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segunda-feira, 26 de junho de 2023

Grandes Eleitores - O Globo

 Nos EUA, os eleitores são soberanos; no Brasil, soberanos são os juízes 
 

O plenário do TSE durante o julgamento de Bolsonaro

 O plenário do TSE durante o julgamento de Bolsonaro Evaristo Sá/AFP

Demétrio Magnoli  
 
Denunciado pela retenção ilegal de documentos sigilosos, Donald Trump pode ser condenado à prisão. 
Mesmo nessa hipótese, não perderá o direito de concorrer à Presidência. Jair Bolsonaro, que enfrenta julgamento no TSE sob acusações de ataques ao sistema eleitoral e às instituições democráticas, poderá se tornar inelegível, mas não corre risco de prisão. 
Nos Estados Unidos, os eleitores são soberanos; no Brasil, soberanos são os juízes. [Em nossa opinião, a soberania dos juízes, ocorre especialmente quando são ministros do STF ou TSE, situação em que muitas vezes uma decisão monocrática vale mais do que uma lei - sendo que tal lei foi aprovada no Congresso Nacional, por decisão da maioria dos representantes do povo que compõe as duas casas legislativas.] 
 
Um século atrás, em 1920, o líder socialista americano Eugene Debs, condenado por crime de sedição, concorreu à Presidência enquanto servia sentença numa penitenciária de Atlanta e recebeu 914 mil votos (3,4% do total)
Os Estados Unidos separam os domínios da Justiça e da política: o primeiro compete aos tribunais; o segundo, aos eleitores
Nada, nem mesmo a cadeia, anula os direitos políticos, que emanam da cidadania. 
 
No Brasil, cidadania é coisa secundária, incerta, precária. Daí que um tribunal especial, o TSE, tem a prerrogativa de decidir quem pode e quem não pode se candidatar a cargos eletivos. 
No fundo, os juízes operam com o poder de cassar a soberania popular. Os eleitores perdem o direito de votar nos candidatos de sua preferência.  
A tutela judicial dos eleitores ocorre sistematicamente nas disputas para cargos parlamentares. 
Desde 2018, transformou-se em fator decisivo nas eleições presidenciais.
Quem ocupará o Planalto? Perguntem, antes, aos Grandes Eleitores (os juízes), que dirão em quem os pequenos eleitores (o povo) podem votar. Bolsonaro chegou à Presidência numa eleição marcada pelo veto judicial à participação de Lula. [ [*] consequência de condenações recebidas pelo citado - o  petista foi preso por ter cometidos vários crimes, confirmados em várias sentenças condenatórias proferidas por 9 (nove) juízes distintos e confirmadas em três instâncias; tanto que o Supremo, em sua supremacia suprema não conseguiu inocentá-lo, apenas o descondenou. Depois, como os juízes mudaram de ideia, Lula retornou ao Planalto. Tudo indica que, em 2026, disputará a reeleição em pleito sem a presença de Bolsonaro, graças à decisão soberana dos juízes. 
 
O socialista Debs foi punido por conclamar à resistência contra o alistamento militar. Seus eleitores, porém, não foram punidos. Puderam exercer plenamente o direito de voto.  
No Brasil, entretanto, prefere-se punir os eleitores — os de Lula, [*] antes, e os de Bolsonaro, agora. Ao vetar candidaturas, sob o pretexto de punir indivíduos, os juízes cancelam direitos de vastas parcelas da sociedade. No fundo, é a democracia que vai para a cadeia.

A Lei Complementar nº 64, de 1990, elencou uma série de situações de inelegibilidade. Duas décadas depois, a Lei Complementar nº 135 (Lei da Ficha Limpa) adicionou dez outras situações capazes de barrar a candidatura de indivíduos condenados por um tribunal colegiado, mesmo em processos que admitem recurso. Voluntariamente, os políticos concederam aos juízes a tutela sobre os eleitores.

A prerrogativa judicial de configurar as disputas eleitorais, eliminando de antemão certos candidatos, conduz à politização do sistema de Justiça. Magistrados, em todas as instâncias, sabem que são Grandes Eleitores. Suas preferências partidárias ou ideológicas tendem a contaminar suas decisões em processos cujos réus são políticos. 

Na ponta oposta, cria-se mais um forte incentivo para que os políticos articulem a indicação de amigos leais a vagas nos tribunais superiores.

Atrás da legislação sobre inelegibilidade esconde-se um intercâmbio tácito. Eis a barganha: em troca da concessão aos juízes do poder de tutela sobre os eleitores, os políticos esperam ser poupados de punições criminais. 
As acusações contra Bolsonaro envolvem crimes gravíssimos, [???] puníveis com a prisão. Contudo parecem escassas as possibilidades de que o ex-presidente conclua sua carreira política na cela de uma penitenciária. No fim, ao que tudo indica, apenas seus eleitores serão sentenciados.

Num país viciado no jogo da polarização, princípios políticos perderam valor. A saga de Lula, impedido arbitrariamente de concorrer ao Planalto, nada ensinou ao Brasil — nem mesmo ao PT. Se, anos atrás, a direita bolsonarista celebrou a inelegibilidade de Lula, hoje a esquerda lulista prepara-se para celebrar a inelegibilidade de Bolsonaro. Nos dois lados, o que se comemora, de fato, é a cassação da soberania popular.

Demétrio Magnoli, colunista - O Globo