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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Por que a extrema-esquerda ataca o catolicismo - Ideias

Queima de igrejas e invasão de missas: por que a esquerda ataca o catolicismo

A extrema-esquerda anda em pé de guerra com a Igreja Católica na América Latina. Na última semana, a invasão liderada pelo vereador Renato Freitas, do Partido dos Trabalhadores (PT), à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Curitiba, chocou os fiéis e os espectadores que tiveram acesso às imagens.



Paróquia da Assunção, em Santiago, no Chile, em outubro de 2020. Manifestantes de esquerda invadiram, vandalizaram e roubaram a igreja.| Foto: EFE

O episódio de repercussão nacional, que foi solenemente ignorado pelo maior nome do PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, remete a outros ocorridos no continente nos últimos quatro anos: no dia 1º de maio de 2019, um grupo da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) invadiu uma igreja dedicada à Nossa Senhora de Fátima na cidade de San Cristóbal, Venezuela, lançando bombas de gás lacrimogênio durante uma missa cheia de idosos.

Já o mês de outubro de 2020 foi marcado pela destruição de duas igrejas em Santiago, no Chile - a igreja de São Francisco de Borja e a paróquia da Assunção -, com direito a publicação de fotos nas redes sociais dos agressores ao lado de imagens religiosas destruídas.

Em 31 de agosto do ano passado, manifestantes picharam a catedral de Buenos Aires, na Argentina, com frases contra a Igreja, contra o clero e contra a Bíblia. No mês de novembro, apoiadores do regime cubano fizeram um ato de repúdio em frente à cúria de Camaguey. O Partido Comunista ameaçou um sacerdote de ir para a cadeia caso ele participasse das manifestações contra a ditadura que estavam previstas.

Condenações mútuas
A relação da Igreja Católica com a esquerda, contudo, nunca foi linear – especialmente na América Latina. Da parte do Vaticano, convém recordar as reiteradas e veementes condenações ao comunismo por parte dos papas dos últimos séculos, que remontam desde os tempos de Karl Marx: em 1846, na encíclica Qui Pluribus, o Papa Pio IX se referiu à "nefanda doutrina do comunismo, contrária ao direito natural, que, uma vez admitida, lança por terra os direitos de todos, a propriedade e até mesmo a sociedade humana".

Já na Quod Apostolici Muneris, de 1878, Leão XIII alertou contra “as facções dos que, sob diversas e quase bárbaras designações, chamam-se socialistas, comunistas ou niilistas", que "marchando aberta e confiadamente à luz do dia, ousam levar a cabo o que há muito tempo vêm maquinando: a derrocada de toda a sociedade civil”.

Finalmente, em 1891, pelas mãos de Leão XIII, a Igreja recebe a Rerum Renovarum: o texto fundacional do que viria se tornar a Doutrina Social da Igreja Católica. Depois de condenar a ganância que leva ao acúmulo desmedido de bens materiais e às injustiças sociais, o pontífice determina, contudo, que o "erro capital" no marxismo é "crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado". "Isto é uma aberração tal que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta”, explica.

Meio século depois, em 1931, o Papa Pio XI reforçou que "ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista”. Em 1937, classificaria a Revolução Russa como um "horrendo flagelo" e o comunismo como um "sistema cheio de erros e sofismas".

A esquerda que emergiu das revoluções do século XX também demonstrava suas opiniões sobre o cristianismo. Estima-se que cerca de 1900 sacerdotes católicos tenham sido mortos pelas ditaduras de Lênin e Stálin, de acordo com um levantamento feito pela Administração Apostólica para Católicos da Rússia do Norte da Europa. Antes que Stálin decidisse "tolerar" a Igreja Ortodoxa Russa (depois de perceber que perdia apoio entre seus fiéis), o sanguinário ditador jogou o cristianismo na clandestinidade: durante os expurgos da década de 1930, pelo menos 100 mil pessoas foram condenadas e executadas por manterem alguma relação com a Igreja.

Décadas depois, Mao Tsé Tung não ficaria atrás. Com sua "Decisão sobre a Grande Revolução Cultural Proletária", publicada em 1966 pelo Partido Comunista, declarou seus objetivos de exterminar a educação e a religião. Como consequência, igrejas foram fechadas, demolidas ou vandalizadas e as práticas religiosas foram proibidas. Na mesma década, na América Latina, o guerrilheiro Ernesto Che Guevara proferiria sua famosa frase: “Asseguro a vocês que se Cristo cruzasse meu caminho eu faria o mesmo que Nietzsche: não hesitaria em esmagá-lo como um verme”.

João Paulo II
Se, de um lado, o século XX viu surgir o comunismo soviético, declaradamente anticatólico, e seus desmembramentos ao redor do mundo, do outro, também foi terreno de complexas batalhas entre religião e ideologia. A eleição de Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II, para o cargo de chefe da Igreja Católica, em 1978, marcaria o início de uma nova fase de embates. Nascido na Polônia comandada por Moscou, João Paulo II sabia o que significava crescer em um país onde estudar para ser padre era um ato subversivo por si só.

