Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER
Mostrando postagens com marcador Guerra Fria. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Guerra Fria. Mostrar todas as postagens

domingo, 5 de novembro de 2023

O Brasil não está no círculo das nações que dão as cartas no mundo

 Geopolítica é para profissionais

Assistimos à intensificação da tensão entre nações, característica de uma guerra fria agravada. Isso não é uma novidade, mas o quadro é complicado por dinâmicas econômicas contraditórias nos EUA, China e Europa. 
Paralelamente, a guerra na Ucrânia se desenrola com uma cascata de efeitos secundários que reverberam globalmente — quadro agravado pelo conflito em Israel.
 
 

 O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, em reunião do Conselho de Segurança da ONU (30/10/2023) (ONU/Divulgação)

Deparamos com circunstâncias sem precedentes que podem trazer consequências sérias ao Brasil. Estamos à beira de uma transformação da guerra fria em curso em conflito de proporções globais, considerando a inclinação para a beligerância e a imprevisibilidade dos líderes atuais.

A atual conjuntura guarda paralelos com a década de 1930, ecoando a máxima de que a história tende a se repetir — embora como uma espécie de paródia. 
Para o Brasil, os impactos de um conflito global seriam desastrosamente superiores aos da II Guerra. 
A interconexão global e a interdependência econômica amplificadas deixam-nos em posição mais vulnerável.
 
No período pré-guerra, o Brasil vacilou antes de se posicionar ao lado dos Aliados contra o Eixo. 
 Hoje, observa-se um aparente desvio do país em direção a uma política externa reminiscente do Terceiro Mundo, com um alinhamento mais próximo aos interesses chineses e russos. 
Esse movimento gera questionamentos: por que tomar tal direção?

“Em um contexto complicado, o país oscila entre um protagonismo ilusório e ações relevantes”

Nossa economia está atrelada em grande medida ao comércio de commodities com a China, conferindo a esse parceiro uma influência considerável nas relações comerciais. 
Além disso, nossa dependência dos insumos russos, especialmente fertilizantes e diesel, restringe nossa capacidade de adotar postura mais assertiva com esse parceiro estratégico. 
Simultaneamente, enfrentamos críticas e uma espécie de perseguição por parte dos países europeus no que tange às questões ambientais.
 
A diplomacia dos EUA, marcada pela confusão há algum tempo, carece de narrativa coesa e ferramentas eficazes para reforçar sua presença institucional no Brasil. 
Washington parece nos tratar como “não prioridade”, relegando ao setor privado as relações com o país.

Em um contexto complicado, o Brasil oscila entre um protagonismo ilusório e ações efetivamente relevantes, como as tentativas de mediar um cessar-fogo em Gaza. O país não demonstra o peso de uma grande potência nem atua como tal em um cenário mundial onde a dissimulação e a desinformação são estratégias geopolíticas corriqueiras.
 
A biografia Putin, de Philip Short, revela a intricada teia da geopolítica ao narrar as manobras do líder russo desde o colapso da União Soviética. 
No trabalho de Short, que cobre os principais acontecimentos desde a queda do Muro de Berlim até a invasão da Ucrânia, o Brasil, para o bem ou para o mal, é mencionado apenas uma vez em um contexto singelo: nossa abstenção em uma votação de resolução da ONU em 2011.
Essa menção isolada reflete a posição do Brasil no xadrez geopolítico. Mesmo ostentando o status de uma das maiores economias do mundo, detendo vastos recursos naturais e sendo um dos principais produtores de alimentos, não ascendemos ao círculo das nações que dão as cartas no palco mundial.[para fechar o rol - autêntico e até condescendente -  que aponta as falhas do Brasil na disputa por um desejado, e inalcançável, protagonismo mundial, ainda fazem o L e elegem um Lula presidente, trazendo ao picadeiro  um ministério em que mais de 95% dos integrantes são SUMIDADES EM NADA.
Lula se imagina um estadista, mas, ainda não sabe diferenciar apupos de aplausos, da mesma forma que a primeira dama considera ser apalpada o mesmo que apupada.] 
 
 
 

Publicado em VEJA,  edição nº 2866, de 3 de novembro de 2023

 

domingo, 27 de agosto de 2023

A política externa anda no arame. E uma dúvida sobre a guerra do Vietnã - Alon Feuerwerker

Análise Política 

A reunião dos Brics em Johannesburgo expôs as tensões a que se submete a política exterior brasileira nesta época de desglobalização e repolarização, no palco que combina cooperação e luta entre as nações. O saldo final foi bastante positivo para o Brasil, pela expansão do bloco e pelo reequilíbrio, por aqui, entre as crescentes pressões externas e internas neoatlantistas e o desejável alinhamento com as nações que trabalham pela multipolaridade.
[com a devida vênia ao ilustre articulista, o que conseguimos ver de positivo para o Brasil, foi a verdade ser escancarada: "a influência do Brasil foi nenhuma e o 'estadista de mentira'  que preside o Brasil só encontrou espaço para expelir,  via oral, as bobagens habituais,  em Angola."]

A desglobalização tem razões objetivas. A primeira e mais importante delas: num mundo onde a cooperação entre países, blocos e regiões prevaleça sobre a competição, permitindo assim um desenvolvimento razoavelmente pacifico das economias, os países de maior população tendem a deslocar os demais no protagonismo. O melhor exemplo tem sido a China, mas vale também prestar atenção ao novo papel da Índia.

Quem observa o eixo organizador da política planetária deste último século e meio não se surpreende, portanto, com a tendência predominante hoje nas políticas dos Estados Unidos e de sócios minoritários: isolar China e Rússia, neutralizar Índia e Brasil, enquanto tentam recuperar ou manter a influência na África, influência que declinou com a descolonização do pós-guerra, mas encontrou uma nova janela de oportunidade com o colapso da União Soviética.

O colapso do momento é outro, da “coexistência pacífica, competição pacífica”, vislumbradas no pós-Guerra Fria, embaladas pelo sonho do “fim da História” e agora rudemente despertadas pelo som dos canhões na Ucrânia e pelo crescente ranger de dentes no estreito de Taiwan. Enquanto se espera o desencadear de mais um conflito, agora no Sahel das populações miseráveis que vivem sobre enormes depósitos de minerais estratégicos.

Um cenário assim traz desafios crescentes para o Brasil continuar persistindo na sua política exterior tradicional das últimas décadas: estabilizar boas relações com os Estados Unidos e Europa, enquanto desloca agressivamente a política comercial para mercados emergentes, alguns deles hoje não apenas importadores, mas crescentemente exportadores dos capitais de que precisamos para sustentar nossa taxa de investimentos. De que dependem os empregos.  Pois estes segundos parceiros não querem mais só fazer negócios, querem ter voz.

E acreditar que os capitais americanos e europeus virão correndo para cá em retribuição a um certo nosso bom-mocismo ESG é tese ainda a comprovar, ainda mais quando um argumento central do “derisking” e “decoupling” atlantistas em relação à China é levar empregos de volta para a Europa e os Estados Unidos, e não propriamente trocar a dependência industrial da Ásia por outra qualquer.

O governo Luiz Inácio lula da Silva enfrenta ainda outra dificuldade, a crescente penetração ideológica atlantista na direita (em que sempre foi predominante), no dito centro e na própria esquerda, especialmente quando nos Estados Unidos e Europa predominam governos que contemplam a agenda sócio-comportamental-ambiental hoje influente nas correntes progressistas.

Como exercício retórico, é legítimo questionar quem da esquerda brasileira apoiaria que lado se a Guerra do Vietnã fosse hoje.
 
Alon Feuerwerker, jornalista e analista político
 
 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Biden finge ser Churchill - Rodrigo Constantino

Gazeta do Povo

Um blog de um liberal sem medo de polêmica ou da patrulha da esquerda “politicamente correta”.

