Presidente reiterou posições conhecidas sobre Amazônia, direitos humanos, ideologia e relações internacionais
O presidente Jair Bolsonaro abriu nesta terça-feira os
debates gerais na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, sob
pressão para tentar reverter a imagem negativa de seu governo no
exterior. O discurso era cercado de expectativas, após o presidente
brasileiro protagonizar polêmicas com outros líderes mundiais e a má
repercussão dos incêndios na Amazônia. Veja quais foram os principais
recados enviados por Bolsonaro em seu discurso.
Ao mesmo tempo em que atacava “sistemas ideológicos de pensamento” que, segundo ele, não “buscavam a verdade”, mas o "poder absoluto", Bolsonaro fez um discurso de alta carga ideológica, na qual atribuiu todos os males do Brasil e do mundo ao socialismo e à esquerda, sem fazer distinção entre a social-democracia e as ditaduras de partido único comunista. Já na abertura — como já havia feito em seu discurso de posse e em outros pronunciamentos, incluindo na Casa Branca em março deste ano —, ele disse que assumiu um país “à beira do socialismo”. Como suposta evidência disso, citou os médicos cubanos que trabalhavam no programa Mais Médicos.
Sem chegar a usar a expressão “marxismo cultural” — uma das favoritas dos seguidores do guru da direita Olavo de Carvalho, entre eles o chanceler Ernesto Araújo, seu filho Eduardo Bolsonaro e o assessor internacional do Planalto Filipe Martins, que o ajudaram a redigir o discurso —, o presidente disse que a “ideologia se instalou” na cultura, na educação e na mídia, [tentando, sem êxito, até agora, apesar de algumas supremas e infundadas intervenções do STF.] dominando meios de comunicação, universidade e escolas, destruindo a família, a “inocência das crianças” e a fé em Deus. Atacou o “politicamente correto” e definiu a identidade sexual como puramente “biológica”.
Por fim, criticou o que direita chama de “globalismo”, termo pejorativo para as instituições e tratados globais, afirmando que os nacionalismos e as soberanias não podem ser “apagadas” em nome de um “interesse global abstrato”. Pouco antes do discurso de Bolsonaro, ao abrir os debates da Assembleia Geral, o secretário-geral da ONU, António Guterres, que foi primeiro-ministro de Portugal pelo Partido Socialista, havia destacado que as crises internacionais devem ser resolvidas multilateralmente, mas sem interferências indevidas nas questões internas das nações.
De modo não explícito, ao mesmo tempo em que atacava a ditadura do Partido Comunista em Cuba e o regime venezuelano de Nicolás Maduro, Bolsonaro reiterou a defesa das ditaduras militares instaladas no Brasil e na maioria dos países da América Latina nos anos 1960. Disse que na época houve uma “guerra” contra supostos agentes cubanos na qual "civis e militares brasileiros" foram mortos, ignorando que o governo deposto em 1964 havia sido eleito e enfrentava tensões políticas internas decorrentes de demandas populares pela ampliação da democracia e por mais direitos sociais.
Por fim, não deixou de mencionar o Foro de São Paulo, uma obsessão de círculos da direita que costumam superestimar sua influência, e que é formado por mais de cem partidos políticos de várias correntes da esquerda e centro-esquerda.
Sem reconhecer aumento das queimadas
Ao falar da Amazônia, Bolsonaro não reconheceu o aumento das queimadas registrado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), atribuindo essas ocorrências ao “clima seco e aos ventos” desta época do ano, “que favorecem queimadas espontâneas e criminosas”. Disse que os índios também promovem queimadas, e que o Brasil é alvo de “ataques sensacionalistas” de “grande parte da mídia internacional”. "É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade", afirmou.
Sem estender a mão a europeus Ao falar da Amazônia, Bolsonaro manteve o tom de confronto com líderes europeus como o francês Emmanuel Macron e a alemã Angela Merkel, que fizeram críticas ao desmatamento da Amazônia e a sua política ambiental. Sem mencioná-los pelo nome, disse que “um ou outro país embarcou nas mentiras da mídia” e se comportou “com espírito colonialista”. Disse que a França e a Alemanha exploram “mais de 50%” de suas terras para a agricultura, enquanto o Brasil preserva a maior parte do seu território.
