. 
A boa aparência, sublinhada por máscaras customizadas e pelo sorriso de quem vive entre o chuveiro e uma sala com ar condicionado, avisa que o que ali se vê é um bando de hipócritas. Portadores de miopia seletiva, fingem não enxergar os milhões de excluídos da quarentena feita sob medida para integrantes da classe média alta, funcionários públicos indolentes, ricos, advogados de corruptos, corruptos com bons advogados e o restante da elite nativa. Seria excessivo esperar que essa turma se preocupe com aglomerações decorrentes do isolamento dos excluídos.

Previsivelmente, os fechadores compulsivos de bares, restaurantes, templos, museus, cinemas, teatros, shopping centers, prateleiras de supermercados, salões de cabeleireiros, barbearias, escolas, fábricas, lojas e outras vítimas da epidemia de autoritarismo fecharam os olhos à dramática piora da paisagem formada pelas favelas brasileiras, onde sobrevive uma imensidão de gente que ajuda a transformar o transporte público no maior e mais alarmante foco de disseminação do coronavírus do Brasil. 

O palavrório das entrevistas coletivas não incluiu sequer um asterisco sobre os brasileiros amontoados em barracos. Também não foi nem será dedicada uma mísera vírgula à pesquisa feita entre 9 e 11 de fevereiro pelo Instituto Data Favela, em parceria com a Locomotiva – Pesquisa e Estratégia e com a Central Única das Favelas (Cufa).

Foram entrevistados habitantes de 76 favelas espalhadas por todos os Estados brasileiros. As constatações são desoladoras. 
Nas duas semanas anteriores ao levantamento, por exemplo, em ao menos um dia 68% dos moradores não tinham conseguido dinheiro para comprar comida. 
As refeições diárias caíram de 2,4 em agosto de 2020 para 1,9 em fevereiro, e 71% das famílias agora sobrevivem com menos da metade da renda obtida antes da pandemia.
Nove em cada dez favelados receberam alguma doação. Sem esse gesto solidário, oito em cada dez famílias não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza e pagar contas básicas. 
Nas favelas, o número de casos confirmados e óbitos é o dobro do registrado nos bairros nobres, mas apenas 32% procuram seguir as medidas de prevenção. Outros 33% tentam de vez em quando ajustar-se às regras, 30% afirmam que não conseguem segui-las e 5% abdicaram de tentativas. É certo que, do começo de fevereiro para cá, esse cenário se tornou ainda mais cinzento.
A imprensa velha está fora do universo pesquisado. Os moradores não entendem o que dizem comentaristas da Globo, o grego antigo lhes parece menos complicado que o subdialeto falado por ministros do Supremo e o alcance da internet é muito menor que nas regiões habitadas por quem desfruta de três refeições por dia. Mas também nos barracos se manifesta a sabedoria subjacente do povo brasileiro. Os favelados sabem o que fez e faz cada governante e cada instituição no Brasil da pandemia. 
 Acuados pela fome e pela insegurança, usam o transporte público para buscar algum dinheiro em outros pontos da cidade. 
Sabem que as aglomerações nos ônibus, trens urbanos e vagões do metrô são perigosas
Mas os participantes involuntários do isolamento dos desvalidos acham muito mais perigoso esperar num barraco a salvação que não virá.

Leia também a matéria de capa desta edição, “A aglomeração dos invisíveis”

Augusto Nunes, jornalista - Coluna na Revista Oeste

 

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Empresas estatais costumam ter sete vidas

Provando a tese de que é fácil criar empresa pública, mas se trata de tarefa quase impossível fechá-la, a Rede Ferroviária até hoje não foi liquidada

A economia brasileira sempre foi mista, com razoável presença do Estado. Com Getúlio, em seus dois governos, o poder público ganhou extensões empresariais que o tornaram ainda mais ativo nos mercados. Vêm daí siderúrgicas, a Petrobras, Vale, e assim por diante. Por inevitável, consolidou-se uma cultura de duas facetas — o Estado exerce controle sobre a sociedade, de que extrai rendas por meio de impostos cada vez mais elevados, enquanto ser empregado de alguma empresa pública ou mesmo servidor na administração direta passa a ser um projeto de vida. E o Brasil ter sediado o Império português, expressão do poder vertical, exercido de cima para baixo, plasmou a ideia de que o aparato estatal paira acima da sociedade.

O programa de privatizações executado principalmente a partir do governo Itamar Franco, e aprofundado nas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, é um típico ponto fora da curva na História do país. Tanto que até hoje há estatais privatizadas mas que ainda pulsam em liquidações intermináveis na Justiça, inventários jamais concluídos, como se resistissem a de fato desaparecer. O caso da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), abordado pelo GLOBO no início da semana passada, é emblemático.

Ela foi oficialmente extinta em 2007, portanto há nove anos, num processo que se arrastou por oito anos. Hoje, quase uma década depois da extinção formal da empresa, ainda há 250 funcionários que trabalham neste demorado desmonte. E não existe previsão firme de quando tudo terminará, para se poder dizer que de fato a Rede acabou. Até devido ao gigantismo da empresa, certamente um dos fatores que a tornaram impossível de ser administrada por governos.

Ao parar de operar, a Rede tinha 105,8 mil imóveis e 37 mil itens em almoxarifados, além de 393 locomotivas, 4.353 vagões e 38.300 equipamentos em geral. Admita-se que não se faz a tramitação da liquidação de um patrimônio deste tamanho de uma hora para outra. 


Se considerarmos a possibilidade de haver algum tipo de resistência dentro da máquina estatal à desmontagem da Rede ou de qualquer outra empresa pública, a tarefa de desestatização se torna hercúlea. Por isso se costuma dizer que não é difícil fundar uma estatal, mas é quase impossível fechá-la de fato. A Rede serve de exemplo. Outro é a Telebras, que se pensava fechada depois que, sob FH, o sistema de telefônicas controladas por ela foi vendido em leilões. Não era bem assim. Para surpresa de muitos, quando o governo Dilma quis ampliar a banda larga nos serviços de internet, ela, seguindo seus instintos estatistas, tirou da hibernação a Telebras. 

Estatal no Brasil, portanto, tem mais de uma vida. Quando se pensa que foi privatizada, um embrião dela sobrevive em algum escaninho do Estado, com certeza recebendo uma transfusão de dinheiro do contribuinte. É atávico, assim como vampiro busca o sangue.

Fonte: Editorial - O Globo