Nos EUA, os eleitores são soberanos; no Brasil, soberanos são os juízes
O plenário do TSE durante o julgamento de Bolsonaro Evaristo Sá/AFP
Demétrio Magnoli
Denunciado pela retenção ilegal de documentos sigilosos, Donald Trump pode ser condenado à prisão. Mesmo nessa hipótese, não perderá o direito de concorrer à Presidência. Jair Bolsonaro, que enfrenta julgamento no TSE
sob acusações de ataques ao sistema eleitoral e às instituições
democráticas, poderá se tornar inelegível, mas não corre risco de
prisão.
Nos Estados Unidos, os eleitores são soberanos; no Brasil,
soberanos são os juízes. [Em nossa opinião, a soberania dos juízes, ocorre especialmente
quando são ministros do STF ou TSE, situação em que muitas vezes uma
decisão monocrática vale mais do que uma lei - sendo que tal lei foi
aprovada no Congresso Nacional, por decisão da maioria dos
representantes do povo que compõe as duas casas legislativas.]
Um século atrás, em 1920, o líder socialista americano Eugene Debs,
condenado por crime de sedição, concorreu à Presidência enquanto servia
sentença numa penitenciária de Atlanta e recebeu 914 mil votos (3,4% do
total).
Os Estados Unidos separam os domínios da Justiça e da política: o
primeiro compete aos tribunais; o segundo, aos eleitores.
Nada, nem
mesmo a cadeia, anula os direitos políticos, que emanam da cidadania.
No Brasil, cidadania é coisa secundária, incerta, precária. Daí que um
tribunal especial, o TSE, tem a prerrogativa de decidir quem pode e quem
não pode se candidatar a cargos eletivos.
No fundo, os juízes operam
com o poder de cassar a soberania popular. Os eleitores perdem o direito
de votar nos candidatos de sua preferência.
A tutela judicial dos
eleitores ocorre sistematicamente nas disputas para cargos
parlamentares.
Desde 2018, transformou-se em fator decisivo nas eleições
presidenciais.
Quem ocupará o Planalto? Perguntem, antes, aos Grandes Eleitores (os
juízes), que dirão em quem os pequenos eleitores (o povo) podem votar.
Bolsonaro chegou à Presidência numa eleição marcada pelo veto judicial à
participação de Lula. [ [*] consequência de condenações recebidas pelo citado - o petista foi preso por ter cometidos vários crimes, confirmados em várias sentenças condenatórias proferidas por 9 (nove) juízes distintos e confirmadas em três instâncias; tanto que o Supremo, em sua supremacia suprema não conseguiu inocentá-lo, apenas o descondenou.] Depois, como os juízes mudaram de ideia, Lula
retornou ao Planalto. Tudo indica que, em 2026, disputará a reeleição em
pleito sem a presença de Bolsonaro, graças à decisão soberana dos
juízes.
O socialista Debs foi punido por conclamar à resistência contra o
alistamento militar. Seus eleitores, porém, não foram punidos. Puderam
exercer plenamente o direito de voto.
No Brasil, entretanto, prefere-se
punir os eleitores — os de Lula, [*] antes, e os de Bolsonaro, agora. Ao
vetar candidaturas, sob o pretexto de punir indivíduos, os juízes
cancelam direitos de vastas parcelas da sociedade. No fundo, é a
democracia que vai para a cadeia.
A Lei Complementar nº 64, de 1990, elencou uma série de situações de
inelegibilidade. Duas décadas depois, a Lei Complementar nº 135 (Lei da
Ficha Limpa) adicionou dez outras situações capazes de barrar a
candidatura de indivíduos condenados por um tribunal colegiado, mesmo em
processos que admitem recurso. Voluntariamente, os políticos concederam
aos juízes a tutela sobre os eleitores.
A prerrogativa judicial de configurar as disputas eleitorais,
eliminando de antemão certos candidatos, conduz à politização do sistema
de Justiça. Magistrados, em todas as instâncias, sabem que são Grandes
Eleitores. Suas preferências partidárias ou ideológicas tendem a
contaminar suas decisões em processos cujos réus são políticos.
Na ponta
oposta, cria-se mais um forte incentivo para que os políticos articulem
a indicação de amigos leais a vagas nos tribunais superiores.
Atrás da legislação sobre inelegibilidade esconde-se um intercâmbio
tácito. Eis a barganha: em troca da concessão aos juízes do poder de
tutela sobre os eleitores, os políticos esperam ser poupados de punições
criminais.
As acusações contra Bolsonaro envolvem crimes gravíssimos, [???] puníveis com a prisão. Contudo parecem escassas as possibilidades de que
o ex-presidente conclua sua carreira política na cela de uma
penitenciária. No fim, ao que tudo indica, apenas seus eleitores serão
sentenciados.
Num país viciado no jogo da polarização, princípios políticos perderam
valor. A saga de Lula, impedido arbitrariamente de concorrer ao
Planalto, nada ensinou ao Brasil — nem mesmo ao PT. Se, anos atrás, a
direita bolsonarista celebrou a inelegibilidade de Lula, hoje a esquerda
lulista prepara-se para celebrar a inelegibilidade de Bolsonaro. Nos
dois lados, o que se comemora, de fato, é a cassação da soberania
popular.