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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Todos são iguais perante a lei ou não?


Não está em jogo a coerência de Lula, mas a existência de exceções ao direito à igualdade

No Brasil, discute-se hoje a validade da cláusula mais pétrea da ordem constitucional de um Estado de Direito que se preze, a de que todos são iguais perante a lei. Como se fosse algo banal, que possa ser abandonado sempre que algum potentado se sentir prejudicado por ela. O princípio, que já não é respeitado a rigor agora, pode ser definitivamente jogado no lixo caso Lula não possa ser preso após a condenação em segunda instância e seja autorizado a disputar a Presidência da República, como se fosse inocente e elegível. Não pode! [o principio constitucional 'todos são iguais perante a lei' passou a ser ostensivamente desrespeitado desde o surgimento da primeira cota racial, em que o mérito perdeu espaço para a cor da pele e se instituiu no Brasil o racismo ao contrário.]

É público e notório que o petista foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo juiz Sergio Moro, da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba, a nove anos e seis meses de cadeia. Até aí, morreu o Neves, pois as ruas brasileiras estão cheias de condenados desfilando impunes para que se atenda a outro preceito sagrado, do Direito Penal: a presunção de inocência. Só que o panorama visto da ponte mudou desde o dia 24 de janeiro, quando o acusado de ter trocado um apartamento triplex na Praia das Astúrias, no Guarujá, por favores prestados com dinheiro público à empreiteira OAS, acusada de pagar propinas a figurões da política e da máquina pública, teve essa condenação confirmada. A confirmação foi por decisão unânime (3 a 0) da 8.ª turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. Os desembargadores acharam por bem aumentar sua pena para 12 anos e um mês e com isso o ex-presidente se tornou inelegível por dispositivo da Lei da Ficha Limpa, norma eleitoral de iniciativa popular, aprovada no Congresso e sancionada pelo próprio condenado, em 2010.

Não se cobra coerência do signatário, nem ao populismo que ele professa, ou do Partido dos Trabalhadores (PT), que esperneia pelo fato de Dilma Rousseff ter sido deposta da Presidência por decisão do Congresso, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro do STF Gilmar Mendes diz que a inelegibilidade de Lula ématemática”. Matemática também é a decisão do TRF-4 ao negar presunção de inocência ao condenado


Qualquer calouro de Direito sabe que a decisão em especial quando unânime, como é o caso – em segunda instância interrompe a discussão sobre a materialidade (o fato) do crime. As fartas provas contra Lula, aceitas pela unanimidade dos julgadores, encerram a discussão do ponto de vista factual. Só por isso, é possível definir neste texto impresso, com responsabilidade legal, que Lula é criminoso por corrupção e lavagem de dinheiro. Ponto final. Ficam em aberto discussões de natureza apenas de Direito, que podem ser levadas ao próprio TRF-4, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, em último caso, ao STF.

Com o açodamento de rotina, a politicamente histérica e juridicamente ineficaz defesa do criminoso lança mão de recursos possíveis e chicanas suspeitas para empurrar a discussão da inelegibilidade, tornar sua candidatura à Presidência possível e evitar sua prisão, ou seja, a execução da pena. Não se persegue a perfeição, da qual, como se sabe, a pressa é inimiga figadal, mas se investe no reino da fantasia e, sobretudo, da confusão retórica para ganhar tempo e resgatar o que reste de salvados do incêndio.

Entre mortos e feridos, o PT quer dar fôlego à legenda e evitar que se finde. Para tanto conta com a ferocidade de seus dirigentes e militantes e a passividade, mais do que compreensiva, cúmplice dos bandos de suspeitos que contam com a prerrogativa de função, mais do que com a presunção de inocência, para evitar condenação similar à de Lula. Por isso, até agora é de duvidar que a cúpula do Judiciário confirme que há magistrados independentes em Brasília, repetindo o moleiro prussiano que contava com juízes em Berlim para impedir o arbítrio de seu soberano ao tentar desapropriar o moinho dele e atender a interesses exclusivos de sua majestade. Haverá juízes na capital? A ver...

Logo após a confirmação da condenação de Lula, a presidente do PT, senadora [e ré]  Gleisi Hoffmann (PR), e o líder da bancada petista no Senado, Lindbergh Farias (RJ), misturaram o lema pacifista de Gandhi (resistência passiva) com as palavras de ordem nazi-fascistas de “rebelião cidadã” e da “luta nas ruas” para ameaçar não as autoridades, mas o Estado de Direito. Gleisi, cuja batata está assando no Judiciário, disse que “mexeram num vespeiro”, sem que haja evidência de picadas de vespas pelo País afora. Escudados no foro privilegiado, eles têm podido blefar à vontade, sem que os responsáveis pela manutenção da lei e pela higidez da democracia reajam à altura. Lula, que acusou a Suprema Corte de “acovardada”, agora promete combater as instâncias inferiores, sem fazer mossa nos ministros do STF e do STJ. O que dirá a presidente do STF, Cármen Lúcia, tão ciosa da defesa corporativa da magistratura?

É que Lula e o PT não estão isolados nessa luta. Torquato Jardim, ministro da Justiça do governo do “não investigável” Temer, já fez suas contas e pontificou que relativa é a verdade aritmética inamovível de que os seis votos que derrotaram cinco no STF representam maioria a ser respeitada na decisão sobre prisão após segunda instância. Não é que ele despreze a tabuada, mas entrou na fila de quem tenta garantir privilégio e imunidade (com pê no meio) com a aplicação da regra do “quem pode mais chora menos” em terra de Cabral e Cunha. Repete a lição que o próprio Lula lhe deu quando tentou retirar o ex-inimigo e agora aliadíssimo Sarney da vala dos cidadãos ordinários sem mandatos nem cargos comissionados. Valha-nos Deus!

