Qualquer empresa, esteja onde estiver, se atuar em
território brasileiro tem que cumprir as nossas leis e obedecer aos nossos poderes
instituídos
A
emergência da internet e a essencialidade que adquiriu num curtíssimo período de pouco mais de década para um
amplo conjunto de práticas sociais e econômicas cotidianas têm suscitado
enormes desafios políticos e jurídicos no exame de situações que, em outros
contextos, pareceriam de relativamente simples solução consuetudinária. Polêmicas
como as suscitadas pelo Uber ou pelo WhatsApp são bons exemplos. Legisladores e juízes se desdobram buscando produzir ou
aplicar leis a situações que, não raro, podem parecer inusitadas.
Em 16 de
dezembro último, a juíza Sandra Marques, de São Bernardo, São Paulo, decretou
a suspensão, por 48 horas, dos serviços do WhatsApp. Um dia depois, a ordem foi
revogada pelo desembargador Xavier de Souza, da Justiça paulista. A
juíza alegou que tomara a decisão porque a empresa
controladora do WhatsApp, a Facebook Inc., com endereço e CNPJ no Brasil, ignorou
solenemente a ordem judicial de fornecer ao Ministério Público alguns dados
sobre uma investigação criminal. Já o desembargador considerou a decisão “desproporcional”
por atingir milhões de pessoas, sendo recomendável, antes, aplicar à
empresa multas crescentes.
Claro, o
tema provocou muitos debates, não faltando especialistas em leis para
advogar, com base nessas leis, tanto a favor quanto contra a decisão da
juíza. Talvez tenha faltado o debate político,
antecedente ao jurídico. WhatsApp e Facebook são useiros e vezeiros
em ignorar decisões judiciais em outros países que não os Estados Unidos, não sendo a primeira vez que afrontam a Justiça brasileira —
fato que o desembargador Souza já deveria saber.
Alegam
que suas leis são as do Estado da Califórnia. Ora, nenhuma empresa pode
desrespeitar ou não fazer caso da soberania de qualquer Estado, muito
menos a do nosso Estado brasileiro. Qualquer empresa, esteja onde estiver,
se atuar em território brasileiro tem que cumprir as nossas leis e obedecer aos
nossos poderes instituídos. Isto, inclusive, está claro no Marco Civil da
Internet: as leis que valem são as nossas. Só por isso, atitudes como
as do Facebook e do WhatsApp já
deveriam causar revolta a qualquer brasileiro, não lhes merecendo nenhuma
solidariedade.
WhatsApp
não é internet, Facebook muito menos. São plataformas, entre outras, disponíveis na
internet. Dizer que a suspensão do WhatsApp derrubou a
comunicação das pessoas seria similar a argumentar que uma manifestação de rua
impede o direito de ir e vir. Num caso e noutro, num Estado Democrático
de Direito, desculpem-se os transtornos, mas se busquem caminhos
alternativos... Aliás, no caso do WhatsApp, como sabido, milhões de brasileiros
logo encontraram outros caminhos.
Qualquer
Estado, nos termos da sua legislação e dos poderes de suas instituições, pode suspender o
funcionamento de alguma indústria ou serviço, caso estejam infringindo as leis.
Restaurantes podem ser fechados, bancos podem
sofrer intervenção federal, universidades podem ser descredenciadas e fechadas...
Por que o WhatsApp não pode? Se, porém, entendermos que a
suspensão do WhatsApp poderia causar um transtorno social com dimensões
similares à interrupção dos serviços, digamos,
de uma empresa fornecedora de energia elétrica, então estaríamos lhe
atribuindo a importância de um “serviço essencial”. Neste caso, precisaria ser declarado “serviço público” e
submetido à legislação pertinente... Se não é o caso, o WhatsApp pode
ser paralisado por algumas horas, a bem da Justiça, tanto quanto, por
exemplo, pode ser fechado um supermercado pego vendendo produtos com validade
vencida. O consumidor que busque alternativa.
Empresas
que prestam serviços suportados na internet, assim como também as
pessoas que usam a internet, não estão acima das leis, ou sob alguma proteção
legal especial. Não existem “direitos digitais”. Por acaso
existiram outrora “direitos analógicos”? Existem direitos humanos,
independentemente de tecnologias. Nesse sentido, nenhum direito —
expressão, ir e vir, saúde, moradia, privacidade, qualquer outro — foi
infringido pela decisão de uma Juíza brasileira, no cumprimento das suas
atribuições. Se a liberdade de expressão estivesse
dependente do WhatsApp (felizmente não está!), nós nos encontraríamos diante de flagrante caso de monopólio
nas comunicações, vedado pela nossa Constituição.
A base de
um Estado Democrático de Direito é uma justiça eficaz, isto é, que possa ter suas
decisões cumpridas. Facebook e WhatsApp talvez tenham aprendido,
graças ao desembargador Souza, que, no Brasil, decisões da Justiça
não precisam ser cumpridas. Aliás, sabe-se que o Facebook
já deve, ao Estado brasileiro, mais de R$ 12 milhões, em multas. Certamente uma bagatela diante da fortuna de Mark Zuckerberg.
Talvez por isso, ele tenha se esquecido de pagar...
Fonte:
Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e conselheiro do
Comitê Gestor da Internet no Brasil