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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Péssimos exemplos

O Judiciário, que combate a corrupção alheia, não pode brigar por privilégio ilegítimo

A abertura do Ano Judiciário de 2018, ontem, no Supremo, virou um ato de desagravo à Justiça, que está na berlinda com a Lava Jato e é atacada sem cerimônia pelo PT e pelo próprio ex-presidente Lula desde que ele foi condenado pelo juiz Sérgio Moro e depois pelo TRF-4 .  Em discurso, a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, declarou que é “inadmissível e inaceitável desacatar a Justiça”. Em seguida, a procuradora-geral Raquel Dodge lembrou singelamente o óbvio, que as decisões judiciais “devem ser cumpridas”. E o presidente da OAB, Claudio Lamachia, condenou tentativa de “constranger e influenciar” a Justiça.

Tudo isso no dia seguinte a um encontro de entidades de juízes, magistrados e procuradores que criticaram duramente os ataques à Justiça, em referência às vezes indireta, às vezes mesmo direta, à declaração de Lula de que não respeitaria a decisão do TRF-4, à nota do PT classificando essa decisão de “farsa judicial” e às barbaridades que senadores como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias andam falando.  Houve também uma defesa em cadeia ao entendimento do Supremo de que condenados em segunda instância, caso de Lula, já podem ser presos. Cármen Lúcia abriu a fila, ao anunciar publicamente que não poria em pauta a revisão dessa questão. Na quarta, as entidades do Judiciário foram na mesma linha. Na quinta, Dodge ratificou. Fecha-se o cerco.

A defesa às decisões do Judiciário, uma constante de Cármen Lúcia, está sendo neste momento um recado duro para o PT e para Lula, mas não custa lembrar que não são só eles, muito pelo contrário, os alvos da Lava Jato. Os demais partidos talvez sejam mais discretos, ou tenham mais prurido, ou ajam mais institucionalmente nas críticas, mas eles também não morrem de amores por essa “nova” Justiça que parte para cima, incisivamente, decisivamente, dos poderosos de colarinho branco e dos crimes de corrupção. [a prisão de Lula, o mais rápido possível, é mais eficiente para demonstrar a eficiência da Justiça e a decisão do Poder Judiciário em prender, enjaular, os bandidos que condenam, do que qualquer ato de desagravo à Justiça e será um recado claro e inequívoco de que no Brasil, bandido, seja ex-presidente ou vagabundo (no caso do Lula as duas características se unem), cometeu crime, foi condenado, cumpre a pena - ainda que seja de cadeia dura.

Postergar, a qualquer pretexto, a prisão de Lula é um recado mais claro de que bandidos poderosos, ou ex-poderosos  com pretensões a voltar ao poder, continuam e continuarão não sendo presos = será a desmoralização da Justiça.]

Mas... os mesmos juízes, desembargadores e procuradores, que têm não apenas o direito, mas também o dever de defender o Judiciário, não estão sabendo lidar com uma outra face da moeda. Eles têm de reagir à altura aos ataques às decisões de juízes e tribunais, mas não devem permitir que o corporativismo comprometa os méritos, avanços e louros do Judiciário.  Na mesma reunião em que falaram grosso contra os ataques do PT, as entidades de juízes e procuradores bateram o martelo a favor de um manifesto exigindo a manutenção dos privilégios de suas categorias. Colocaram-se contra a reforma da Previdência para, por exemplo, manter os salários e os índices de reajuste salarial mesmo depois de aposentados.

Pior: insistem no auxílio-moradia indiscriminado, mesmo para quem sempre morou no mesmo lugar e mesmo para juízes como Marcelo Bretas, do Rio, que são casados com juízas e acumulam dois auxílios-moradia para morar numa só casa. Não é nada, não é nada, são R$ 8.400 mensais cobrados do meu, do seu, do nosso e daquele rico dinheirinho da parte da população que mais sofre com crises e déficits. [muitos benefícios concedidos aos juízes até que podem ser parcialmente explicados, justificados, mas o auxílio-moradia é o mais absurdo de todos, totalmente injustificável, especialmente quando concedido a magistrados  que moram na mesma cidade onde trabalham e mais aberrante é quando são pagos dois auxilios-moradia a um casal de magistrados que além de casados residem na mesma casa, dividem o mesmo quarto, a mesma cama.

É tão absurdo o auxílio-moradia com  as duas agravantes citadas, que deixa de ser um privilégio e passa a ser uma nódoa que mancha o Poder Judiciário e que só apagada com a devolução pelos favorecidos, devidamente atualizada.]

Daí porque Cármen Lúcia foi dura ao reagir aos ataques do PT e de Lula, mas também mandou um recado claríssimo ao corporativismo do Judiciário no seu discurso de ontem: “A nós, servidores públicos, o acatamento irrestrito à lei impõe-se como dever acima de qualquer outro. Constitui mau exemplo para o cidadão. E o mau exemplo contamina e compromete”.  A Justiça que combate a corrupção alheia deve ter vergonha de dar “mau exemplo”. Estourar o teto constitucional (R$ 33.700) para ganhar o dobro, ou mais, à custa de auxílios-moradia ilegítimos e coisas assim é um péssimo exemplo. Ainda mais numa hora dessas.


Eliane Cantanhêde -  O Estado de S. Paulo


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