Não se engane com lorotas de cúmplices e falsos oponentes. O pretexto mais fascistoide desta pátria de desigualdades, “eleição sem Lula é fraude”, que pelo menos é sincero e apaixonado, é irmão siamês dessa canalhice do “prefiro derrotar Lula nas urnas”. Está aí o lema que melhor define e mais confirma que, na verdade, está é a República dos canalhas.

José Nêumanne, Jornalista, poeta e escritor

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Péssimos exemplos

O Judiciário, que combate a corrupção alheia, não pode brigar por privilégio ilegítimo

A abertura do Ano Judiciário de 2018, ontem, no Supremo, virou um ato de desagravo à Justiça, que está na berlinda com a Lava Jato e é atacada sem cerimônia pelo PT e pelo próprio ex-presidente Lula desde que ele foi condenado pelo juiz Sérgio Moro e depois pelo TRF-4 .  Em discurso, a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, declarou que é “inadmissível e inaceitável desacatar a Justiça”. Em seguida, a procuradora-geral Raquel Dodge lembrou singelamente o óbvio, que as decisões judiciais “devem ser cumpridas”. E o presidente da OAB, Claudio Lamachia, condenou tentativa de “constranger e influenciar” a Justiça.

Tudo isso no dia seguinte a um encontro de entidades de juízes, magistrados e procuradores que criticaram duramente os ataques à Justiça, em referência às vezes indireta, às vezes mesmo direta, à declaração de Lula de que não respeitaria a decisão do TRF-4, à nota do PT classificando essa decisão de “farsa judicial” e às barbaridades que senadores como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias andam falando.  Houve também uma defesa em cadeia ao entendimento do Supremo de que condenados em segunda instância, caso de Lula, já podem ser presos. Cármen Lúcia abriu a fila, ao anunciar publicamente que não poria em pauta a revisão dessa questão. Na quarta, as entidades do Judiciário foram na mesma linha. Na quinta, Dodge ratificou. Fecha-se o cerco.

A defesa às decisões do Judiciário, uma constante de Cármen Lúcia, está sendo neste momento um recado duro para o PT e para Lula, mas não custa lembrar que não são só eles, muito pelo contrário, os alvos da Lava Jato. Os demais partidos talvez sejam mais discretos, ou tenham mais prurido, ou ajam mais institucionalmente nas críticas, mas eles também não morrem de amores por essa “nova” Justiça que parte para cima, incisivamente, decisivamente, dos poderosos de colarinho branco e dos crimes de corrupção. [a prisão de Lula, o mais rápido possível, é mais eficiente para demonstrar a eficiência da Justiça e a decisão do Poder Judiciário em prender, enjaular, os bandidos que condenam, do que qualquer ato de desagravo à Justiça e será um recado claro e inequívoco de que no Brasil, bandido, seja ex-presidente ou vagabundo (no caso do Lula as duas características se unem), cometeu crime, foi condenado, cumpre a pena - ainda que seja de cadeia dura.

Postergar, a qualquer pretexto, a prisão de Lula é um recado mais claro de que bandidos poderosos, ou ex-poderosos  com pretensões a voltar ao poder, continuam e continuarão não sendo presos = será a desmoralização da Justiça.]

Mas... os mesmos juízes, desembargadores e procuradores, que têm não apenas o direito, mas também o dever de defender o Judiciário, não estão sabendo lidar com uma outra face da moeda. Eles têm de reagir à altura aos ataques às decisões de juízes e tribunais, mas não devem permitir que o corporativismo comprometa os méritos, avanços e louros do Judiciário.  Na mesma reunião em que falaram grosso contra os ataques do PT, as entidades de juízes e procuradores bateram o martelo a favor de um manifesto exigindo a manutenção dos privilégios de suas categorias. Colocaram-se contra a reforma da Previdência para, por exemplo, manter os salários e os índices de reajuste salarial mesmo depois de aposentados.

Pior: insistem no auxílio-moradia indiscriminado, mesmo para quem sempre morou no mesmo lugar e mesmo para juízes como Marcelo Bretas, do Rio, que são casados com juízas e acumulam dois auxílios-moradia para morar numa só casa. Não é nada, não é nada, são R$ 8.400 mensais cobrados do meu, do seu, do nosso e daquele rico dinheirinho da parte da população que mais sofre com crises e déficits. [muitos benefícios concedidos aos juízes até que podem ser parcialmente explicados, justificados, mas o auxílio-moradia é o mais absurdo de todos, totalmente injustificável, especialmente quando concedido a magistrados  que moram na mesma cidade onde trabalham e mais aberrante é quando são pagos dois auxilios-moradia a um casal de magistrados que além de casados residem na mesma casa, dividem o mesmo quarto, a mesma cama.

É tão absurdo o auxílio-moradia com  as duas agravantes citadas, que deixa de ser um privilégio e passa a ser uma nódoa que mancha o Poder Judiciário e que só apagada com a devolução pelos favorecidos, devidamente atualizada.]

Daí porque Cármen Lúcia foi dura ao reagir aos ataques do PT e de Lula, mas também mandou um recado claríssimo ao corporativismo do Judiciário no seu discurso de ontem: “A nós, servidores públicos, o acatamento irrestrito à lei impõe-se como dever acima de qualquer outro. Constitui mau exemplo para o cidadão. E o mau exemplo contamina e compromete”.  A Justiça que combate a corrupção alheia deve ter vergonha de dar “mau exemplo”. Estourar o teto constitucional (R$ 33.700) para ganhar o dobro, ou mais, à custa de auxílios-moradia ilegítimos e coisas assim é um péssimo exemplo. Ainda mais numa hora dessas.


Eliane Cantanhêde -  O Estado de S. Paulo