Não à toa, seu pontificado foi marcado por duras críticas à União Soviética e ao comunismo, que ele entendia como um “mal espiritual”, mais do que econômico, e combateu com discursos e atos. É conhecido o fato de que Wojtyla e o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, formariam uma das maiores alianças de todos os tempos, a ponto de trocarem informações essenciais para o combate ao bloco soviético.

Seria, contudo, durante o pontificado de João Paulo II que a Teologia da Libertação ganharia força precisamente no continente latino-americano. Fundada em 1968 com a Conferência de Medellín, em uma década o movimento encabeçado pelo sacerdote peruano Gustavo Gutierrez e pelo então frei franciscano Leonardo Boff, do Brasil, entre outros, chegaria às mãos da Congregação Para a Doutrina da Fé, para que seus documentos e ideais fossem julgados de acordo com a doutrina católica.

O resto é história: o prefeito da Congregação, o então cardeal Joseph Ratzinger, que acompanhava atentamente a ação dos revolucionários de esquerda, determinou o rechaço à Teologia da Libertação e deu ordem de silêncio a Leonardo Boff.

Como aponta seu biógrafo, Elio Guerriero, Ratzinger não apenas “via que a teologia da libertação não era, em hipótese alguma, um pensamento nascido do grito de injustiça do povo latino-americano; pelo contrário, considerava-o um pensamento criado em laboratório nas universidades alemãs ou americanas”. Sua posição seria endossada por João Paulo II, que faria questão de sublinhar a importância da “opção preferencial pelos pobres” proposta pelo movimento, sem cair nas esparrelas revolucionárias e materialistas.

Nada disso impediria que a Teologia da Libertação ganhasse espaço - e muito – na América Latina. Há que se lembrar que as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelo auge da ditadura militar no Brasil. Foi neste período que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) deu cobertura institucional às chamadas comunidades eclesiais de base (CEBs), de onde nasceria o Partido dos Trabalhadores.

De sua parte, João Paulo II tentava estabelecer uma relação diplomática, mesmo com a esquerda latino-americana. Embora tenha se tornado persona non grata na União Soviética, condição que só mudaria após a ascensão de Mikhail Gorbachev, o papa fez história ao visitar o líder revolucionário Fidel Castro, com quem teria estabelecido uma relação respeitosa, a ponto de convencê-lo a permitir que o povo cubano voltasse a celebrar as festas cristãs. Posteriormente, Bento XVI e Francisco também seriam recebidos pelo ditador – ambos com claras mensagens contra o regime. “Não se serve a ideologias, se serve a pessoas”, disse Francisco, em plena Plaza de la Revolución, em 2015.
Diplomacia: em 21 de janeiro de 1998, o papa João Paulo II foi à Cuba encontrar-se com o ditador Fidel Castro. Os cubanos foram autorizados a celebrar festas cristãs depois da visita (Poucos anos depois da fala, os ataques da extrema-esquerda às igrejas católicas se multiplicam pelo continente, ainda que a relação continue a ser complexa). O próprio Dom José Antônio Peruzzo, Arcebispo de Curitiba, que assina a nota de repúdio contra a invasão protagonizada pelo vereador do PT:  "A posição da Arquidiocese de Curitiba é de repúdio ante a profanação injuriosa. Também a Lei e a livre cidadania foram agredidas. Por outro lado, não se quer 'politizar', 'partidarizar' ou exacerbar as reações. Os confrontos não são pacificadores. O que se quer agora é salvaguardar a dignidade da maravilhosa, e também dolorosa, história daquele Templo”, diz a nota da Arquidiocese.

Há algumas hipóteses que ajudam a explicar os ataques. À época dos atos de vandalismo no Chile, houve quem relacionasse a destruição dos templos à relação da Igreja Católica com a ditadura de Augusto Pinochet. Nada justifica, contudo, os dizeres “muerte al Nazareno” na fachada de uma delas. Ocorre que é preciso levar em conta, também, que a esquerda mudou muito nas últimas décadas, abandonando o perfil sindical que outrora aliou-se à Igreja na formação das CEBs e cujas pautas eram estritamente ligadas à economia, e angariando apoiadores entre uma elite escolarizada e, sobretudo, secularizada, que não nutre qualquer afeição pelos símbolos religiosos associados aos novos demônios do “patriarcado” e do “racismo estrutural”.

A entrevista dada por Renato Freitas (PT) ao jornal O Estado de S. Paulo é, inclusive, um retrato fidedigno desse descolamento: “É muito contraditório: a gente construiu um espaço que, no final das contas, é gerido por um padre branco, de olhos azuis, descendente de europeus, que o ocupa sem a consciência do que aquilo de fato representa”, afirmou o parlamentar. Contanto que se questionem as “estruturas” com base em realidades materiais escolhidas arbitrariamente - como se o fato de o celebrante ser um homem branco de olhos azuis justificasse o desrespeito ao próprio sacerdote e todos os fiéis -, o senso de “sagrado” pode ser solapado. Como bem diagnosticou o papa polonês elevado aos altares católicos: trata-se de uma doença do espírito.

Maria Clara Vieira, colunista - Gazeta do Povo - IDEIAS