A influência de um presidente sobre aqueles que julgam e sentenciam não é pequena
Dilma Rousseff, guerrilheira de esquerda, lutou durante a ditadura militar instaurada em 1964. Foi presa e torturada. Um de seus carrascos foi o já falecido coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem Bolsonaro dedicou seu voto a favor do impeachment da ex-guerrilheira com estas palavras: “Pela memória do coronel Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Ninguém, naquela noite de bruxas no Congresso, quando a maioria dos congressistas votou para que Dilma perdesse a Presidência da República, poderia imaginar que, em um dia não muito distante, Bolsonaro − entusiasta da ditadura militar e exaltador de Ustra, um dos mais cruéis torturadores daqueles anos de terror − se sentaria na cadeira presidencial da qual a ex-guerrilheira tinha sido removida. Hoje o exaltador de torturadores tem em suas mãos um poder que não tinha naquela ocasião, e poderia aproveitá-lo para consumar seu sonho.
[Dilma tem que ser presa por vários crimes, incluindo corrupção passiva, formação de quadrilha;
Também devem responder por seus crimes a Graça Foster, a Erenice Guerra, Ideli Salvatti (o lance da compra de lanças para pesca) auela ministra do aborto - não lembro onome agora.
Todas da foto acima tem crimes a responder - tem uma delas que não consigo identificar agora.]
Não que Bolsonaro seja promotor, policial ou juiz para intervir em um possível processo contra Dilma por corrupção, mas até as moscas sabem que a influência de um presidente sobre aqueles que julgam e sentenciam não é pequena. Sergio Moro, seu discutido ministro da Justiça, que conhece como poucos os caminhos e meandros para formalizar uma sentença, poderia ajudá-lo. Não acredito, no entanto, por mais que ele tenha sido capaz de abraçar a causa punitivista do bolsonarismo, que o ex-juiz da Lava Jato que condenou Lula possa prestar-se hoje a algo assim. E o indicado para ser o novo procurador-geral da República, Augusto Aras, escolhido a dedo pelo presidente Bolsonaro ou talvez por seus filhos?
A questão da possibilidade de que Dilma possa acabar nas garras da Lava Jato, principalmente depois das delações daquele que foi seu ministro mais próximo e poderoso, Antonio Palocci, não é algo fútil ou uma mera loucura bolsonarista. Basta pensar que na quarta-feira a Folha de S. Paulo, nada propensa a uma condenação de Dilma, dedicou uma reportagem de mais de mil palavras a esse assunto, com uma séria de fotos e o seguinte título: “Investigações da Lava Jato miram campanhas e núcleo de confiança de Dilma”. O jornal informa que embora ainda não tenha sido adotada nenhuma ação concreta contra ela, a ex-presidenta Dilma “está no centro das atenções dos trabalhos mais recentes da Lava Jato”.
A Folha destaca que as últimas denúncias de Palocci, “único petista importante a assinar acordo de delação premiada com a Lava Jato”, apontam nessa direção, ou seja, a dos possíveis atos de corrupção ocorridos nas duas campanhas eleitorais de Dilma. E o jornal assinala que esta foi a primeira vez que a polícia fez buscas e coleta de documentos na casa da ex-presidenta da Petrobras e amiga dela Graça Foster, escolhida por Dilma no momento delicado em que começavam a surgir os primeiros escândalos e as primeiras condenações pelo chamado “petrolão”. Foster sabia ou não sabia?
E Dilma foi a primeira pessoa que viu em uma das fases mais recentes da Lava Jato, chamada de Pentiti (“arrependidos” em italiano) um perigo para ela, já que veio a público indignada com as duras declarações de Palocci e com o movimento tectônico que parece ter sido iniciado contra ela. Dilma respondeu desta vez com inusitada dureza às acusações de seu ex-ministro, qualificando-as de “mentirosas e infames”. Em uma nota de sua assessoria, Dilma declara, com visível indignação, que é curioso que a ofensiva da Lava Jato contra ela “ocorra no momento em que procuradores da República e o ex-juiz Sergio Moro estão sob suspeita, desmascarados pelo The Intercept Brasil”.
Uma das coisas que mais devem ter ferido os sentimentos da ex-presidenta foram, sem dúvida, as insinuações que Palocci fez sobre supostas queixas de Lula por Dilma não ter conseguido, na época, frear as investidas da Lava Jato e evitar que chegassem a ele e o enfraquecessem. Assim seria mais fácil para ela tentar a reeleição. Acusações sem provas que ela qualifica, com razão, de “infâmia”.
É verdade que ninguém poderia imaginar que o popular ex-presidente Lula pudesse acabar na prisão e permanecer tanto tempo lá − já está preso há um ano e meio, apesar da miríade de advogados que o assistem e de inúmeras manifestações de apoio dentro e fora do país para sua libertação. Mas parece ainda mais improvável a possibilidade de que seja condenada uma mulher que todos sabem que não enriqueceu na presidência e que carrega em seus ombros o peso da juventude, vendo que aqueles que hoje parecem mandar no país são os herdeiros sentimentais de quem torturou seu corpo e ofendeu sua dignidade por um único pecado, sua ideologia.
Ninguém sabe como acabará a aventura de extrema direita, com indícios ditatoriais, de pessoas que já ameaçaram expulsar do país quem não pensa como elas e que lamentam ter se conformado em torturar os resistentes em vez de simplesmente matá-los. Poucas coisas, no entanto, tornariam mais sombrio seu poder de hoje do que usá-lo para uma mísera vingança, empurrando as investigações até conseguir ver a antiga guerrilheira imersa na vergonha de ser presa por corrupção. Ninguém pede que Dilma seja tratada com uma bondade especial por seu passado, e também não seria justo esconder, se existirem, suas culpas de hoje. Seria, no entanto, uma baixeza utilizar estratagemas pouco republicanos para forçar sua condenação só pelo deleite de uma vingança tardia.
Esta coluna sempre foi prudente ao analisar o impeachment de Dilma. São páginas da história que só poderão ser examinadas sem o calor da paixão política do momento. Mas há uma coisa que sempre destaquei e elogiei em Dilma: sua defesa da liberdade de expressão desde seu primeiro discurso de posse, algo que ela continuou repetindo até o final. Dilma repetiu várias vezes: “Prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio da ditadura”. Hoje, ao contrário, vemos como o poder, que gostaria de vê-la na prisão, preferiria o silêncio da informação ao barulho da verdade.
A democracia do Brasil já atravessou em pouco tempo uma série de tragédias políticas que vão esfriando e envenenando a convivência civil. Que Bolsonaro, que tem agora em suas mãos o poder, esqueça seu sonho proibido de querer ver Dilma na prisão. Ela não deve ser considerada nem mártir nem vítima, devem ser respeitados os sinais que ainda carrega em sua carne e em sua alma, sinais da época em que o Brasil sucumbiu às tentações da crueldade contra os direitos à própria vida e à integridade do próprio corpo.
(Transcrito do jornal El País)