Não sou daqueles que consideram a ajuda ocidental a Zelensky na guerra contra a Ucrânia um equívoco. Sim, o teatro liderado pelo ator que virou presidente me incomoda pelo excesso de holofotes. Sim, consigo enxergar o jogo globalista nisso tudo.  Mas não, Putin não é a melhor alternativa, tampouco uma espécie de salvador dos valores cristãos. É um tirano psicopata que invadiu uma nação que, ainda com defeitos, pretende ser livre. Ficar indiferente nesse conflito conflagrado pelo regime russo é um erro, portanto.

Joe Biden é um presidente muito ruim, não resta dúvidas. Mas, gostemos ou não, ele é o líder do mundo livre, do Ocidente. Durante a Guerra Fria, Jimmy Carter já foi esse líder, e era péssimo também. Mas nem por isso ficaríamos indiferentes em relação aos soviéticos.

Logo, acho que cabe ao Ocidente contribuir na defesa ucraniana. A direita americana, em parte, condena a ajuda financeira do governo Biden e, acima de tudo, a questão das prioridades. 
O presidente ignorou o descarrilhamento do trem em Ohio e a consequente explosão tóxica, como tem ignorado a crise sem precedentes na fronteira do sul do país. 
São críticas legítimas, mas não anulam a importância de ajudar a Ucrânia.
 
Tal ajuda atende a três objetivos: 
1. deixar claro que invasão a países aliados terá graves consequências, para dissuadir pretensões imperialistas chinesas em Taiwan; 
2. desmantelar a força bélica russa, ainda um inimigo relevante na Guerra Fria 2.0 em curso; 
3. preservar o livre fluxo de comércio no mundo, já que a OTAN, sob a liderança americana, representa o xerife global.

Toda essa longa introdução é só para atestar que vejo vantagem na ajuda americana ao presidente Zelensky. Daí a aplaudir a visita de Biden ao país como algo histórico e corajoso vai uma longa distância, que separa os analistas dos militantes democratas. A mídia mainstream, um braço do Partido Democrata, vem tratando a ida de Biden como um ato histórico digno de JFK em Berlim ou Churchill na Segunda Guerra. Menos...

Biden demorou um ano para agendar essa ida, quando vários líderes ocidentais já pisaram em Kiev. O teatro foi forçado demais, com direito a um presidente de óculos escuros no estilo Maverick circulando pelas ruas quando, pasmem!, as sirenes de alerta de ataque dispararam. 
Até um repórter da CNN confessou que estava no país há cinco dias e foi a primeira vez que escutou a sirene. 
 Uma baita "coincidência" ser justo no momento em que Biden caminhava com Zelenesky!

O governo americano, ainda por cima, chegou a comunicar os russos da ida de Biden, para não produzir qualquer incidente entre os dois países. Imagine um ataque russo alvejar o presidente dos Estados Unidos! Seria a Terceira Guerra Mundial para valer, e ninguém quer isso.

 Logo, Biden fez de tudo para realizar uma viagem tranquila e segura, além de tardia. Ver heroísmo e excesso de coragem nisso é simplesmente absurdo.

No fundo, o presidente amarga taxas baixas de aprovação, ainda perto de 40%. A inflação segue elevada, a economia patina, a gestão é medíocre. A ida de Biden a Kiev neste momento mira basicamente o mercado político interno. Até porque aos olhos de Putin vai soar como provocação, e em algum momento o Ocidente terá de oferecer algo ao ditador russo para encerrar o conflito.

Biden não é o novo Winston Churchill, e a narrativa midiática que tenta produzir tal efeito é patética. Não obstante, a Ucrânia merece o apoio americano, mesmo com seus vários defeitos. E claro: todo escrutínio sobre o destino dos bilhões emprestados é necessário, pois sabemos se tratar de um país com muita corrupção e com elos suspeitos com a própria família Biden.

Rodrigo Constantino, colunista - Gazeta do Povo - VOZES


sábado, 31 de dezembro de 2022

Papa emérito Bento XVI morre aos 95 anos

Joseph Ratzinger teve a trajetória marcada pela renúncia ao posto, atitude que fez dele o primeiro em 600 anos da Igreja Católica a abdicar do papado

Pope Bento XVI em Veneza, na Itália, em 2011 -

 Pope Bento XVI em Veneza, na Itália, em 2011 -  Barbara Zanon/Getty Images

Morreu neste sábado, 31, o papa Bento XVI, aos 95 anos. “É com pesar que informo que o papa emérito Bento XVI morreu hoje às 9h34 no mosteiro Mater Ecclesiae no Vaticano”, escreveu o perfil de notícias do Vaticano no Twitter. O corpo de Bento XVI será velado na Basílica de São Pedro a partir de segunda-feira, 2. O funeral está marcado para a manhã de quinta-feira, 5, na Praça São Pedro, presidido pelo papa Francisco

Lembrado por sua renúncia em 2013, Bento XVI, o alemão Joseph Ratzinger, vivia recluso nos últimos anos no mosteiro no interior dos Jardins do Vaticano. Reportagem de VEJA de junho de 2018 revelou que Bento sofria de Parkinson e já sentia os sinais da doença quando renunciou.

Renúncia
No dia 11 de fevereiro de 2013, o papa Bento XVI apresentou, durante uma reunião com as Cardeais da Cúria Romana, sua renúncia. O motivo alegado para deixar o Trono de Pedro era que, aos 85 anos, depois de quase oito de pontificado, ele já não tinha mais forças para levar adiante o governo da Igreja.

Eram principalmente três as razões da amargura de Bento XVI, segundo concordavam na época os mais argutos vaticanistas da Itália. Em primeiro lugar, casos de pedofilia afundavam a Igreja na época e colocavam o pontífice em posição cada vez mais difícil.

O segundo motivo que embaraça o papa tem a ver com um escândalo de corrupção envolvendo o Instituto de Obras Religiosas – o banco do Vaticano. A Justiça italiana abriu uma investigação sobre o IOR e bloqueou 23 milhões de euros de suas contas, por suspeita de violação das normas do sistema financeiro contra lavagem de dinheiro.

O terceiro motivo foi originado pelo roubo de documentos comprometedores da Santa Sé, no episódio batizado de Vatileaks que veio à tona no início do ano passado – Paolo Gabriele, que foi mordomo pessoal do papa desde 2006, é acusado de ter vazado as informações para um jornalista italiano. Os documentos eram, basicamente, cartas de um ex-administrador da sede da Igreja que informava o papa sobre corruptos que haviam assinado contratos superfaturados e, desse modo, causado um prejuízo de milhões de euros às finanças da Santa Sé. Gabriele, apelidado de “O Corvo”, foi condenado, preso e perdoado por Bento XVI.

O roubo dos documentos contribuiu para amargurar um papa já cansado de decepções e intrigas, mas os papéis em nada o maculavam do ponto de vista moral. O que, de fato, pesou em sua decisão de renunciar foi o derradeiro relatório da investigação sobre o roubo dos documentos, que revelou conexões de gente muito próxima a ele com o esquema de lavagem de dinheiro no IOR.

Papado
Nascido Joseph Ratzinger, sua trajetória pessoal de antes de chegar ao trono de São Pedro foi cheia de lances surpreendentes, desde sua participação na II Guerra Mundial (quando foi forçado a se juntar aos nazistas) até a batalha ideológica da Guerra Fria. Testemunha de alguns dos fatos mais marcantes do século XX, ele ajudou a moldar a Igreja Católica neste início de século XXI, ao
transformar-se no homem forte do pontificado de João Paulo II.

Seu poder dentro do Vaticano era tão avassalador que, na ausência de um papa tão carismático e marcante, foi escolhido para ocupar o posto, mesmo com a idade avançada. Sua escolha como sucessor de João Paulo II, em 2005, foi o auge de um longo caminho desde o seminário, a carreira acadêmica e a entrada na estrutura de poder da Santa Sé.

