Há
cadáveres demais no noticiário. Concebido para matar um personagem, o ataque
ordenado por Donald Trump contra o general iraniano Qassim Suleimani, resultou
numa afronta a qualquer noção mínima de custo—benefício. No bombardeio ao
comboio de Soleimani, em território iraquiano, morreram outras quatro pessoas.
No cortejo fúnebre do general, em solo iraniano, feneceram por asfixia ou
pisoteamento mais 56 pessoas. No avião civil ucraniano abatido por militares do
Irã "por engano", carbonizaram-se 167 passageiros e nove tripulantes.
Ao admitir por pressão o erro que omitia por opção, o governo dos aiatolásreacendeu as ruas de Teerã.
Tudo
somado, desceram à cova, além de Soleimani, 236 pessoas. Não há vestígio de
caixão com a bandeira americana em cima. Suleimani tinha sangue nas mãos.
Comandava a unidade de elite da Guarda Revolucionária do Irã. Idealizava ações
terroristas, terceirizando-as. Trump alega que o general tramava atacar
embaixadas americanas. Ninguém é contra a ação antiterror, sobretudo depois que
a turma de Osama Bin Laden enfiou um par de jatos nas torres gêmeas de Nova
York. Mas Trump já asfixiava o Irã com sucesso. Fazia isso por meio de embargos
que deixaram a economia do país em frangalhos.
Ah, que saudade da Guerra Fria! Naquela época, o mundo sabia que podia
morrer a qualquer momento. Se acontecesse o pior, mísseis americanos cruzariam
com mísseis soviéticos. E as duas potências se aniquilariam mutuamente,
eliminando o resto do mundo por contaminação radioativa. Foram para o beleléu a
União Soviética e a Guerra Fria. Houve grande alívio. Mas sobreveio o fantasma
do terror, que também está associado ao flagelo atômico. A crise agora inclui
um ingrediente perturbador: a falta de nitidez. Muitos tentam reduzir a coisa a
um mero choque de civilizações. Algo como Islã versus Grande Satã. Tentativa vã
de recriar a fórmula simplificadora da Guerra Fria —dessa vez com uma potência
só.
Impossível
simplificar os interesses assentados no Oriente Médio. Nem só de petróleo é feita
a encrenca. Não se enxerga, por exemplo, uma fronteira capaz
de delimitar os
direitos de Israel e os anseios da Palestina.
Como satanizar o regime
arbitrário dos aiatolás e conviver harmoniosamente com a autocracia saudita?
Como defender a própria soberania e transformar o Iraque em Casa da Mãe Joana?
Como combater o Estado Islâmico e ameaçar destruir o patrimônio cultural persa?
Mesmo sem a formalidade de uma declaração de guerra, a tensão continua no ar.
Além do excesso de cadáveres, há muita ambiguidade. Ninguém está livre dos
efeitos colaterais do conflito. Hoje, atira-se um míssil contra um avião civil.
Amanhã ...
Josias de Souza, jornalista - Blog do Josias - UOL