O presidente atacou, por duas vezes, o cacique Raoni, que esteve com Macron e o criticou em fóruns internacionais. Bolsonaro, cujas políticas levaram ao bloqueio do Fundo Amazônia, mantido pela Noruega e a Alemanha, também disse “qualquer iniciativa de ajuda ou apoio” para a preservação da floresta deve “ser tratada em pleno respeito à soberania brasileira”. Na reunião do G7 na França, ao ser questionado sobre propostas de internacionalização da gestão da Amazônia, Macron disse que o debate existia e poderia ser travado no futuro, mas não estava posto no momento.
O presidente americano, desde o início escolhido como aliado preferencial pelo governo Bolsonaro — e que também atacou o “globalismo” em seu discurso na ONU feito logo em seguida ao do brasileiro —, foi citado nominalmente no discurso, deferência também reservada ao argentino Mauricio Macri, que corre o risco de ser derrotado na eleição de 27 de outubro. Segundo o presidente, Donald Trump evitou que o G7, o grupo das sete maiores economias capitalistas, aprovasse sanções ao Brasil pelas queimadas na Amazônia. Na verdade, não houve proposta de sanções ao Brasil na última cúpula do grupo, na França, no final de agosto.
Defesa do livre comércio
Embora a economia brasileira demore a se recuperar da recessão iniciada em 2015, Bolsonaro traçou um quadro otimista dos efeitos da política econômica do seu governo, afirmando que a “economia está reagindo” ao “romper os vícios e as amarras de quase duas décadas de irresponsabilidade fiscal, aparelhamento do Estado e corrupção generalizada”. Destacou seu compromisso com a "liberdade econômica", dizendo que "o livre mercado, as concessões e as privatizações" já se fazem presentes no Brasil hoje, embora governos anteriores também tenham privatizado e concedido ao setor privado a exploração de recursos naturais e serviços públicos, como rodovias, aeroportos e fornecimento de eletricidade.
O presidente fez uma defesa da abertura da economia, congratulando-se pelos acordos firmados "em apenas oito meses" entre o Mercosul e a União Europeia e entre o bloco sul-americano e a Área Europeia de Livre Comércio, embora esses tratados já viessem sendo negociados nos governos anteriores. A ratificação desses acordos de livre comércio, no entanto, pode ser dificultada se o governo brasileiro mantiver a tensão no relacionamento com dirigentes europeus.
Bolsonaro disse que tem “compromisso intransigente” com os direitos humanos, mas que esse compromisso “caminha junto com o combate à corrupção e à criminalidade”. Quatro dias depois da morte da menina Ágatha, de oito anos, atingida por um tiro disparado pela polícia no Complexo do Alemão, no Rio, o presidente destacou a morte de policiais militares decorrente da violência criminosa, mas não a de civis. No início de setembro, o brasileiro atacou a comissária de Direitos Humanos da ONU, a chilena Michelle Bachelet, depois que ela apontou, em entrevista, o aumento dos homicídios cometidos pelas polícias dos estados do Rio e de São Paulo. [quando a polícia se torna mais eficiente é natural que mate mais = polícia nas rua é mais bandido presou e/ou na vala.]
Ao falar do combate ao crime, o presidente destacou a extradição do italiano Cesare Battisti, ex-militante de um grupo armado de extrema esquerda, e de três opositores paraguaios que tiveram seu status de refugiados no Brasil revogado, chamando-os indistintamente de "terroristas". Não mencionou que o país tem uma longa tradição de asilo, que beneficiou pessoas de diferentes ideologias, incluindo o ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner.
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Aceno aos militares
Bolsonaro fez um aceno específico aos militares ao falar da participação do Brasil em missões de paz das Nações Unidas no Haiti, no Líbano e na República Democrática do Congo. Não mencionou que todos os postos de destaque obtidos pelo Brasil nessas missões foram negociados em governos anteriores ao seu, e que sua intenção de classificar o Hezbollah como "terrorista" pode pôr em risco o papel do Brasil no país do Oriente Médio, onde o movimento xiita participa do governo.
O presidente disse que os contingentes brasileiros “são reconhecidos pela qualidade do seu trabalho e pelo respeito à população” e que o país continuará contribuindo para as missões de paz, mencionando a experiência brasileira no treinamento e na capacitação de tropas. Integrantes do seu governo, como Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, lideraram forças de paz da ONU. Heleno também participou da redação do discurso de Bolsonaro na ONU.
O Globo