Quando Joseph Ratzinger foi escolhido no conclave que o tornou papa, suas primeiras palavras foram: “Depois do grande papa João Paulo II, os senhores cardeais elegeram-me, um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”.

Em pouco menos de oito anos de pontificado, Bento XVI protagonizou triunfos e fracassos, acumulou tropeços e façanhas, errou e acertou – como quase todos os outros ocupantes do trono de Pedro. Mesmo sem a perspectiva histórica necessária para dimensionar sua importância dentro da extensa lista de pontífices do Vaticano, já é possível dizer que o legado de Bento XVI deixou pelo menos uma pessoa decepcionada: o cardeal Joseph Ratzinger, que entrou no conclave de sucessão de João Paulo II como decano do colégio cardinalício e saiu dele, em 19 de abril de 2005, como novo chefe da Igreja Católica. Como papa, o alemão foi, em linhas gerais, o que a maioria já previa: um líder mais discreto e menos midiático que o antecessor, um defensor ferrenho da doutrina católica, um protetor da liturgia da Igreja.

Papa Francisco saúda o Papa emérito Bento XVI após 2 meses de sua renúncia, no mosteiro Mater Ecclesiae, no Castelo de Gandolfo, Vaticano
Papa Francisco saúda o Papa emérito Bento XVI após 2 meses de sua renúncia, no mosteiro Mater Ecclesiae, no Castelo de Gandolfo, Vaticano Osservatore Romano/AFP/VEJA/VEJA

Ratzinger não desejava ser papa. Uma vez escolhido, porém, queria mais do que apenas confirmar as impressões que todos tinham sobre ele. O alemão tinha alguns objetivos muito claros. Ao renunciar, em 2013, teve de sofrer não apenas com o peso dessa controversa decisão, mas também com a impressão de que não atingiu nenhuma de suas grandes metas – e com a conclusão inescapável de que deixa inacabado seu extenso trabalho a serviço da Igreja.

A própria escolha de seu nome papal, uma referência ao padroeiro da Europa, já indicava uma de suas intenções mais fortes: a de reforçar as estruturas da Igreja no continente onde o catolicismo foi construído. Isso não significava necessariamente arrebanhar novos fiéis e expandir a presença da Igreja nos países europeus, mas sim solidificar sua posição e se reaproximar dos seguidores que andavam se desgarrando.

Para Ratzinger, de nada adiantava sair à caça de novos simpatizantes mundo afora se a Igreja perdia espaço e relevância em seu próprio berço. As circunstâncias, no entanto, foram as piores possíveis para que Bento XVI levasse adiante essa reevangelização. Durante quase todo o papado, a revelação de mais escândalos de abusos sexuais cometidos por integrantes da Igreja – na maioria dos casos, em países europeus – foram uma barreira intransponível para seus planos. O número de fiéis nas paróquias europeias não aumentou – e a revolta dos seguidores que restaram, cada vez mais desiludidos por causa da longa lista de escândalos, só cresceu. Em países como Áustria, Holanda, Noruega, Bélgica e a própria Alemanha, a terra do papa, a imagem da Igreja continuou sendo manchada pela revelação dos abusos. A decepção do papa não se resumia aos escândalos em si, mas também ao fato de ele ter sido o principal responsável por conduzir a reação da Igreja aos abusos.

Em 2001, João Paulo II entregou à Congregação para a Doutrina da Fé, comandada por Ratzinger, a responsabilidade de lidar com o assunto. O cardeal, que sempre sofreu muito com os relatos e testemunhos que teve de ouvir, estava convicto de que era um imperativo moral agir contra os pedófilos – ainda que a estrutura da Igreja não facilitasse o processo de investigação e punição. O assunto marcou profundamente o futuro papa. “Quanta imundície há na Igreja”, disse, pouco antes do conclave. Ainda como cardeal, ele tomou medidas inequívocas no sentido de combater o problema. De acordo com os críticos, entretanto, faltou firmeza ao alemão, apesar de apelidos como “papa panzer” e “o rottweiler de Deus”.

A ausência de reformas específicas e eficazes para impedir que pedófilos entrassem no clero foi uma das principais queixas dos grupos que reúnem as vítimas de abusos. Esperava-se ainda que Bento XVI conduzisse uma reorganização da Cúria Romana, que administra a Igreja. Se João Paulo II não tinha o perfil ideal para reformar a estrutura administrativa do Vaticano, o alemão, metódico e profundo conhecedor dessa máquina, seria perfeito para a tarefa. Poucos lembraram, porém, que Bento XVI é essencialmente um acadêmico – e, portanto, não tem nas relações pessoais e no carisma seus pontos fortes. Fazer política não era com ele. Diante da resistência dos integrantes da Cúria, sempre avessos às tentativas de modernização das engrenagens do Vaticano, o papa foi ficando isolado e impotente. Ele fracassou em duas tentativas práticas de reduzir a burocracia interna através da fusão de diferentes departamentos. A criação de um novo Conselho Pontifício, dedicado à “nova evangelização”, fez com que a máquina administrativa do Vaticano ficasse ainda maior do que já era quando seu pontificado começou.

Ainda assim, Bento XVI deixa um legado admirável. Mais do que pelas três encíclicas, ele notabilizou-se, no que se refere à difusão da fé, pela trilogia magistral que escreveu sobre a vida de Jesus o terceiro tomo, a respeito da infância do Nazareno, ratifica a hipótese de que Ele nasceu antes do que veio a ser datado como o primeiro ano da era cristã – e pelas entrevistas que concedeu publicadas em forma de livro. Dono de uma cultura vasta, que vai muito além da teologia, ele era capaz de ser didático sobre temas espinhosos.

A rainha Elizabeth durante encontro com o Papa Bento XVI, no Reino Unido - 16/09/2010
A rainha Elizabeth durante encontro com o Papa Bento XVI, no Reino Unido – 16/09/2010 Dylan Martinez - WPA/Getty Images
Vida até o papado
Bento nasceu em 16 de abril de 1927 em Marktl am Inn, no estado da Baviera, Alemanha. Seu pai, Joseph Ratzinger, um comissário de polícia alemã, encontrou a sua esposa por meio de um anúncio no jornal. A mensagem dizia que policial procurava por uma moça virtuosa para se casar.

Ao anúncio, respondeu aquela que seria então, a mãe de Ratzinger, a senhora Maria Peintner. Desse casamento nasceram 3 filhos: Georg, Joseph e Maria. Joseph e Georg se encaminharam desde muito cedo à vocação sacerdotal. Maria não se casou e dedicou-se aos cuidados dos pais e, depois, mais tarde, dos dois irmãos.

Bento era apaixonado por música clássica. Seu gosto foi influenciado pelos seus pais que, ainda criança, lhe apresentaram a obra de Wolfgang Amadeus Mozart. Entre suas brincadeiras preferidas da infância estavam celebrar missas de faz de conta ao som de Mozart e tocar piano. O religioso também cultivou um amor especial pelos gatos ao longo de sua vida. Até seus últimos dias de vida, seus ajudantes e secretários contam que Bento alimentava e brincava com os felinos que passavam pelo Mosteiro Mater Ecclesiae.

Joseph Ratzinger prestou serviço obrigatório no Exército Alemão entre 1943 e 1945. Na época, ele havia acabado de entrar no seminário preparatório, mas não conseguiu evitar ser convocado pelo nazismo. Desde 1941, quando fazer parte da Juventude de Hitler se tornou obrigatório, o jovem já frequentava o grupo. Ele só foi convocado oficialmente, contudo, aos 16 anos, para realizar trabalhos auxiliares ao lado dos soldados. Em 1944, ele e seus companheiros de seminário foram transferidos para as unidades regulares do Exército.

