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domingo, 3 de janeiro de 2016

WhatsApp não está acima da lei



Qualquer empresa, esteja onde estiver, se atuar em território brasileiro tem que cumprir as nossas leis e obedecer aos nossos poderes instituídos
A emergência da internet e a essencialidade que adquiriu num curtíssimo período de pouco mais de década para um amplo conjunto de práticas sociais e econômicas cotidianas têm suscitado enormes desafios políticos e jurídicos no exame de situações que, em outros contextos, pareceriam de relativamente simples solução consuetudinária. Polêmicas como as suscitadas pelo Uber ou pelo WhatsApp são bons exemplos. Legisladores e juízes se desdobram buscando produzir ou aplicar leis a situações que, não raro, podem parecer inusitadas.

Em 16 de dezembro último, a juíza Sandra Marques, de São Bernardo, São Paulo, decretou a suspensão, por 48 horas, dos serviços do WhatsApp. Um dia depois, a ordem foi revogada pelo desembargador Xavier de Souza, da Justiça paulista. A juíza alegou que tomara a decisão porque a empresa controladora do WhatsApp, a Facebook Inc., com endereço e CNPJ no Brasil, ignorou solenemente a ordem judicial de fornecer ao Ministério Público alguns dados sobre uma investigação criminal. Já o desembargador considerou a decisão “desproporcional” por atingir milhões de pessoas, sendo recomendável, antes, aplicar à empresa multas crescentes.

Claro, o tema provocou muitos debates, não faltando especialistas em leis para advogar, com base nessas leis, tanto a favor quanto contra a decisão da juíza. Talvez tenha faltado o debate político, antecedente ao jurídico. WhatsApp e Facebook são useiros e vezeiros em ignorar decisões judiciais em outros países que não os Estados Unidos, não sendo a primeira vez que afrontam a Justiça brasileira — fato que o desembargador Souza já deveria saber. 

Alegam que suas leis são as do Estado da Califórnia. Ora, nenhuma empresa pode desrespeitar ou não fazer caso da soberania de qualquer Estado, muito menos a do nosso Estado brasileiro. Qualquer empresa, esteja onde estiver, se atuar em território brasileiro tem que cumprir as nossas leis e obedecer aos nossos poderes instituídos. Isto, inclusive, está claro no Marco Civil da Internet: as leis que valem são as nossas. Só por isso, atitudes como as do Facebook e do WhatsApp já deveriam causar revolta a qualquer brasileiro, não lhes merecendo nenhuma solidariedade.

WhatsApp não é internet, Facebook muito menos. São plataformas, entre outras, disponíveis na internet. Dizer que a suspensão do WhatsApp derrubou a comunicação das pessoas seria similar a argumentar que uma manifestação de rua impede o direito de ir e vir. Num caso e noutro, num Estado Democrático de Direito, desculpem-se os transtornos, mas se busquem caminhos alternativos... Aliás, no caso do WhatsApp, como sabido, milhões de brasileiros logo encontraram outros caminhos.

Qualquer Estado, nos termos da sua legislação e dos poderes de suas instituições, pode suspender o funcionamento de alguma indústria ou serviço, caso estejam infringindo as leis. Restaurantes podem ser fechados, bancos podem sofrer intervenção federal, universidades podem ser descredenciadas e fechadas... Por que o WhatsApp não pode? Se, porém, entendermos que a suspensão do WhatsApp poderia causar um transtorno social com dimensões similares à interrupção dos serviços, digamos, de uma empresa fornecedora de energia elétrica, então estaríamos lhe atribuindo a importância de um “serviço essencial”. Neste caso, precisaria ser declarado “serviço público” e submetido à legislação pertinente... Se não é o caso, o WhatsApp pode ser paralisado por algumas horas, a bem da Justiça, tanto quanto, por exemplo, pode ser fechado um supermercado pego vendendo produtos com validade vencida. O consumidor que busque alternativa.

Empresas que prestam serviços suportados na internet, assim como também as pessoas que usam a internet, não estão acima das leis, ou sob alguma proteção legal especial. Não existem “direitos digitais”. Por acaso existiram outrora “direitos analógicos”? Existem direitos humanos, independentemente de tecnologias. Nesse sentido, nenhum direito expressão, ir e vir, saúde, moradia, privacidade, qualquer outro — foi infringido pela decisão de uma Juíza brasileira, no cumprimento das suas atribuições. Se a liberdade de expressão estivesse dependente do WhatsApp (felizmente não está!), nós nos encontraríamos diante de flagrante caso de monopólio nas comunicações, vedado pela nossa Constituição.

A base de um Estado Democrático de Direito é uma justiça eficaz, isto é, que possa ter suas decisões cumpridas. Facebook e WhatsApp talvez tenham aprendido, graças ao desembargador Souza, que, no Brasil, decisões da Justiça não precisam ser cumpridas. Aliás, sabe-se que o Facebook já deve, ao Estado brasileiro, mais de R$ 12 milhões, em multas. Certamente uma bagatela diante da fortuna de Mark Zuckerberg. Talvez por isso, ele tenha se esquecido de pagar...

Fonte: Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil