A impunidade está de volta
Não foi apenas a Lava Jato de Curitiba que colocou e manteve em ação o processo de combate à corrupção. Havia um ambiente de intolerância com a roubalheira do dinheiro público, ao mesmo tempo causa e consequência do Mensalão e do Petrolão. Esse ambiente envolveu a sociedade e, daí, diversos níveis do Judiciário e da política.
Foi nesse clima, por exemplo, que tramitaram no Congresso três propostas de emenda constitucional (PECs) cujo objetivo era criar instrumentos legais mais adequados ao combate à corrupção. Mas deram no contrário. A PEC da improbidade administrativa – que definia crimes e punições para o mau uso do dinheiro público – tornou-se conhecida, apropriadamente, como a PEC da impunidade. Dificultou ao máximo a responsabilização dos agentes públicos.
Outras duas PECs dormem nas gavetas congressuais: uma coloca na Constituição a prisão para condenados em sentença de segunda instância; outra limita o foro privilegiado de milhares de políticos e servidores públicos.
O caso mais recente beneficiou o ex-deputado Eduardo Cunha, que havia sido condenado pela 10ª. Vara Federal de Brasília a 24 anos de prisão por corrupção. Havia provas abundantes, como o rastreamento de pagamentos feitos no exterior. Nada disso foi levado em consideração. A Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região entendeu o seguinte: como a denúncia também tratava de crimes eleitorais, o caso deveria ter tramitado na Justiça Eleitoral. Solução: anula-se tudo e manda para um tribunal eleitoral recomeçar tudo – estando claro que simplesmente vai parar ou prescrever.
Em setembro, Cunha havia sido beneficiado pela Segunda Turma do STF, no mesmo procedimento. Não se consideraram provas, mas que o caso tramitara no tribunal errado. Tudo anulado e a caminho da prescrição.
Como no caso do triplex do Guarujá. As sentenças que condenaram Lula em primeira, segunda e terceira instâncias foram anuladas porque, depois de quatro anos, a Segunda Turma do STF, sempre liderada por Gilmar Mendes, entendeu que o processo deveria ter começado em Brasília e não em Curitiba. Mas nem recomeçou em Brasília. O Ministério Público Federal reconheceu a prescrição dos crimes atribuídos a Lula, por causa de sua idade, 76 anos.
Várias sentenças dadas pelo juiz Marcelo Bretas, da Justiça Federal do Rio, inclusive envolvendo o ex-governador Sérgio Cabral, também foram anuladas por argumentos processuais só “percebidos” depois de anos de tramitação.
Foi a Segunda Turma do STF que deu início a essa mudança de, digamos, “entendimento processual”. Políticos e seus advogados criminalistas, que acumulavam seguidas derrotas nos tribunais, dizem que agora se respeita o devido processo legal. Quando se argumenta que cortes superiores levaram tanto tempo num entendimento e, de repente, parece que do nada, mudaram – dizem apenas: antes tarde….
E simplesmente foi destruído pelo próprio Bolsonaro, quando ele se viu apanhado em denúncias que envolviam também sua família e correligionários. Tudo que havia sido dito na campanha era fake.
Do mesmo modo, não estamos voltando ao “devido processo legal”.
Trata-se, ao contrário, da volta das velhas garantias de impunidade.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
Coluna publicada em O Globo - Economia 11 de dezembro de 2021