Em entrevistas, Ratzinger contou que viu judeus húngaros sendo levados para campos de concentração quando sua base era próxima da Hungria. O papa chegou a ser dispensado, mas acabou convocado novamente e desertou em abril de 1945. Ele foi capturado por soldados americanos e mantido prisioneiro de guerra por alguns meses.

Bento voltou ao seminário na Universidade de Munique em 1945 e foi ordenado padre em 1951. Se tornou doutor pela mesma instituição e, em 1958, conquistou sua licenciatura e se tornou professor de dogma e teologia da Freising College.

Nos anos seguintes ensinou nas Universidades de Bonn, Muenster, Tübingen e Regensburg. Em março de 1977 se tornou arcebispo de Munique e Freising e, três meses depois, foi nomeado cardeal pelo papa Paulo VI.

Em 1981, o papa João Paulo II nomeou Ratzinger prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em 1998, tornou-se vice-reitor do Colégio de Cardeais e foi eleito reitor em 2002. Ratzinger defendeu e reafirmou a doutrina católica, incluindo o ensino de temas como controle de natalidade, homossexualidade e diálogo inter-religioso. Foi eleito o 265º papa pelo conclave de 2005, com 78 anos de idade, após a morte de João Paulo II.

Religião - Revista VEJA

 


sábado, 17 de dezembro de 2022

Black blocs, Capitólio e a estratégia de fomentar o caos para legitimar a repressão - Gazeta do Povo

Vozes - Bruna Frascolla

Nova esquerda

Vivemos tempos instáveis; por isso, é natural que ninguém saiba o que está acontecendo ao certo. Se alguém disser que tem certeza do que está acontecendo, o mais provável é que seja um iludido por propaganda
É sempre bom pensar na II Guerra ou na Guerra Fria: ninguém sabia – nem os alemães comuns – dos campos de extermínio nazistas. 
No Ocidente, o jornalista que foi à URSS fazer uma peça de propaganda pró Stálin ganhou um Pulitzer pelo seu trabalho.  
E enquanto todos temiam que a animosidade entre os Estados Unidos e a União Soviética culminasse num holocausto nuclear, o inesperado aconteceu: a União Soviética caiu de madura.

Black Bloc durante manifestação no Rio de Janeiro, em 2013 - Foto: EFE/ Marcelo Sayão

Ainda assim, há que se tentar entender mais ou menos o que se passa, já que o Brasil é parte do mundo e, nos dias de hoje, tem muito mais importância do que na época da II Guerra ou da Guerra Fria. Hoje somos responsáveis pela cadeia alimentar do mundo e temos um imenso território de riquezas minerais inexploradas. Temos, portanto, todos os motivos para sermos enxergados como estratégicos por qualquer potência global. Dominar o Brasil é dominar a cadeia de produção alimentos mundial.

Tendo isso em mente, vamos ao assunto do momento: o Capitólio tabajara, há muito anunciado e enfim concretizado com a ajuda de atores duvidosos. 
 E se eu contasse ao leitor que nós temos, desde 2016, uma lei que especifica as motivações ideológicas que um terrorista tem que ter para ser considerado terrorista? Diz assim: “O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.


Oposição ao progressismo é terrorismo doméstico
Nos Estados Unidos, temos assistido a uma tentativa crescente de criminalizar a oposição ao progressismo, alegando tratar-se de terrorismo. Ora é supremacismo branco, ora é crime de ódio, etc.                   Pessoalmente, o que me chamou mais a atenção foi a tentativa de tachar de terroristas domésticos os pais que se manifestassem contra o ensino de teoria crítica da raça (negro = bom; branco = ruim) em escolas.         Mas isso aconteceu só depois do paradigmático 6 de janeiro de 2021, o “Ataque ao Capitólio”, no qual terroristas domésticos quase acabaram com a democracia mas felizmente foram contidos pelas security forces (“forças de segurança”). Nisso, uma manifestante levou um tiro letal.

Esse processo de criminalização é generalizado no Ocidente e, se tratado à exaustão, daria um livro maior que o Houaiss. O último causo que me chegou vem da Noruega, onde uma mulher pode pegar três anos de cadeia por ter dito no Facebook que homens não podem virar lésbicas. Discurso de ódio. Na Inglaterra, a novela é longa, e pode ser acompanhada pela trajetória da ativista Posie Parker.

Tendo em vista esses dois nomes usados para a criminalização – “terrorismo doméstico” e “discurso de ódio” , cabe então pegar uma lupa e voltar à lei brasileira de 2016, sancionada quando Trump nem tinha sido eleito presidente ainda. Ela trata como terrorista quem for motivado por “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”.       A xenofobia mal faz parte do léxico do político brasileiro médio, e no entanto é citada primeiro. Essa expressão está na ponta da língua dos progressistas do primeiro mundo, que lidam com uma imigração descontrolada. Quanto à religião, a redação é ambígua; não sabemos se é motivado por “xenofonia, discriminação… e religião”, ou se por xenofobia e preconceitos relativos à cor da pele e à religião.          Como no Brasil o evangélico foi pegado pra Cristo (à falta de homens brancos), eu aposto firmemente na primeira interpretação.                    Gente como Jean Wyllys volta e meia fala de “fundamentalismo cristão” como se fosse algo análogo ao fundamentalismo islâmico – que, como se sabe, produz terroristas aos montes.
Dito isso, eu não acredito que essa lei tenha sido redigida dentro do Brasil.

Veja Também:
rachadinha pt - Cargos no governo Lula são só para quem paga o dízimo socialista
No Brasil entregue ao PT, ditadura de toga vira rotina


O que petistas, trumpistas e bolsonaristas têm em comum

Em 2021, os trumpistas não tardaram a acusar o próprio FBI de estar envolvido com os protestos no Capitólio. Nada foi confirmado, mas nada é confirmado acerca de fato algum – por exemplo, nem se sabe o nome do agente que deu um tiro na manifestante. 
Como pondera Tucker Carlson, o governo Biden tem a faca e o queijo na mão: nada é investigado, e o evento serviu para que as autoridades dos EUA dissessem que o terrorismo doméstico dos supremacistas brancos era a maior ameaça enfrentada pelo país. Seja como for (como vemos no material coligido por Carlson), o FBI admite que tinha infiltrados nos movimentos trumpistas. Polícia secreta, senhoras e senhores. Não é impossível, portanto, que o ataque ao Capitólio tenha sido tramado pelo próprio FBI.

Se os trumpistas estiverem corretos, o mecanismo consiste em fomentar o caos para passar a repressão depois. Quem opera esse mecanismo? O tal do Deep State, ou Estado Profundo, que consistiria em agentes estatais fixos que não saem do governo com as eleições e que são os reais detentores do poder nos EUA. É parecida com a noção de “aparelhamento”, usada pelos brasileiros para se referir aos postos burocráticos tomados por esquerdistas.

Pois bem. Falando neles, em 2013 os petistas estavam plenamente convencidos de que os black blocs estavam a serviço da CIA e queriam derrubar Dilma. Em 2014, era a vez dos defensores do impeachment de acusar os black blocs de estarem a serviço de outrem;                        - no caso, do PT, que teria o fito de transformar as manifestações em quebra-quebra e afastar os manifestantes sérios – que eram a maioria. Agora, tendo fresco na memória o caso do Capitólio, torna-se bem natural a direita supor que se tratava de uma operação análoga, que fomenta o caos para legitimar a repressão. Quem seriam os incendiários? Recomendo este dossiê de Kim Paim sobre o assunto.

Mas agora deveríamos recuar mais no tempo e pôr os olhos na lei de 2016. É possível que os petistas estivessem certos quanto aos black blocs serem plantados pelos EUA de Obama;                                         - é possível que os antipetistas estivessem certos quanto os black blocs serem infiltrados. E o fito era o mesmo de hoje: passar a repressão. No caso, a repressão que Dilma passou é uma lei 100% alinhada com a esquerda dos EUA.

O guru Fukuyama e a desilusão dos neocons
Os últimos presidentes dos Estados Unidos foram: George W. Bush (2001 – 2009), Barack Obama (2009 – 2017) e Donald Trump (2017 – 2021), com Biden começando em 2021. Antes desse período, os EUA estavam em seu apogeu no plano global: vitoriosos na Guerra Fria, líderes mundiais do capitalismo e da democracia.

Segundo explica John Gray em Missa Negra, os anos 90 foram também os anos dourados do filósofo norte-americano Francis Fukuyama, autor de O fim da história e o último homem (1992). Sua ideia era que o fim da Guerra Fria era o Fim da História. 
A humanidade encontrara o seu ideal na combinação entre democracia e livre mercado. 
Assim, os EUA se sentiam vanguarda moral do mundo e tratavam de impor a democracia a qualquer custo. 
Um primeiro povo a ser “liberado” era o iraquiano, com o pacifista Bill Clinton iniciando uma guerra com base na mentira de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. 
Em todas as suas intervenções no Oriente Médio, os EUA fracassaram. 
A conclusão só poderia ser uma: Fukuyama tinha de rever sua posição. Esse ideal de que a combinação global de livre mercado e democracia resolve todos os problemas, de modo que algumas bombas podem ser gastas para consegui-lo, é conhecido como neoconservadorismo.

Agora Fukuyama diz que um Deep State é necessário à manutenção de democracias liberais, e que ele mudou de ideia após ver o colapso dos Estados montados pelos EUA no Iraque e no Afeganistão.

Uma hipótese
Creio que Obama tenha marcado uma profunda mudança no Deep State, que trocou a ideologia neoconservadora pelo progressismo duro, que fomenta relações promíscuas entre Estado e empresas. (Thomas Sowell diz, por isso, que Obama é fascista.) O governo Obama foi marcado também por um uso maciço de espionagem sobre países estrangeiros, como mostrou o Wikileaks à época, cujo fundador, Assange, paga o preço até hoje.

No Brasil, o governo Dilma marcou uma mudança profunda no perfil da esquerda. Antes de Dilma (e Obama) a esquerda brasileira era majoritariamente antiamericana e anticapitalista; durante Dilma (e Obama), a esquerda brasileira se transformou em opositora do “racismo”, “machismo” e “homofobia” em vez de opositora dos EUA. Dilma fez as alterações legais que permitiram a Lava Jato e, com isso, neutralizou-se a ala tradicional da esquerda brasileira, alinhada com o Foro de São Paulo. Gosto de lembrar que Dilma não foi punida pela refinaria da Petrobras nos EUA (a “ruivinha” Pasadena) e que o Ciência Sem Fronteiras, bilionário, transferiu dinheiro do Brasil para as universidades públicas e privadas dos EUA, que estão sempre em crise. (Biden deu anistia às dividas estudantis agora; se ele tivesse uma Dilma, talvez isso não fosse necessário.)

Essa nova esquerda é bem ruim de voto.
Lula é solto com um papel a cumprir e o seu governo, em vez de se assemelhar a Lula I e II, desenha-se como uma continuidade do governo Dilma.  

Ou seja: essa catástrofe financeira deve ter sido planejada em Washington, do mesmo jeito que a lei antiterrorismo.É esta então a minha hipótese: o governo Obama marcou uma nova direção nos rumos da política global dos EUA, e Dilma era uma infiltrada aliada.

Bruna Frascolla, colunista - Gazeta do Povo - VOZES


terça-feira, 6 de setembro de 2022

“Sr. Gorbachev, derrube este muro!” - Revista Oeste

Ana Paula Henkel

A liberdade sempre vencerá com base no mérito. Mas ela não pode vencer se ninguém estiver fazendo nada

Mikhail Gorbachev morreu na última terça-feira, aos 91 anos, em um hospital de Moscou. Como o último líder da União Soviética, Gorbachev ficou conhecido por aumentar a diplomacia com líderes ocidentais, principalmente com o 40º presidente norte-americano, Ronald Reagan, e por inaugurar uma série de reformas políticas que precederam a total dissolução da União Soviética, em 1991.

Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, 1986 | Foto: Reagan White House Photographs/Shutterstock
Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, 1986 | Foto: Reagan White House Photographs/Shutterstock

Um dos eventos mais notáveis ​​que levaram ao colapso da União Soviética foi a destruição do Muro de Berlim, em novembro de 1989, que dividia o enclave democrático da Alemanha Ocidental e da Alemanha Oriental desde 1961. Berlim Oriental era controlada pelos soviéticos.

Com a morte de Gorbachev, nesta semana ressurgiu nas redes sociais e TVs o famoso discurso de Reagan Tear down this wall”, proferido na Berlim Ocidental perto do Portão de Brandemburgo, em 12 de junho de 1987. Pouco mais de dois anos no mandato de Gorbachev como secretário-geral do Partido Comunista Soviético, Reagan elogiou as tentativas de reformas do líder soviético como “compreendendo a importância da liberdade”, mas antes instou-o a derrubar o muro que mantinha a liberdade fora da vida de muitos alemães. Reagan era um capitalista ávido e defensor da liberdade. Um presidente determinado a anular a corrida armamentista nuclear dos Estados Unidos com o “império do mal” da União Soviética, expressão que o presidente usou em um discurso em 1983. Gorbachev era um jovem comunista comprometido com o regime e que havia subido na hierarquia política para liderar a URSS, mas pressionado publicamente por reformas.

No discurso “Tear down this wall”, facilmente encontrado no YouTube e incrivelmente inspirador, Reagan diz: “Acreditamos que liberdade e segurança andam juntas, que o avanço da liberdade humana só pode fortalecer a causa da paz mundial. Há um sinal que os soviéticos podem dar que seria inconfundível, que faria avançar dramaticamente a causa da liberdade e da paz. Secretário-geral Gorbachev, se você busca a paz, se você busca prosperidade para a União Soviética e a Europa Oriental, se você busca a liberalização: venha aqui para este portão”. E, então, Reagan profere as históricas palavras: “Sr. Gorbachev, abra este portão! Sr. Gorbachev, derrube este muro!”.

O apelo do presidente Ronald Reagan em 1987 ao líder soviético Mikhail Gorbachev para derrubar o Muro de Berlim é considerado um momento decisivo de sua presidência — e é simplesmente incrível como esse discurso permanece atual, vivo e pertinente até hoje, sempre vale a pena assistir a ele. 
Um dos pontos mais interessantes é que, de acordo com o redator de discursos de Reagan na época, Peter Robinson, essas palavras poderosas quase não foram ditas.

Um trecho do discurso — que inclui a lendária frase “Sr. Gorbachev, derrube este muro!” — foi quase cortado depois que os conselheiros do Departamento de Estado e do Conselho de Segurança Nacional acharam que a passagem poderia ser provocativa demais, relata Robinson. Um assessor direto da Casa Branca chegou a afirmar que o trecho não era nada “presidenciável”. Mas depois que o Muro de Berlim caiu — em 9 de novembro de 1989 — as palavras de Reagan, proferidas menos de dois anos antes, definiram um ponto de virada nas relações EUA–União Soviética. O que antes era considerado audacioso se tornou auspicioso.

Peter Robinson, que hoje faz parte do Hoover Institution, um think tank conservador de políticas públicas liberais e uma instituição de pesquisa dentro da Universidade de Stanford, diz que “o discurso se tornou retroativamente profético” e que, “depois que o muro caiu, parecia ter resumido e até previsto a fase final da Guerra Fria”. Quando o muro caiu, Robinson já havia deixado a Casa Branca e era estudante de pós-graduação na Stanford Graduate School of Business, mas recorda: “Lembro-me de dirigir da escola de negócios até a casa que estava alugando com três outros amigos e estava com o rádio do carro ligado. Voltei para casa, liguei a TV e ela ficou ligada por horas! Estava maravilhado. Na verdade, nunca esperei que o muro fosse cair tão rápido”.

Símbolo da liberdade

Já escrevi alguns artigos aqui em Oeste sobre passagens históricas de vários discursos daquele que, para mim, foi um dos maiores presidentes norte-americanos e uma das figuras políticas mais importantes para a humanidade. Hoje, no entanto, gostaria de trazer alguns fatos por trás do discurso que se tornou um símbolo eterno pela liberdade, até para que sirva de inspiração para todos nós, vivendo tempos assustadoramente sombrios em 2022.

(...)
Portão de Brandemburgo, em Berlim, 1981 | Foto: Wikimedia Commons

A inspiração não vinha e, bastante desanimado, já que a falta de vida e a de esperança eram sentimentos avassaladores ali olhando para uma “preta e branca” Alemanha Oriental, Robinson esperava que seu próximo encontro com um diplomata norte-americano de alto escalão lhe fornecesse o material necessário para o discurso. Mas isso também foi inútil, disse Robinson: “Ele estava cheio de ideias sobre o que Reagan NÃO deveria dizer, incluindo — sob nenhuma circunstância — qualquer alarde ou menção sobre o Muro de Berlim. “Eles já se acostumaram”, disse o diplomata.

(...)

O otimismo é uma força, não uma fraqueza. Enquanto algumas pessoas retratam o otimismo como ingênuo ou fora de contato com a realidade, Ronald Reagan entendeu seu poder

Robinson escreveu as observações sobre essa experiência no discurso de Reagan, mas sabia que enfrentaria resistência dentro da própria Casa Branca. Ele e dois de seus redatores-chefes queriam primeiro a opinião de Reagan para finalizá-lo e, com um pouco de discrição, levaram um rascunho para o presidente no final de uma semana especialmente ocupada antes que qualquer outra pessoa pudesse vê-lo. Na segunda-feira, quando a equipe se reuniu com Reagan, um dos editores perguntou se ele tinha alguma opinião sobre o discurso e apenas comentou que era um bom rascunho. Robinson então interveio e disse ao presidente que as pessoas em Berlim Oriental poderiam ouvi-lo falar; que, dependendo das condições climáticas, ele poderia ser ouvido até em Moscou pelo rádio. Robinson perguntou se havia algo que Reagan queria transmitir às pessoas que ouviriam do outro lado, e o presidente disse: “Bem, há aquela passagem sobre derrubar o muro. É isso o que eu quero dizer a eles. Esse muro tem que cair”.

Embora Robinson reconheça que ele é creditado por escrever o discurso, ele defende que o discurso é de Reagan. Ele relata que tudo o que ele fez foi tentar refletir as políticas e as posições de Reagan e de que apenas Reagan poderia ter dito aquelas palavras, porque era o que ele realmente acreditava: “Ronald Reagan podia imaginar um mundo diferente. Ele podia imaginar um mundo pós-soviético. Ele podia ver um mundo sem o Muro de Berlim. Se você o colocar em posição de fazer um discurso em frente ao Muro de Berlim, ele sentirá um certo senso de dever de dizer a verdade como ele a vê. O discurso pertence a Ronald Reagan”. A bordo do Air Force One, a caminho da Alemanha, alguns assessores ainda tentaram fazer com que Reagan desistisse do trecho que pleiteava a derrubada do muro. Reagan, lembra Robinson, foi enfático e disse que era preciso coragem de dizer o que precisava ser dito.

E, vejam vocês, queridos amigos… 35 anos depois, ainda podemos usar essa premissa como máxima inspiração.

Enquanto alguns creditam ao discurso de Reagan a derrubada do Muro de Berlim, o desmantelamento do muro — e do que ele significava —, o evento pode ser atribuído mais diretamente a uma série de situações que foram desencadeadas inadvertidamente pelas reformas de Gorbachev através da Perestroika e da Glasnost: medidas econômicas e políticas que tinham como objetivos modernizar o mercado econômico soviético e possibilitar a abertura política. Uma onda de revoluções políticas anticomunistas nos países do Leste Europeu seguiu as reformas, enquanto o muro caiu após protestos maciços dentro da Alemanha Oriental. O discurso de Reagan alcançou uma notoriedade generalizada somente depois que o muro caiu, já que inicialmente foi recebido com críticas, especialmente na União Soviética, onde a agência de notícias estatal TASS o chamou de “um discurso abertamente provocativo e belicista.”

(...)

Fred Ryan, presidente da Fundação Presidencial Ronald Reagan, disse em um comunicado nesta semana que a fundação estava de luto pela perda de um homem que já foi um adversário político de Ronald Reagan, mas que acabou se tornando um amigo: “O presidente Reagan era um anticomunista dedicado que nunca teve medo de dizer o que precisava ser dito ou fazer o que precisava ser feito para trazer liberdade às pessoas que viviam sob regimes repressivos. Contra todas as probabilidades, ‘Ron e Mikhail’, como eles eventualmente passaram a se chamar, encontraram uma maneira de tornar o planeta mais seguro juntos”, continuou ele. “Como o presidente Reagan escreveu em seu diário pessoal sobre a correspondência inicial dos dois, isso mostrou o que se tornaria a base não apenas de um melhor relacionamento entre nossos países, mas de uma amizade entre dois homens. Nossos pensamentos e orações vão para a família Gorbachev e o povo da Rússia durante este período difícil.

Leia também “Acredite na velha imprensa, se puder”

domingo, 7 de agosto de 2022

Crise com a China - Como a visita de Nancy Pelosi a Taiwan prejudicou interesses dos EUA e da Ucrânia - Gazeta do Povo

Vozes - Jogos de Guerra

A visita a Taiwan da presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, enviou uma mensagem anti-imperialista à China. Porém, prejudicou interesses de Washington e de Kiev na guerra na Ucrânia. Isso porque o desafio à China tem potencial para aproximar diplomaticamente ainda mais Pequim e Moscou.

“Por ora, a China está avaliando e tem, sim, neutralidade. Eu serei honesto: essa neutralidade é melhor do que a China se juntar à Rússia.” A afirmação é do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Ela chamou a atenção na quarta-feira (3) por destoar do usual tom combativo do líder da Ucrânia. Parece refletir a preocupação com as possíveis consequências do apoio de Pelosi a Taiwan.

A congressista americana Pelosi esteve na ilha de Taiwan nesta semana, entre terça (2) e quarta-feira. Ela se encontrou com a presidente Tsai Ing-wen em Taipei. A visita enfureceu o governo chinês, que entendeu a ação como uma ingerência americana em assuntos internos do país. O governo de Xi Jinping tem entre seus principais objetivos políticos retomar o controle sobre a ilha - que tem um governo democrático autônomo, mas não é reconhecida como independente pela maior parte da comunidade internacional.

Principalmente para dar uma resposta ao público interno, Pequim realizou exercícios militares próximo a Taiwan em uma escala sem precedentes. Ao menos um míssil teria cruzado a ilha e caído no mar. 
Os disparos afetaram ainda a área marítima da zona econômica exclusiva do Japão. 
Participaram das manobras militares ao menos cem aviões e dez navios de guerra.

Na Rússia, a visita de Pelosi a Taiwan foi classificada como uma “provocação” americana contra a China, segundo a porta-voz da chancelaria, Maria Zakharova. Ela afirmou que Moscou apoia o princípio de “uma China” e se opõe a qualquer forma de independência de Taiwan. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que os russos expressam “solidariedade absoluta” com a China em relação à ação de Pelosi.

Em 4 de fevereiro, pouco antes do início da invasão russa à Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin e o líder chinês, Xi Jinping, haviam anunciado durante a Olimpíada de Inverno de Pequim uma “parceria sem limites” - na qual declaravam apoio mútuo em relação às questões da Ucrânia e de Taiwan. Em uma declaração conjunta, os países discorreram, entre outros temas, sobre multipolaridade e redistribuição de poder no mundo.

A declaração foi interpretada por analistas ocidentais como uma espécie de pacto de não agressão, que teria potencial para levar a um realinhamento da ordem mundial - o que poderia gerar um novo tipo de Guerra Fria.  Após a invasão russa na Ucrânia, a China se disse neutra e evitou participar de movimentos diplomáticos arquitetados pelo Ocidente para condenar o ataque de Moscou nas Nações Unidas.

Mas, enquanto os Estados Unidos e seus aliados tentavam isolar a economia da Rússia por meio de sanções, os chineses aumentavam suas compras de energia russa. Um dos principais objetivos do Ocidente é diminuir a renda de Moscou com a exportação de petróleo para assim enfraquecer o país e diminuir sua capacidade de guerrear.

Em maio, as importações chinesas de petróleo russo subiram 55% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo a rede britânica BBC. Por causa disso, a Rússia desbancou a Arábia Saudita como maior fornecedora de petróleo para a China. No mesmo mês, as exportações de produtos chineses para a Rússia cresceram 14% - fruto de substituições de importações ocidentais feitas pelo Kremlin.

Além disso, está sendo construído um novo gasoduto para ligar os dois países e assim aumentar em 10 bilhões de metros cúbicos por ano as exportações russas para os chineses. Ele deve ficar pronto em dois ou três anos. Um dos maiores temores dos ucranianos era que a China passasse a fornecer equipamentos militares para a Rússia. Porém, isso não tem ocorrido devido à pressão americana.

Da mesma forma, os Estados Unidos vêm intimidando empresas de tecnologia para evitar exportações para a Rússia. Segundo o departamento de comércio americano, as exportações globais de semicondutores para a Rússia caíram 90% desde o início da guerra. Eles são essenciais para a indústria armamentista russa, que depende de chips para fazer armas.

Por outro lado, não parece possível que Washington e seus aliados tenham capacidade de tentar punir Pequim com isolamento econômico. Alguns analistas dizem que a economia chinesa pode suplantar a americana na próxima década. Assim, a parceria entre Rússia e China parece ser, por ora, um “casamento de conveniência”, movido principalmente pelo antagonismo comum em relação aos Estados Unidos.

O que o Ocidente e Zelensky parecem tentar evitar é o aprofundamento dessa parceria. Por isso, o presidente ucraniano baixou o tom e tenta costurar um encontro com Xi Jinping. “A visita de Nancy Pelosi a Taiwan foi ruim para os interesses americanos na Ucrânia. Os Estados Unidos querem isolar a Rússia, mas acabaram dando motivo para os chineses se aproximarem mais dos russos”, disse o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em estudos de defesa e estratégia pela Universidade Nacional de Defesa da República Popular da China.

Não se sabe ao certo se a ação de Pelosi, parlamentar conhecida por seu ativismo em relação a Taiwan, foi fruto de sua iniciativa individual ou se foi uma ação orquestrada com o governo democrata de Joe Biden. A visita acabou sendo criticada por membros do Partido Democrata e elogiada por integrantes do Partido Republicano.

Além das manobras militares na região de Taiwan, a visita já está causando deterioração nas relações diplomáticas entre Pequim e Washington. Na sexta-feira (5), a China anunciou paralisações na cooperação entre os dois países nas áreas militar, de combate à mudança climática, imigração e esforços para controlar o tráfico de drogas global.

A possibilidade da China invadir Taiwan ou eventualmente entrar em guerra com os Estados Unidos é considerada remota por analistas. Para invadir a ilha, Pequim teria que fazer uma operação de desembarque anfíbio, considerada extremamente complexa e dispendiosa. Além disso, um ataque direto a cidadãos que partilham com a China as mesmas raízes poderia ser considerado fratricídio - e assim ter um forte impacto negativo na popularidade de Xi Jinping.

Mas não se sabe ainda até que ponto a deterioração das relações diplomáticas entre americanos e chineses gerará maior impacto na guerra da Ucrânia - ou se desencadeará maior suporte econômico chinês aos russos.

Últimas notícias do campo de batalha
Na última semana, a coluna Jogos de Guerra analisou as possíveis consequências políticas de uma contraofensiva ucraniana no sul do país. Ao longo dos últimos dias, combatentes ucranianos no campo de batalha disseram a este colunista ter recebido informações de que a Rússia está enviando entre 20 e 30 mil soldados para tentar conter o contra-ataque na região ocupada de Kherson. A Rússia confirmou o envio de reforços, mas não fornece números.

A troca de fogo de artilharia entre russos e ucranianos no território entre Mykolaiv e Kherson tem sido intensa. Esse é hoje o principal campo de batalha da guerra. Mas não surgiram notícias de avanços significativos da Ucrânia em direção a Kherson.

Em Zaporizhzhia, ucranianos vêm acusando a Rússia de usar a usina nuclear de Enerhodar como um escudo. Moscou teria posicionado diversas peças de artilharia entre os seis reatores nucleares e disparado contra regiões vizinhas defendidas pelo exército ucraniano. O exército de Kyiv não pode revidar para não causar uma catástrofe nuclear.

Na frente informacional, Rússia e Ucrânia debatem quem é o responsável por uma explosão no campo de prisioneiros de guerra de Yelenovka, em Donetsk. No dia 29 de julho, uma detonação matou 53 combatentes ucranianos que eram mantidos detidos no local e deixou dezenas de feridos. Eles eram integrantes do Batalhão Azov que haviam se rendido no cerco à cidade de Mariupol.

A Rússia acusou a Ucrânia de ter causado a explosão ao disparar um foguete Himars contra a prisão de forma acidental.

A Ucrânia diz que está investigando o caso, mas não há por ora processo investigatório independente.

Luis Kawaguti, colunista - Gazeta do Povo - Jogos de Guerra - Vozes


segunda-feira, 13 de junho de 2022

Cem dias de guerra - Revista Oeste

Flavio Morgenstern

A pior notícia para a Ucrânia é o alento para o mundo: ela hoje está sozinha, implorando ajuda 

Não é chocante dizer que o mundo mudou mais nos últimos dez ou mesmo cinco anos do que no período compreendido entre a década de 1910 e a Guerra Fria. O século 21, inaugurado em seu primeiro cataclismo no 11 de setembro de 2001, foi abalado por reiterados eventos que mudaram a configuração, a cultura ou ao menos o clima político de países bem afastados de seu epicentro: a crise de 2008, a Primavera Árabe se espalhando como fogo numa floresta seca, a eleição de Trump (e mesmo de Bolsonaro), a pandemia do covid e, agora, a guerra na Ucrânia.

Pessoas atravessam uma ponte destruída ao evacuar a cidade de Irpin, a noroeste de Kyev, durante bombardeios | Foto: Shutterstock
Pessoas atravessam uma ponte destruída ao evacuar a cidade de Irpin, a noroeste de Kyev, durante bombardeios -  Foto: Shutterstock

Algo une esses eventos: o quase integral desconhecimento dos formadores de opinião sobre seu desenvolvimento — ainda que a onda conservadora eleitoral só não tenha sido compreendida pelas elites. Se a crise do mercado financeiro era um assunto técnico, a guerra na Ucrânia se destaca pelo seu exotismo. É curioso pensar o que se sabia sobre a Ucrânia no Ocidente até o fim do ano passado, quando Vladimir Putin começou a ameaçar o país de maneira mais ostensiva. Passados cem dias de conflito, ainda é difícil a ocidentais aprender algo dos destroços, mas algo podemos tatear sobre o futuro geopolítico a partir destes cem dias de destruição.

Provokatsiya: dois métodos de guerra
Uma das palavras russas que se parecem com o português é a especialidade dos autocratas russos, sejam os tsares, os ditadores socialistas, sejam os autocratas da nova Rússia: a provokatsiya como gestão de vizinhos, negócios e, sobretudo, inimigos. 
A Rússia, imponente como território e de mentalidade militar desde as reformas de Pedro I, o Grande, e seus anseios por uma Marinha russa pujante, pode constantemente provocar seus inimigos a se moverem, apenas por defesa.

Foram exatamente mobilizações russas na sua imensa fronteira que esquentaram o clima militar na crise de julho, que culminou com a Primeira Guerra Mundial. Putin fez exercícios militares constantes na fronteira ucraniana, e na Geórgia, e em direção à Polônia, antes de finalmente invadir a Ucrânia.

E os movimentos militares russos ainda confundem o Ocidente: o equipamento militar russo do primeiro cerco a Kiev parecia obsoleto, mas ao mesmo tempo possui aviões supersônicos e um conjunto ofensivo de mísseis que rompe barreiras antimísseis com frequência assustadora (e os testes continuam, como na costa japonesa).

A forma russa de fazer guerra, até mesmo na Segunda Guerra Mundial, já envolveu mandar soldados aos pares para o front com apenas um fuzil: quando o primeiro morresse, o segundo tomava a arma e seguia adiante.  
Usar vidas humanas como peões de xadrez ainda é uma constante: contingentes terrestres de soldados aparecem aos montes, sem parecer haver muita preocupação com proteção. A ofensiva é pelo enxame, desnorteando a defesa — mas após destruição aérea e com amplo suporte.

O resultado parece confuso, com dois generais russos sendo mortos em um único dia, totalizando 52 coronéis mortos, ou com a perda de algumas cidades e muitas tropas (e dinheiro), dando a impressão de que Putin perde o controle em algumas ofensivas, ao mesmo tempo em que também parece ter uma vitória esmagadora em Donbass e domina o lado oriental da Ucrânia, já tendo domínio sobre 20% do país. A um só tempo, a Otan fica confusa em saber se retiradas são mesmo retiradas ou novas mobilizações que pareçam até contraditórias.

Se os carros, os tanques e, sobretudo, a munição russas não parecem em bom estado para as tropas terrestres, o mesmo não se pode dizer do armamento de ponta. No fim de maio, russos testaram o míssil hipersônico Zircon, de lançamento marítimo. O receio para o Ocidente é a utilização de armamento inédito, como bombas eletromagnéticas, nunca testadas contra alvos humanos, ou artefatos como a “maior bomba não nuclear” do mundo, o que poderia causar o efeito de uma bomba nuclear sem o risco de um ataque nuclear em um vizinho.

Putin tem se saído um exímio vencedor, sem que o Ocidente consiga nem ao menos entender o que testemunha

Na Ucrânia, cidades foram cercadas, como Kiev, Slovyansk, Kramatorsk, seguindo-se tal paradigma. Com seu contingente, russos podem obrigar o inimigo a gastar tempo se movimentando, mesmo que de forma inútil ou contraditória, apenas para evitar o risco de serem atacados. 
O modelo de luta da Otan é quase invertido: intervenções pontuais, com o mínimo possível de baixas dos próprios exércitos, com retratações rápidas para reagrupamento e realocação. O que os russos consideram um modelo “marítimo” (talassocrático) de guerrear. Determinar quem está ganhando ou perdendo neste novo modelo é tarefa quase impossível.

Mudanças temporais
A mesma incompreensão se dá na dinâmica temporal.
O Ocidente já se meteu em guerras nas quais não fazia a menor ideia do que estava fazendo: Coreia, Vietnã, Afeganistão (crendo que armar um guerreiro muçulmano seria uma forma de enfraquecer o “inimigo ateu” soviético), Iraque. Putin, possivelmente com câncer, não pensa no tempo de sua vida: está em um conflito armado com a Ucrânia, a “Pequena Rússia”, há mais de três séculos, e não pretende resolvê-lo no tempo de sua vida. Valores como “defender o povo” valem mais para um russo do que nossa confusão entre esquerda e direita — e o legado que o autocrata pretende deixar com a guerra e com as mudanças no tabuleiro geopolítico não pode ser facilmente compreendido por nossa visão no máximo eleitoral, de quatro em quatro anos.

Putin pode enfraquecer a Ucrânia, criar governos de autóctones que possa controlar diretamente de Moscou em diversos países-satélites (já havia feito o mesmo com a Guerra Russo-Georgiana, em 2008, num país bem menor e mais facilmente controlável), demonstrar o poder russo para fazer a Otan se retrair e ganhar influência sobre a Europa, até começar a chegar à Polônia, à Alemanha e sabe-se lá mais onde. Em todos esses intentos, Putin tem se saído um exímio vencedor, sem que o Ocidente consiga nem ao menos entender o que testemunha.

Dois lados errados
Em relação à Ucrânia, a Otan vem testando os limites do poder de Putin desde pelo menos a era Obama — foi o ex-presidente que afirmou que convidaria a Ucrânia para a organização, o que nem sequer faz sentido: o estatuto da Otan impede o ingresso de países com conflitos territoriais.
 
Os membros da Otan não têm nenhuma clareza sobre a instituição, e seus dirigentes atuais são pouco instruídos sobre os problemas históricos que enfrentam. Exemplo paradigmático foi a exclusão da Rússia do sistema bancário Swift por Joe Biden. 
Ora, impedir que russos acessem o sistema bancário internacional parece ser uma medida tomada contra a Cuba de 1959, não contra um país patrocinado pela China, e que, ao transferir boa parte de suas reservas para o iuane, pode, pelo contrário, quebrar o dólar sem falar em criptomoedas e no mercado negro.

Mas a Suíça também é um novo paradigma do novo mundo, por aceitar o pedido — logo a neutra Suíça, que passou por duas Guerras Mundiais sem envolvimento, sendo usada quase como sinônimo de hospitalidade e não adesão. Caso este conflito escalone, além de mudanças em moedas, na balança comercial, na produção (na qual os fertilizantes brasileiros têm papel fundamental), veremos uma Europa que não reconhecemos, além de uma dependência cada vez maior das potências entre si, sem falar no risco de conflito com a também turbulenta China, que violou o espaço aéreo de Taiwan seis vezes na mesma manhã da declaração de guerra com a Ucrânia.

Vemos nesta guerra dois lados errados: a Otan com a instalação de bases militares, como a da Romênia, enquanto Putin quer instaurar um totalitarismo, com propaganda de ser um cruzado contra a “decadência” e a “nazificação” ucranianas.

As guerras mundiais começaram por fatores diversos, que entrelaçaram diversos países. A pior notícia para a Ucrânia é o alento para o mundo: ela hoje está sozinha, implorando ajuda. E o Ocidente não quer se comprometer. [Comentando: antes mesmo do primeiro disparo já antecipávamos que a Ucrânia seria a perdedora e alertávamos  que o ex-comediante que ainda preside aquele País, estava arrumando uma guerra na expectativa de seus 'aliados de discurso' aceitassem combater por eles e estes queriam testar o poderio militar russo sem se comprometerem - afinal, a última coisa que os 'líderes' da Otan querem é arrumar uma guerra contra a Rússia - ninguém tem dúvidas que se necessário a Rússia usará armamento nuclear, provavelmente tático, sem que a Otan revide = é bem mais fácil lançar bombas nucleares sobre um Japão moribundo - caso Nagasaki/Hiroshima - do que sobre uma Rússia com capacidade de revide = não esqueçamos que um revide levará a uma retaliação que resultará no fim do planeta Terra
Portanto,  é bem mais fácil dar corda a uma Ucrânia presidida por um 'estadista',  que pensa que uma guerra é uma comédia.]

Leia também “Luz em tempos de escuridão”

Flavio Morgenstern,m colunista - Revista Oeste